sexta-feira, 11 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9885: Cartas do meu avô (3): Segunda Carta: Em Catió (Parte II) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)




Alemanha, Berlim > Páscoa, 2012 > O J.L. Mendes Gomes com os netos.

Foto: © J. L. Mendes Gomes (2012). Todos os direitos reservados.


1. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo presentemente em Berlim.


SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ (PARTE II) (*)

Lichtenrade, Berlim, 14 de Março de 2012

4-  Recordações Boas e Amargas de Catió

 Os momentos da chegada ao quartel, depois do esforço e dos riscos que se tinham sofrido, ficaram para sempre inesquecíveis. Desencadeavam em nós um tal bem-estar e satisfação que quase apetecia dizer que, por eles, tudo tinha valido a pena.

Um banho de chuveiro e uma cerveja grande fresquinha bebida, gole a gole, de papo para o ar e o corpo estendido na cama, acabavam por fazer esquecer e dar-nos a insidiosa sensação de que tão cedo não cairíamos noutra…

Mas não era assim, logo a seguir, haveria serviço noturno a desenvolver, com emboscadas montadas em sítios estratégicos, nas imediações de Catió, para criar  insegurança ao inimigo e afastar-lhes a tentação de ataques súbitos. Para isso, havia uma escala de serviço para cada pelotão.

Nunca me esquecerei daquele Domingo, de manhãzinha, em que fui acordado pelo alferes Arlindo Barros, - exercia, por assim dizer, as funções  de  segundo comandante da Companhia – para sair imediatamente com o meu pelotão, porque andavam a raptar populações inteiras em certo sítio, fora de Catió. [, foto do quartel à direita, 1968, foto do nosso saudoso Victor Condeço]

Rapidamente, sem grandes apetrechos, estávamos a caminhar através de matas e bolanhas, guiados por uns elementos nativos que conheciam bem o terreno.  A caminhada durou o dia inteiro. Apenas levávamos connosco o cantil cheio de água. De comer não. 

O calor era tórrido e sem abrigo, em muitos lanços da caminhada.  O que mais falta fez, na realidade foi a água. Eu pensei a sério, em beber a minha própria urina… não sei se alguém o fez. Só sei que tive de beber água escaldante esverdeada dos charcos das bolanhas filtrada na minha camisa.  Para refrescar o corpo, molhava-nos todos onde se podia. Momentos depois a roupa estava seca sobre a pele.


[Foto do bar do quartel  de Catió, à direita, 1968, foto do  Victor Condeço, 1943-2010; na imagem, ele é o primeiro da esquerda]

O regresso a Catió foi lancinante. Para além do cansaço, tinha-se-me esfolado a zona entrepernas a ponto de sangrar.  Terá sido, para mim, pelo menos, a prova mais dura de todo tempo de comissão. E o resultado foi nulo. Não se aprisionou ninguém. A tal ponto que este feito, no final, inesperadamente, determinou- me a atribuição do meu único louvor, pelo comandante de companhia o qual não mereceu, como seria de esperar, nenhum reconhecimento pelo novo comandante de batalhão.

E  houve de facto uma razão forte.  Foi que, este comandante, o tal de tão mau feitio e igual formação, que lhe mereceu uma agressão de alguém, anónima, na cabeça, pela calada da noite, quando deambulava no interior do aquartelamento.

Quando pôde voltar ao almoço na messe, cabeça toda entrapada, recomendou a todos os oficiais que transmitissem aos seus subordinados que ele mesmo promoveria ao posto acima quem denunciasse o agressor. 

Claro que ninguém quis ser promovido, gratuitamente.

Fosse pelo que fosse, eis que, de supetão, decidiu empreender, por sua inteira iniciativa, uma minioperação, que consistia num golpe de mão a um aquartelamento inimigo, algures, para os lados do Cantanhez.

