quinta-feira, 29 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9676: O Cancioneiro de Gandembel (2): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte II) (Idálio Reis)



Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Aspeto geral do aquartelamento (foto de cima) e vista de um doa abrigos (foto de baixo).


Foto: © Idálio Reis  (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados




1. Continuação do texto da autoria de Idálio Reis (ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835 (Gandembel e Ponte Balana, Nova Lamego, 1968/69):


Os Gandembéis: O Nosso Cancioneiro, as nossas músicas, os nossos poetas (Parte II) (*)


por Idálio Reis
 

(...) [O Hino de Gandembel] caiu em graça, ao ajudar a libertar sentimentos de desesperança e inquietação, e o pessoal, indistintamente, parecia denotar um incontido júbilo no trauteio deste canto, onde os sons e o silêncio se sincronizavam em gesto de deslumbrante generosidade, do louvor à vida.


Quando surge o hino de Gandembel, continuavam a manifestar-se,  nesse acantonamento, situações particularmente amargas, e quando o descomedimento amainava, parecia ter o condão de apaziguamento, quando alguém exclamava de forma sentida “Oh Gandembel das morteiradas!”. O seu contributo para o estímulo da Companhia foi valiosíssimo, na aquietação das animosidades, na pacificidade das tensões 

Fundamentalmente, o hino teve a graça de contextualizar a gesta dos que tiveram a desdita de viverem coactivamente naquele soturno lugar, com inúmeros e alongados estremecimentos de inquietação.

Permita-se-nos uma leitura deste anódino poema, para referir alguns aspectos.

Hino de Gandembel [Ouvir aqui a interpretação do António Almeida]

Ó Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.


- Meu Alferes, uma saída! -
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é prá Ponte! (i),
Logo se ouve dizer.


Refrão


Ó Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (ii) e morteiradas.
Ó Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se liga o rádio
Ao som de estrondos e tiros.


A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (iii)
É preciso protecção.


Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.


Refrão (...)


Temos por v’zinhos o Balana (i),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (iv) te protege.


Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!


Refrão (...)


 [Notas: (i) Ponte Balana; (ii) Verylights; (iii) WC;  (iv) G-3; revisão e fixação de texto: L.G.]


Eis o que uma letra de um poema de um profundo sentimento popular, que atendendo aos incríveis circunstancialismos em que foi escrito e musicado, num arrepiador ambiente de uma guerra, que cruentamente avassalava, ferindo e matando, se viria a transformar tão-só num hino à vida, porquanto:

(i) Uma das facetas mais horrendas ao longo da sobrevivência daquele poiso, foram as míseras condições com que nos defrontávamos no dia-a-dia. Pernoitámos em abrigos, onde os corpos se deitavam sobre uma simples tela de borracha, que se estendia sobre o chão de terra nos abrigos-toupeira («imitamos a toupeira») e posteriormente no piso de cimento das casernas-abrigo. Em ambos, os troncos das centenas de árvores abatidas, vieram a desempenhar um contributo muito especial na nossa segurança («dos abrigos de madeira»). Mas estes abrigos, único meio para possibilitar tomar algum descanso, quantas vezes viria a ser suspenso pelas («morteiradas, canhoadas, tiros»), impedindo alívio, apaziguamento e serenidade.

(ii) Das peripécias de guerra mais agressivas, foi a audição dos milhares dos ecos das saídas dos morteiros, em que os de calibre 82 se mostravam demolidores: («Gandembel das morteiradas»), que quase quotidianamente flagelavam aquele poiso; os momentos de ansiedade e expectativa, enquanto a granada silvava os ares na sua trajectória indefinida, eram aterradores: («Meu alferes, uma saída/Tudo começa a correr»). Havia um estrépito quando deflagrava, e tudo se poderia esvair naquele contacto com o solo: onde? longe? ao lado? («Não é p´ra aqui, é p´ra Ponte/Logo se ouve dizer»).

(iii) Um outro negro aspecto, que envolve um doloroso e prolongado tempo, foi a do espectro da fome, pois a variedade das refeições quase não se alterava, em que os frescos praticamente não existiram: («A comida principal/É arroz, massa e feijão»). E quantos períodos sem uma qualquer bebida, que não fosse a água do Balana: («Bebida, diz que nem pó, /Acontece o mesmo ao vinho»).

(iv) A relevância dada à intimidade das valorosas e fidelíssimas companheiras que não largávamos, as nossas G3, que descansavam a nosso lado enquanto dormitávamos, e que em geral tinham um nome de estimação. Sempre limpas e asseadas, mostraram-se sempre ágeis em momentos cruciais: («E ao som das canhoadas/Só a G-3 te protege»).

Sim, Gandembel foi um local onde o perigo pairava a cada momento, e o seu tempo mais agradável conhecia-se por bonança. E, por vezes, ao entardecer, saía de uma caserna-abrigo, um coro à capela, à busca de um contentamento de tranquilidade, e também de rogo para que a noite decorresse sem queixumes

Mas quantas vezes, no pedido não satisfeito, as noites estremunhavam e o cansaço ou desalento agudizavam-se. E mal despontava o alvor da madrugada, ouvia-se um forte brado, de revolta, não mais que um grito de coração, de chamamento para todos
- “TIREEEEEM-NOS DAQUI!”.

A este eco lancinante, de tantas vezes repercutido, incutimos-lhe uma secreta aspiração, ainda que reconhecêssemos ser muito difícil de sobrepujar. De todo não chegou ao seu destino, tudo indiciando que os seus ais se vieram a sumir no marulhar de um macaréu de lua, acabando por se esvanecer na salsugem do Geba. E aí, enquistada talvez nalguma concha perlífera, se quedou de mansinho durante mais alguns meses, de modo a que alguém a remoçasse em melopeia cândida e dolente. Afortunadamente, encontrá-la-íamos quando regressávamos a Bissau, a caminho de um outro futuro mais promissor.

