quinta-feira, 5 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9704: O Cancioneiro de Gandembel (4): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte IV) (Idálio Reis)












Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 2317 (1968/69) >  O "suplício de Sísifo": os homens-toupeira construindo (e defendendo) a sua "casa" no "corredor da morte", em tempo recorde...


Fotos: © Idálio Reis (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Continuação do texto da autoria de Idálio Reis (ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835 (Gandembel e Ponte Balana, Nova Lamego, 1968/69) [ aqui com o João Barge, um dos autores de "Os Gandembéis", em Monte Real, 2010]:




Os Gandembéis: O Nosso Cancioneiro, as nossas músicas, os nossos poetas (Parte IV) (*) (**)



XII

Já o raio Apolíneo visitava
As terras de Gandembel acendido,
Quando o Moura c´os seus determinava
Que o quartel depressa fosse construído.
A gente na mata muito trabalhava
Como se fosse o engano já sabido;
Mas pôde suspeitar-se realmente
Que o turra nos detectou facilmente.


XIII
Quais para a cova as próvidas formigas,
Levando o peso grande acomodado
As forças exercitam, de inimigas
Ao inimigo turra assanhado;
Ali são seus trabalhos e fadigas,
Ali mostram vigor nunca esperado:
A tanto os soldados andam trabalhando
E c´o a arma amiga sempre vigiando.


XIV
Eis, um dia, no quartel o fogo se levanta
Com furiosa e dura artilharia:
O canhão pela mata o brado espanta
E o morteiro o ar retumba e assobia.
O coração das tropas se quebranta,
C’ o ataque grande o sangue lhes resfria.
Já foge o escondido, de medroso,
E morre o incauto aventuroso.


XV
Não se contenta a gente portuguesa
Mas, sentindo a vitória, destrói e mata;
O soldado, a peito descoberto e sem defesa,
Contra ataca, reage e desbarata.
Da ofensiva ao turra já lhe pesa
Que bem cuidou comprá-la mais barata
Destarte, enfim, o português castiga
A vil malícia, pérfida e inimiga.


XVI

Ao 15 de Julho somos chegados
Que há muito ali estávamos passando,
Por sítios nunca d’outrem penetrados
Prosperamente os ventos assoprando.
Nessa noite, estando mui cansados,
Nos postos os sentinelas vigiando,
Subitamente o turra aparece
E com canhões e morteiros os ares escurece.


XVII
Tão temeroso vinha e carregado,
Que pôs nos corações um grande medo;
Disparando onze canhões, de longo brado,
E tentando o assalto ao grã Rochedo;
Morre o Araújo, ó triste fado, (#)
Um valoroso a menos neste vil degredo!
Já blasfema da guerra, e maldizia,
O Velho inerte e a mãe que o filho cria.


XVIII
Uma reacção medonha s´alevanta
No rude soldado que trabalha,
Com grande tiroteio a turra gente espanta,
Como se visse em hórrido batalhão
Disparam armas e granada tanta,
Pois não têm nesta noite quem lhes valha,
Acolhendo-se à vala que conhecem,
Só as cabeças no cimo lhe aparecem.


XIX
Vem Setembro, e uma nova granada
Se nos mostra no ar, passa e assobia;
Vem outra e outra, ó cousa danada,
Que os céus quebranta e a terra fendia.
Com mágoas de raiva, a gente assustada
Sai dos abrigos e à vala se acolhia;
Estragos fez tão dignos de memória
Que não cabem em verso ou larga história.


XX
Qual míssil estrondoso se veria
No Vietnam, o espaço sulcando
E a morte espalhando na terra fria,
Assim o cento e vinte vai troando. (##)
E vós ó medalhados, triste ironia,
Não cuideis mentira o que estou falando.
Vejam agora os sábios da Escritura
Que segredos são estes da Natura!


XXI
Tão grande era de carga, que bem posso
Certificar-vos que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do Mundo:
Com estrondo enorme, horrendo e grosso,
Que mais parecia vir do outro mundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.


XXII
Oh! Caso grande estranho e não cuidado!
Oh! Milagre claríssimo e evidente!
Oh! Descoberto assalto e inopinado!
Oh! Pérfida, inimiga e falsa gente!
Quem poderá do mal aparelhado
Livrar-se sem perigo, sabiamente,
Se lá de Cima a guarda Soberana
Não acudir à fraca força humana?