Sairia a minha companhia só, reduzida a dois pelotões, o 2º e o 3º pelotão, o primeiro ficaria de guarda ao quartel.  À frente seguiria o pelotão de nativos,  comandados pelo famoso J. Bacar Jaló [, foto à esquerda, em Catió, em 1967, já graduado em tenente de 2ª linha: foto de Benito Neves].

Foi a nossa salvação.  Este alferes nativo conhecia muito bem o terreno e o que por lá havia.
 - Ó nosso alferes! Isto é uma grande asneira. Muito perigosa. Se tentarmos lá ir tenho a certeza de que seremos todos mortos como passarinhos. – exclamava-me ele atónito, e preocupado, não por si.

Toda a gente sabia como ele era uma pessoa muito séria, do seu valor, coragem e capacidade de comando no terreno. Se o dizia tão desassombradamente era porque era mesmo verdade.

Que é que nós podemos fazer contra tamanha força ali existente, de fonte segura. Nem um batalhão, quanto mais, três pelotões, armados só de G3, bazucas e morteiros. Sem apoio aéreo ou de artilharia. Era um golpe de mão.

Era melhor ser um único pelotão. Por exemplo o meu…continuava ele espumando de raiva.  Eu era o comandante da operação. Pelo facto de ser mais antigo que o comandante do 3º pelotão, o alferes Gonçalves.

 Conferenciei com ele. Logo se veria o que faríamos. Quando já estávamos a pisar terreno de alto perigo, muito próximo da entrada na mata onde ficava o quartel inimigo, apareceu no céu, muito alta, uma avioneta que transportava o autor da operação.

Entrou em contacto comigo via rádio. Informou que estávamos perto do objetivo . Que estava a chegar um bombardeiro de Bissau para metralhar a mata. De seguida e à sua ordem  deveríamos entrar mata dentro.
 - Entendido, nosso alferes?  -  Não respondi logo.

[Foto à direita: pista de Catió, janeiro de
1968. Autoria: Victor Condeço, 1943-2010]


O raio do rádio tinha de avariar naquele preciso momento…
 - Está-me a ouvir ou não? – gritava lá do alto.

Nunca eu sentira tamanha responsabilidade às minhas costas. Sempre pensei que apenas iria cumprir , mas integrado na companhia, à responsabilidade do comandante.

As palavras do J. Bacar Jaló badalavam-me insistentes na cabeça.
- Não. Não vou pôr , tão ingloriamente, em risco a minha e as vidas dos meus soldados. Aconteça o que acontecer. – pensei para mim.

Recusei responder-lhe, a tudo quanto ouvia, simulando uma avaria nas transmissões. O comandante gritava mais e mais.
 - Ó nosso alferes, está desobedecer-me. Vai ser preso quando chegar ao quartel. Por desobediência em teatro de guerra. Por que, de certeza,  me está a ouvir.

E estava mesmo. O Gonçalves disse que eu é que era o comandante. Fazia o que eu dissesse. O J. Bacar Jaló mantinha tudo o que dissera:
 - Vamos morrer todos, nosso alferes!

Não vamos. Decidi. Ficamos ali parados no meio da bolanha.

Às tantas apareceu lá longe o tal bombardeiro. Deu umas voltas em redor e,  subitamente,  orientou-se na nossa direção, picou sobre nós.  Roncando assustador, como uma terrível fera. Ensurdecedoramente.
 - Vamos ser bombardeados, por engano. – Gritei.

[Foto à esquerda, vista aérea de Catió, janeiro de 1968. Autoria: Victor Condeço, 1943-2010]


Não foi preciso mandá-los. Logo uma série de soldados se despiu as camisas para lá de cima verem que éramos nós… e acenavam-nas desesperados,  mirradinhos de medo.

Por momentos, pensei e todos nós que muitos iriam ficar ali para sempre. Foi tudo muito rápido. Assim como picou em direção a nós assim se elevou, sem nada acontecer.