Procurámos perceber as causas desse estancamento repentino, e agora nos lembramos que, naqueles tempos de antanho, havia imensas dificuldades para transpor as fronteiras do império. A autocracia totalitária tudo abafava, inclusive o exaspero ou o desalento.

Nos tempos de agora, o hino de Gandembel, cativantemente, nos vem seduzindo e incontidamente nos emudece, já que ele teve o condão de aglutinar miríades de recordações marcadas por aquele frenesim delirante que aquela tremenda Guiné tantas vezes nos avassalou.

Deleitantemente, houve enlevos que parecem ter-se mantido para sempre, até à chegada 
do dia-noite final, em que definitivo, nos havemos de separar. (...)


[Continua]


(**) Fonte:  REIS, Idálio - A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana. Ed. de autor, [Cantanhede], 2012, pp. 198-201.
___________________


Nota do editor:


(*) Vd poste anterior da série > 28 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9672: Cancioneiro de Gandembel (1): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte I) (Idálio Reis) 

5 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Eu olho para a foto e vejo-a de uma forma. Outro irá vê-la de modo diferente. Eu sinto aquele local como um dos meus locais de passagem, local onde vivi.Não,não é
Agora,quatro décadas depois, pergunto eu: que Povo somos nós que por ali passamos e íamos cantando...que Povo somos nós para merecer, ontem ou hoje, pelo que passamos ou estamos a passar? Eu, que sou Português com orgulho no Povo a que pertenço, pergunto: quantos aguentariam viver assim lá ou cá? E cá vamos cantando e rindo levados...levados sim...e ainda aparecem outros.! Alto. Por aqui fico. Era bom viver, certamente que era, na Ponte Balana , Gamdembel e etecetera...
Saíram as palavras e saem também abraços do T.

Luís Graça disse...

Gandembel, Mansambo... O mesmo universo concentracionário, demencial, claustrofóbico... É espantosa a capacidade do ser humano em geral (não tem nada a ver com o ADN português) de viver e de sobreviver em situações-limite...

PS - Torcato: Conheci hoje o António Vaz. Mandou-te um caloroso Alfa Bravo. Está com ótimo aspeto. Aceitou integrar o blogue com o nº de tabanqueiro 544... Conheci, também, imagina o ex-Cap José Aparício, o último comandante de Madina do Boé... Dois fãs do nosso blogue...

Zé Teixeira disse...

Fui um "mirone" de Gã Dembel ou melhor, Gandembel. Durante cerca de 6 meses acompanhei de perto aquele festival de terrífica música de morteiradas e canhoadas. As cenas repetiam-se de dia e de noite. De Tchangue Laia para a frente, onde havia uma placa que dizia, salvo erro, "Aqui começa a Guiné independente" tudo era tenebroso. Era o principio da carreiro da morte. Os buracos dos fornilhos sucediam-se aterradoramente, a mata fechada, o silêncio - até a passarada parece que tinha ido de férias. A atenção redobrada de cada um de nós... e o coração a palpitar. Um pouco mais à frente, surgia gente nossa da C.Caç 2317. respirava-se um pouco melhor e logo ali à frente surgia o pequeno destacamento de Balana, onde estava creio eu, o Hugo Guerra. Hoje nesse local de paz lavam as mulheres a sua roupa e até os elefantes por lá passam.
Gandembel vem a seguir depois de uma leve subida e uma ligeira curva. Hoje há apenas floresta e uma planta a florir que lá deixei em 2008 numa romagem que foi o principio do fim ou seja encontrei a paz comigo mesmo e enterrei a guerra que me roía as entranhas e por vezes me atormentava alta noite. Os testemunhos materiais, os restos das casernas de betão vão sendo cobertos pela terra do esquecimento até que alguém ouse reescrever a história do local.Há algures por lá perto os restos de um Fiat que em fins de Julho de 1968 vi passar a arder e despenhar-se na mata ali por perto. Era o nosso protector aéreo, enquanto penosamente protegíamos uma coluna que ia levar mantimentos aos "toupeiras" de Gandembel.
Idálio. Deixa-me expressar a mina gratidão por teres avançado com o livro e agora com o desenvolvimento sobre as vossas canções. estás a construir um pouco da história da guerra que tanta gente procura abafar, a começar pelo desprezo que votam a todos nós que forçadamente a fizemos.
Zé Teixeira

Zé teixeira disse...

Deixa-me recordar que em 2010 tive oportunidade de conversar com um grupo de ex-guerrilheiros do PAIGC a viverem em Farim do Cantanhez. Da conversa pude apurar que quando Portugal decidiu avançar para Gandembel, o PAICG, comandado pelo Nino, deu instruções a seis dos seus grupos estacionados grande mata do Cantanhês,localizados nos arredores de Catió,Bedanda, Cacine, Cabedú e creio que Gadamael para cercarem Gandembel e por aí ficaram até as tropas portuguesas abandonarem a posição. Pode deduzir-se desta informação a força de fogo que o inimigo tinha na área. Segundo o mesmo grupo eles assentaram perto de Gandembel e substiuim-se nos ataques de modo a baralhar a aviação, pois atacavam uma vez do norte para logo a seguir atacar do este ou sul,etc. por outro lado continuavam a flagelar as outras tabancas desde Buba a Gadamael, deslocando-se pelo interior da mata que à data era muito cerrada e lhes permitia caminhar durante o dia sem grande risco.
Zé Teixeira

Anónimo disse...

... «Tchangue Laia»?!
Não será Changue-Iaia?
Em assuntos de toponímia "do Cantanhez", a palavra aos peritos desta casa.
Cpts,
JCAS