XXIII
Ei-los subitamente se lançavam
Com as suas armas ligeiras que traziam;
Outros com torpedos arrebentavam
O arame farpado, e deitados se acolhiam;
Dum lado e doutro súbito saltavam
E na porta d´armas vozes se ouviam:
“Entra!! Entra!! Ó tropa vai embora!”
E cada um pensa chegada a sua hora.


XXIV
Sonoras vozes incitavam
Os ânimos belicosos ressonando
Dos turras os tiros que o ar coalhavam,
E os very-lights a mata iluminando.
As bombardas horríssonas bramavam,
Com as granadas de fumos a luz tomando;
Avolumam-se os brados acendidos
À mistura de sangue, dor e gemidos.


XXV
Trava-se a dura e incerta guerra:
De ambas as partes tudo se abala;
Uns leva a defesa da própria terra,
Outros a esperança de ganhá-la.
Logo o grande Lopes, em que se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala:
À bazooka se arremete e a terra, enfim, semeia
De sangue dos que tanto a desejam, sendo alheia.


XXVI
Cabeças pelo campo vão saltando,
Braços, pernas, sem dono e sem sentido,
E de outros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o gesto amortecido.
Já perde o assalto o exército nefando,
Correm rios de sangue desparzido,
Com que também da mata a cor se perde
Tornada vermelha, de branca e verde.


XXVII
Destarte o turra, atónito e turvado,
Toma sem tento as armas mui depressa.
Já foge, e de desesperado
O sinal de retirada arremessa.
O obus não pára, mas o soldado
Da arma ligeira, o fogo cessa.
Com tanto esforço e arte e valentia
Assim luta o soldado desta Companhia.

(Continua)


____________


Notas de L.G.

(#) Alf Mil Inf José Araújo, comandante de um  Pel Caç Nat 69 acabado de chegar a Gandembel, morto no "medonho" ataque de 15 de julho de 1968. De seu nome completo, José Manuel (ou Juvenal ?) Ávila Figueiredo Araújo, nascido no Funchal e aqui sepulatdo (no cemitério de Angústias)

(##) Morteiro 120: terá sido usado pela primeira vez, em Gandembel, contra as NT.
___________



Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série >

28 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9672: Cancioneiro de Gandembel (1): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte I) (Idálio Reis)

29 de março de 2012 >
Guiné 63/74 - P9676: O Cancioneiro de Gandembel (2): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte II) (Idálio Reis)

3 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9695: O Cancioneiro de Gandembel (3): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte III) (Idálio Reis)

(**) Fonte: REIS, Idálio - A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana. Ed. de autor, [Cantanhede], 2012, pp. 204 e ss. [Livro a lançar no dia 21 de Abril de 2012, em Monte Real, no nosso VII Encontro Nacional; um exemplar será oferecido pelo autor aos camaradas inscritos].

3 comentários:

manuelmaia disse...

CARO IDÁLIO,

QUE DIZER SOBRE UM TRABALHO COM ESTE FÔLEGO?
AQUILO QUE TE DISSE JÁ AQUANDO DA PRIMEIRA PARTE.
SIMPLESMENTE FABULOSO.
OBRIGADO.
abraço
manuelmaia

Anónimo disse...

Seria uma pena, mais, seria um crime de lesa-memória, perder a letra dos "Gandembéis"... Estou grato ao Idálio e aos restantes camaradas da CCAÇ 2317 por nos trazerem à luz do dia essas sete dezenas de estrofes e estou feliz por o nosso blogue ter o privilégio de as poder divulgar!...

Luís Graça, Rua da Misericórida, Lourinhã, 6/4/2012

Manuel Joaquim disse...

Meu caro camarada Idálio:

Que espetacular "flash" teve na altura quem decidiu "lusiadiar" a vida desgraçada de um grupo extraordinário de combatentes! Que grande trabalho!
Mas aqui e agora quero salientar as boas fotografias deste "post", salientando a primeira da série. Ela é toda movimento, emana dela uma energia que emociona quem percebe as condições em que o trabalho estava a ser feito. Ao mesmo tempo é muito explícita quanto à fenomenal resiliência dos nossos soldados (até parece que estavam a começar uma piscina num futuro "resort" para férias tropicais!).
E quanto à qualidade artística, não sei não (terá um bom negativo?) mas se tivesse tido uma boa revelação, seria uma foto icónica. Grande foto.

Um grande abraço