sexta-feira, 8 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10013: Notas de leitura (367): "Portugal´s Guerrilla War - The Campaign For Africa" por Al J. Venter (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 23 de Abril de 2012:

Queridos amigos,
Por partida do destino, faltou circunstância para se traduzir a tempo e horas esta caudalosa informação que Al Venter era possuidor, bem como os registos dos múltiplos depoimentos que captou. Tem que se ler do princípio ao fim para se ver com nitidez a dimensão do seu recado: uma Guiné independente marcaria o fim dos regimes racistas da África do Sul.
Na entrevista que Spínola lhe concede usando Otelo Saraiva de Carvalho como tradutor a ameaça é mais do que clara, até se agita o fantasma das ilhas de Cabo Verde nas mãos soviéticas.
É um relato minucioso, de um repórter de primeira água. Ainda não tinham chegado os mísseis terra-ar à Guiné, cumpre esclarecer.

Um abraço do
Mário


Reler um clássico: Portugal´s Guerrilla War, por Al J. Venter (2)

Beja Santos

Al Venter é um grande repórter e jornalista anglófono que em 1973 publicou na Cidade do Cabo um livro de primeiríssima importância sobre a guerrilha guineense: “Portugal´s Guerrilla War, The Campaign for Africa”. É curioso como obras de referência omitem na sua bibliografia um título de alguém que descreve com indiscutível rigor o pano de cena em que eclodiu a luta de libertação, alguém que andou no mato como Basil Davidson ou Gérard Chaliand, correndo riscos, alguém que escreve primorosamente e que até oferece ao leitor informação preciosa, caso da entrevista a Spínola que ele anexa e que Spínola mais tarde publicará nas suas obras, mas amputando prudentemente o que lhe deixara de ser conveniente… Um livro que é dedicado a João Bacar Djaló que morrera por uma causa em que acreditou, e a Amílcar Cabral, assassinado quando o seu sonho estava prestes a realizar-se. E escreve misteriosamente: Such is timeless irony of Africa.

Estamos em Tite, Al Venter vai patrulhar na companhia de João Bacar Djaló, supõe-se que vão emboscar perto de Bissássema. Descreve o equipamento, as rações de combate com toda a minúcia. Os soldados vão sonolentos, saem do aquartelamento a arrastar os pés, o repórter aproveita para descrever as armas pesadas existentes em Tite e depois o plano do patrulhamento. Ninguém discute as ordens de João Bacar, seguem embalados no interior da mata, da madrugada até às 11 da manhã marcham à mesma cadência. Al Venter irá descobrir que existem tabancas sujeitas ao duplo controlo, nalgumas delas os soldados de João Bacar estão permanentemente armados, ninguém descarta a possibilidade de uma refrega, um cerco das forças que obedecem a Nino. Pela noite fora o silêncio é interrompido por explosões e ele escreve: Someone had probably put his foot on a mine somewhere in the jungle. Us or them?

Ir-se-á montar uma emboscada, nada acontecerá. Depois o autor descreve a organização do PAIGC, o historial da luta a partir de 1961. Nino Vieira tem destaque no sul, Domingos Ramos no leste, Osvaldo Vieira no norte. Encontra analogias entre a Comissão de Segurança do PAIGC e o KGB/GRU. Relata como os países ocidentais foram sempre evasivos, até ao final dos anos 60, com as razões do PAIGC, mesmo o Partido Trabalhista britânico. Ficamos igualmente a saber o custo ciclópico do tirano Sekou Touré à URSS, que ampara todos os desaires em que este compromete a economia do país. Al Venter está bem informado sobre a estrutura do PAIGC em Conacri, conhece o elementar do seu currículo desde que saiu de Cabo Verde até que passou à clandestinidade. Tem mesmo anotadas declarações de Cabral ao longo dos anos a órgãos de imprensa da mais variada procedência. Conhece o trabalho de Rafael Barbosa e das células que a PIDE desmontou em Março de 1962. É impressionante a documentação que ele exibe, sempre com rigor, não há nada de panfletário em toda a sua exposição. É facto que no início e no fim, e mesmo citando Spínola, Al Venter sela o destino da Guiné portuguesa ao da África Austral, é esta a sua mensagem suprema para o regime do apartheid. Dá-nos também uma informação aparentemente inédita: o relacionamento de Osvaldo Vieira com Amílcar tem imensas arestas, em 1970 um grupo de militares do PAIGC advogavam abertamente que se devia abandonar a luta e fazer a paz com Lisboa e Cabral terá mandado executar Laisec Eduardo Pinto, responsável pela segurança em Ziguinchor e Koundara.

