segunda-feira, 23 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9789: Notas de leitura (354): "Um Demorado Olhar Sobre Cabo Verde", por Jorge Querido (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 16 de Março de 2012:

Queridos amigos,
O livro de Jorge Querido tem a inegável vantagem de nos tirar do palco habitual da Guiné, onde vemos sempre um PAIGC militar e uma direção política posicionada em Conacri, para nos remeter a questões de fundo que não passam só pelo uso das armas mas pelo relacionamento dos combatentes e dirigentes de origem cabo-verdiana e guineense. É aqui que Querido desvela as questões da identidade cabo-verdiana que afetaram profundamente a vida do PAIGC durante a luta e após a independência.
Auguro que o livro será muito mal recebido em ambos os países, este demorado olhar ainda está eivado pelas inquietações e assombrações dos preconceitos que ambos os povos teimosamente iludem.

Um abraço do
Mário


O PAIGC visto por um antigo dirigente cabo-verdiano: 
Um livro polémico de Jorge Querido* (2)

Beja Santos
Jorge Querido não tem pejo em adiantar que Amílcar Cabral estava obrigado a lançar mão daqueles que tinham o mínimo de instrução para pôr a funcionar como organização política o PAIGC, Cabral sabia que podia contar com a força de combate guineense mas que não dispunha de quadros para ocuparem os lugares de cúpula do partido. E ele questiona se esses cabo-verdianos não terão levado para o interior do PAIGC todos os recalcamentos, complexos, contradições, ambiguidades identitárias, ou seja, não terão sido eles os impulsionadores de um mal-estar que veio a crescer entre os ilhéus e os guineenses. Foi extremamente difícil recrutar cabo-verdianos no Senegal, de um modo geral estes opunham-se à ideia de unidade e agiam como se fossem portugueses. Jorge Querido interpreta a ação prodigiosa de criar este PAIGC graças a três fatores: o génio de Cabral, que soube desenvolver uma interpretação teórica do contexto sociocultural que inspirou a luta de libertação; o comportamento corajoso e heroico do povo da Guiné; e a ajuda de países e forças anticolonialistas e progressistas do mundo inteiro. Sempre que necessário, recorda o autor, Cabral não hesitou em utilizar todo o seu peso da sua autoridade, como fez no Congresso de Cassacá. Cabral procurou ser dialogante com os dirigentes cabo-verdianos que operavam em Cabo Verde e que pretendiam ação, a verdade é que não havia circunstâncias para provocar a guerrilha em Cabo Verde e os conselheiros soviéticos e cubanos sempre desaconselharam qualquer desembarque em força nas ilhas. O autor descreve minuciosamente as tensões entre a linha de Abílio Duarte e o tato revelado por Cabral para acalmar os ânimos aqueles que estavam impacientes para entrar na luta.

É neste contexto que ressaltam as questiúnculas e intrigas que envenenavam o ambiente em Conacri, mas aqui Querido não especifica o que estava subjacente a essa atmosfera respirável. Ficamos a saber que havia um ambiente tenso em Conacri motivado pelo comportamento de certos quadros dirigentes que pouco se importavam com a luta. Há o testemunho de Amélia Araújo que refere que havia muita fofoquice mas também não adianta nada. Osvaldo Lopes da Silva, que teve um papel determinante no ataque a Guileje refere que Cabral não sabia o que fazer com os cabo-verdianos e mandava-os estudar na URSS e observa: “Quando regressámos da União Soviética, encontrámos em Conacri um clima pior do que aquele que devíamos ter deixado em 1970”. Toda a gente fala nesta atmosfera viciada mas ninguém diz em concreto o que eram os vícios e que os protagonizava, o que levanta perplexidade. Jorge Querido tem uma postura muito crítica com Abílio Duarte e prontamente salta para outro tema quente, o Congresso de Madina de Boé, ocorrido depois do assassinato de Cabral e refere que a reunião decorreu em ambiente tenso, a agenda de trabalhos continha pontos extremamente sensíveis, havia fações constituídas, os congressistas apresentaram-se fortemente armados já que o clima de desconfiança era quase generalizado. Muitos dos cabo-verdianos não queriam eleger Luís Cabral considerando que enquanto líder iria fazer tudo para não apoiar os cabo-verdianos. O assassinato de Cabral foi assunto tratado de raspão em Madina de Boé, as opiniões estavam longe de ser convergentes: “Em Madina de Boé, os congressistas não foram além de um exame muito superficial dessa tão importante questão e as poucas medidas punitivas tomadas tiveram um alcance e um significado não mais que simbólicos”.