Passados mais uns momentos, começámos a ser atingidos por granadas de morteiro e bazuca vindas da orla da mata. Respondemos como pudemos. O resto foi o bombardeiro quem resolveu. Metralhando ferozmente toda a mata e a orla donde vinha o fogo.

A famigerada avioneta tinha desaparecido há muito nos céus. Que estávamos nós lá a fazer? Mandei regressar.

 No dia seguinte, fui chamado à sala do comando. A tal onde se explicavam as operações.  Estavam todos os oficiais do batalhão e da minha companhia.   Solenemente, o comandante chamou pelo meu nome. Pus-me em sentido.
- Nosso alferes Mendes Gomes, ontem o senhor negou-se a cumprir as minhas ordens.
- Que ordens, meu comandante?
 - Não me diga que não ouvia o que eu lhe disse pelo rádio.
 - Eu não ouvi nada, meu comandante. Está aqui o comandante do 2º pelotão e o alferes J. Bacar Jaló que estavam à minha beira para testemunharem se foi ou não verdade.


[ Foto à esquerda, da autoria de benito Neves Catió > 1967 > Lagoa entre Catió e Príame].


O rosto do comandante toldou-se, não sei se de raiva se de gozo voraz. Iria apanhar-me de certeza- pensou para consigo.
- Nosso alferes Gonçalves, é verdade o que ouviu da boca do nosso alferes Mendes Gomes?
- Sim. É verdade. O rádio não transmitiu nada.
 - Alferes João Bacar Jaló, que me tem a dizer?
- É tudo verdade o que foi dito pelos nossos alferes.

O comandante ficou embatocado. Nunca esperou ouvir o que ouvira.  Parecia que estava tudo combinado. Mas não. As reações dos meus camaradas foram espontâneas. Em total solidariedade. Aquela operação era um suicídio…

Perante tão claros e peremptórios testemunhos, que provas tinha ele do contrário?  Absolutamente nenhuma.  Mesmo assim, já estava tudo decidido.
Mandou ler a repreensão agravada que já vinha preparadinha…

 Uma vez lida, a magna reunião tão solenemente como começou assim terminou.  Respirei de alívio.
 - Quero lá saber da repreensão…- pensei.

Bem temi que iria parar à prisão militar.

[Continua]

______________

Nota do editor



11 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro "Palmeirim"

Sem dúvida que terás tomado a melhor decisão, ainda por cima avalizada por 'quem sabia'.
Mas também não há dúvida que arriscaste muito em termos pessoais.
Visto 'daqui' e a esta distância temporal, qualquer das opções (obedecer a quem comandava do ar ou não cumprir as suas insensatas indicações) correspondia sempre correr esses riscos pessoais, só que o cumprimento envolveria sempre 'terceiros' e se as coisas corressem mal, como tudo indicava, terias de viver sempre com as consequências das tuas ordens porque as do 'outro' dificilmente seriam assumidas.
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Mendes Gomes,

Esse Ten.Cor não se chamava Nobre e Silva, que esteve anteriormente na zona de Teixeira Pinto?
Bom...se é o mesmo tive com esse CmtBat um problema idêntico, estava eu em Jolmete. Só que eu não desliguei o radio e as consequências foram diferentes...
V. Briote

Anónimo disse...

ERa esse mesmo. Mais "silva" que nobre!...Foi assim mesmo. Não estou arrependido. Acho que foi o melhor que fiz em toda a minha guerra...

Luís Graça disse...

De um modo geral, o pessoal operacional, de infantaria, quando andava no mato, sempre a penantes, em patrulhamentos ofensivo (1 dia), ou operações a nível de companhia (2 dias), tinha um pó ao PCV!...

Não sei porquê, era uma copisa visceral, patológica, que se transmitia dos velhinhos para os piras...