Al Venter dá-nos a atmosfera de Teixeira Pinto, contacta novamente os Comandos Africanos e os Fuzileiros, visita reordenamentos, dão-lhe informações sobre a importância do chão manjaco e a obra de desenvolvimento e bem-estar ali em curso. E disserta sobre a proveniência do armamento do PAIGC. Conclui-se, em tudo quanto ele escreve, que os mísseis terra-ar ainda não tinham entrado em ação. Viaja até ao norte, está ali mesmo na fronteira, em Sare Bacar, assiste aos cuidados médicos em cidadãos senegaleses. E logo a sua reflexão assesta no comportamento das diferentes etnias face aos portugueses e aos guerrilheiros e conta toda a história dos diferentes grupos que se movimentaram sobretudo no Senegal até que o PAIGC se tornou indiscutivelmente a força mais influente. O repórter segue para Nova Lamego, é recebido em casa do chefe de posto Dr. Aguinaldo Spencer Salomão, um homem que lê Henri Bataille e Sartre, ouve música clássica de Vilvadi a Schoenberg, conhece bastante bem a situação local, sabe que as tropas de Osvaldo Vieira não andam longe, mas os fulas hostilizam-nas é por isso que os ataques de artilharia provocam tantos feridos civis. Um oficial português, o coronel Monteiro, explica detalhadamente a escola em que Nino aprendeu a guerrilha, tudo aquilo são ensinamentos de Mao e do General Giap.

A reportagem chefia-se depois para o trabalho das enfermeiras para-quedistas, Al Venter descreve ao pormenor a frota aérea, a sua proveniência, ficamos a saber pela sua boca as carências sentidas pelas autoridades de Bissau que reivindicam mais helicópteros Alouette III e os Puma. Mostrando-se altamente conhecedor do mercado negro das armas, ficamos a saber que a Saviro Limited, operando em Toronto, vende armamento soviético mas também helicópteros Hughes 500 e que as autoridades francesas, alemãs, italianas e britânicas fornecem aparelhos à Força Aérea portuguesa; descreve também as compras de viaturas e equipamento naval. Um pouco por toda a parte, ele procura apurar o estado de espírito das tropas, ao mais alto nível ninguém ignora a barreira dos países vizinhos, Al Venter informa que Portugal já tem terrorismo interno, a ARA vai provocando danos, alguns deles muito graves, como nos helicópteros em Tancos. Vive-se num aparente impasse, mas ninguém esconde que a guerrilha está muito ativa.

E chegamos à entrevista de Spínola, conduzida por Otelo Saraiva de Carvalho. Spínola fala repetidamente na importância de Cabo Verde para a Rússia, ela aspira através deste arquipélago dominar o Atlântico sul e chegar ao Cabo, a posse destas ilhas oferecerá à União Soviética a oportunidade de controlar as comunicações entre a África, a Europa e a América. E vaticina que se Portugal colapsar na Guiné haverá consequências imediatas em Angola e Moçambique e efeito dominó sobre a África do Sul. Spínola desmente que haja peritos soviéticos a conduzir a guerra na Guiné, as informações revelam a existência de jugoslavos, cubanos, argelinos e nigerianos, fundamentalmente no apoio médico mas também como peritos de guerrilha. O apoio que as autoridades portuguesas estariam a encontrar por parte dos dirigentes muçulmanos tinha a ver com o receio que estes sentiam da penetração do comunismo. Spínola insiste no papel chave que tem a África portuguesa na resistência ao caos que os regimes comunistas introduziram em África, a defesa das províncias ultramarinas representava a sobrevivência de Portugal como Nação. Questionado por Al Venter sobre a solução para os problemas da Guiné, Spínola respondeu que as populações tinham aderido às suas propostas. Ele soubera interpretar as ambições legítimas do povo, o sucesso nesta vertente era o melhor indício que o terrorismo tinha os seus dias contados.

Uma obra importantíssima, vale a pena insistir. Em 2011 Venter e outros publicaram War Storys. Up Close and Personal in Thrid World Conflits, editado em Pretoria, Venter dedica três capítulos à Guiné. Talvez o Nelson Herbert consiga o livro e nos traga notícias…
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P9993: Notas de leitura (366): "Portugal´s Guerrilla War - The Campaign For Africa" por Al J. Venter (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Ninguem queria saber da Guiné nem dos guineenses naquela guerra.

O fim a alcançar era a África do Sul e por tabela Angola e Moçambique.

A prova é que até à perestroka a guerra continuou entre a África do Sul e Cuba e União Soviética (1988),mas em território angolano.

A Guiné ainda era usada pela URRSS, mas para escala de barcos e aviões de apoio àquela guerra em material de guerra e gente.

Indescritível o tamanho de um dos barcos que atracou em Bissau com algum material para Bissau e que foi ser afundado por um submarino da África do Sul no porto de Moçâmedes.

O que aqueles soviéticos investiram para os seus fins ideológicos só naquele pequeno território da Guiné, pode-se fazer uns cálculos por alto o que eles semearam em Angola.

Ao fim e ao cabo a Guiné não fim o do apartheid na África do Sul como se diz neste livro, antes ajudou ao fim da União Soviética com a perestroika (1988), pois o Mandela só em 1994 é presidente da sua terra.

Embora os soviéticos fossem a principal razão do "fim do império", atravez do uso da Guiné, foi uma pena o fim dos soviéticos, pois que com eles a Guiné não se tornaria na rota da droga e outros males.

Gostava de ouvir os soviéticos e soviéticas a falar portugês com sotaque alentejano.

Obrigado Beja Santos