E chegamos assim à independência de facto da Guiné-Bissau, avultam agora os problemas relacionados com a luta em Cabo Verde que o autor, bem conhecedor dessa realidade, esquiça um relato de grande pendor crítico, acusando o grupo da extrema-esquerda trotskista do PAIGC que vindo diretamente de Lisboa só veio trazer problema. O PAIGC, a partir de Bissau, reformulou a sua estratégia, deu uma imagem de um grupo coeso de heróis impolutos, de militantes abnegados, que deviam ser vistos como indispensáveis e decisivos em todas as vitórias alcançadas na Guiné, estabeleceu-se o compromisso de nenhum dirigente proferir qualquer juízo negativo acerca dos seus camaradas combatentes. Com todos os arranjos possíveis, são estes dirigentes vindos da Guiné e o grupo de Lisboa que passaram a ser reconhecidos como “os únicos e legítimos representantes da população de Cabo Verde”. De novo Jorge Querido desfecha críticas aos grupos extremistas que num quadro de grave crise económica em que vivia Cabo Verde fizeram desmandos no aparelho de Estado, recorreram ao comunismo primitivo, fizeram nomeações demagógicas, perseguiram e encerraram cidadãos cabo-verdianos sem quaisquer critérios sérios. Assim que se começou a construir um Estado com a implantação de um regime de partido único que terá sido inicialmente tolerado devido ao facto de haver um processo revolucionário em Portugal, uma forte pressão sobre o PAIGC por parte dos países do bloco socialista e o desenvolvimento de uma linha arrivista que lançou a manipulação e a demagogia rapidamente absorvida pela juventude e pelos mais desfavorecidos da sociedade. O autor explica os altos e baixos da construção deste Estado e o modo como a direção política do PAIGC procurou chegar a bom porto. É aqui que ele retoma a temática de que os governantes cabo-verdianos tinham vindo inquinados da Guiné-Bissau, recorre mesmo a uma afirmação de Aristides Pereira que da parte das guineenses do campo não havia problemas de nenhum tipo com os cabo-verdianos, a grande questão é que havia muita gente do lado cabo-verdiano que ia para a Guiné disposta a lutar só por Cabo Verde e mais afirma que havia combatentes cabo-verdianos que passavam vários anos das suas vidas a conviver de perto com o povo da Guiné e que teimavam em falar do ódio dos guineenses aos cabo-verdianos.

Estamos perante um livro altamente polémico, é um olhar demorado de um homem muito culto que no Outono da vida resolveu agitar mitos, fantasmas, temáticas ambíguas que atravessam toda a vida do PAIGC e que marcam dolorosamente o presente e o futuro do relacionamento entre guineenses e cabo-verdianos.

Obra de leitura obrigatória para quem pretende sopesar as posições a favor e contra.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9774: Notas de leitura (353): "Um Demorado Olhar Sobre Cabo Verde", por Jorge Querido (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Mário, penso que terás terminado a leitura deste autor.

Se ele só diz isto, ainda é muito curto.

Aparecerão outros autores ainda com menos complexos e menos tabús que este autor.

E já com tantos guineenses que sabem escrever e não aparece ninguem com coragem de fazer o retrato.

Mesmo em Angola, com tanto sangue a jorro, e ninguém quer contar o que se passava naquelas cabeças do MPLA, irmão do PAIGC.

Já não falo nos tribalismos dos outros movimentos que não tinham "os tais burgueses para se suicidarem".