Aquela avionetazinha dava-nos cabo dos nervos, vá-se lá saber porquê era vista como uma ave agoirenta, dava azar, diziam os africanos... Já o "lobo mau", não: inspirava-nos toda a confiança... e até o peito se voltava encher de aR!...

Mal ou bem, a tropa-macaca achava que o PCV denunciava facilmente as nossas posições... E na volta, os gajos do PAIGC ficavam à nossa coca...

Depois, não apreciávamos nada o comportamento heróico, temerário, dos nossos majores de operações, ou dos segundos e primeiros comandantes de batalhão, sujeitos a vir cá parar abaixo, por um simples rajada de antiaérea ou de metralhadora pesada 12.7... Naquele tempo não havia o Strela...

Enfim, confiávamos mais na perícia, experiência e bom senso pilotos da FAP do que na sua preciosa carga...

Além da fraca pontaria do Zé Balanta do Poindon, devo acrescentar..

Torcato Mendonca disse...

o PCV denunciava facilmente as nossas posições...copy/paste

as aves e os macacos também...e não só...

tropa macaca??? não sei,,,

Ab T.

Luís Graça disse...

Adoráveis criancinhas, avô babado... mas ... cruel ... Porquê escrever cartas destas aos netinhos ? Será que um dia eles vão perceber, não os dilemas de consciência, mas os trilemas (!|), com que se defrontou o avô numa terra estranha, longínqua, e numa coisa horrível chamada guerra ?

Eu acho que eles vão um dia perceber (e fic ar gratos por) esta mensagem deste avô babado... Vão perceber e aceitar os seus valores...

Obrigado, Joaquim, agradece ao pai das criancinhas (teu genro ?) que nos mandou as fotos, desde Berlim...

O meu voto é que vejas crescer, com saúde e alegria, os teus netos, crescer... e multiplicar-se!

Com um xicoração desde Lisboa. Vou á cinemateca portuguesa, ver um filme português, "Sangue do meu sangue",do João Canijo.... (É preciso premiarem os portugueses na estranja para a gente lhes dar valor cá na terra... Isto é uma paróquia, uma tabanca, uma país liliputiano)...

José Botelho Colaço disse...

Sobre a DO um colega meu fez uns versos e um que rimava assim.

De avião fazem a guerra
Mas quem anda por a terra
O perigo nos espreita
Com o tempo terminado
É triste ser mandado
Por semelhante seita.

Anónimo disse...

Resposta pronta do J.L. Mendes Gomes:

Olá Luís!
Como sempre és impecável. Não deixas passar nada. Sou babado até dizer chega...Qual o avô que não é? Quero ver-te quando chegar a tua vez...vai ser bonito, vai. Eles vão perceber vão. Se não venho cá abaixo...explicar tudo como foi...
Obrigado e diverte-te com o filme do Canijo...por mim.
Um abraço

Anónimo disse...

Também quero felicitar o meu amigo, por essa foto magnífica!

Há lá coisa melhor, que regredir, reviver o principio da nossa vida adulta, quando os filhos tinham essa idade?

O meu já está um homem, (16 anos) embora seja um prazer acompanhar a sua evolução, já tenho saudades da sua infância, por isso, amigo, aproveita este tempo breve!

Sei que tem muito para lhes contar e prendê-los assim, à sua volta.

Um abraço daqui, à beira Sintra, onde o tempo quis ficar!

Felismina

Anónimo disse...

Obrigado a todos...
Um grande abraço.
JMendes Gomes

Anónimo disse...

O PCV se fosse para fazer correcção de tiro aos artilheiros, ou de apoio e vigilância a colunas..até era útil..agora quando os infantes andavam a "infantar", era a coisa mais burra que se podia fazer.
Cá para mim servia para vigiar os infantes se "infantavam" como o "inteligente" lá de cima queria.
Confesso que sou insuspeito..eu fui artilheiro.

Um alfa bravo para todos os infantes que foram vigiados por PCVs.

C.Martins