terça-feira, 6 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9567: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (14): O Tininho da feira

1. Em mensagem do dia 1 de Março de 2012 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:


Outras memórias da minha guerra (14)

O Tininho da feira

O Tininho era o filho mais novo da família dos Quintelas. Eram cinco rapazes e duas raparigas. Trabalhavam todos em conjunto como negociantes de gado. Eles andavam de feira em feira, tal como o pai, e elas tratavam da casa e do gado. Como a mãe faleceu cedo, elas eram bastante acarinhadas pelos irmãos. Apenas o Tininho fez a escola primária. Razão porque eram vulgares as piadas a gozar com essa situação de iletrados, especialmente com o velho Quintela que, apesar de exibir um bonito relógio de bolso, preso por uma valiosa corrente, não sabia dizer as horas.

Os Quintelas não casados viviam na casa paterna, junto ao largo da feira de Lourosel. Era ali que se juntavam, discutiam e apuravam as estratégias para o negócio em equipa. Eu, ainda miúdo, tive a oportunidade de os ver trabalhar. Em dias de feira, dois deles deslocavam-se pelo caminho normal de acesso do gado. Um ficava a mais de um quilómetro e o outro a uns 500 metros. Outro estava à entrada da feira e o velhote e o filho mais velho, iam lá mais para o interior da feira do gado. O lavrador começava a ser influenciado logo no primeiro contacto. Ali, tomava conhecimento dos defeitos e valores do animal e do conselho “desinteressado” daquele senhor. Adiante, a cena repetia-se e, à entrada da feira, já o terceiro Quintela “abusava” dos valores fornecidos anteriormente e desafiava o vendedor a consultar outros negociantes, ao mesmo tempo que o estava a encaminhar para os seus possíveis compradores. Se, por acaso, algum comprador alheio ao esquema se metesse no negócio, era certo que em poucos minutos havia porrada da grossa. Eles, juntos, “amoleciam” qualquer valentão.

Também me recordo de ter visto carregamentos do gado, para levar para a Malveira. Faziam-no ao princípio da noite, de forma a chegar lá de madrugada. Naquela época (início dos anos 50), havia doença no gado, o que se prestava a negócios bastante vantajosos. Porém, algum gado morria antes de partir, e para que ele se aguentasse até à Malveira, pregavam uns barrotes atravessados no camião, de forma a manter o animal de pé. Dizia-se que alguns chegavam lá mortos. É esta a razão por que, falando-se de um doente, se costumava dizer, em tom de brincadeira:
- Sim, sim, esse está bom é para ir para a Malveira.

Ao Tininho não faltava nada. E como ele sempre foi de pequena estatura, beneficiava de um tratamento mais mimado. Até nos jogos de futebol improvisados junto à capela quase não se lhe podia disputar a bola. É que ele, às vezes, zangava-se e ameaçava levar a bola para casa. Por outro lado, gozava do proteccionismo exagerado dos irmãos, sempre munidos de bengala e de uma exuberante naifa de Fafe. Como ele tinha a voz muito fina e a cara muito lisa, também era conhecido por Tininha. Porém, ninguém tinha coragem de o chamar por esse nome, embora não faltasse vontade. Apenas o vizinho Ramião, filho da Dora Vadeca e de pai incógnito, que era deficiente de uma perna e meio atrasado mental, contrariava esse receio. Digamos que para o Ramião era um prazer enorme mostrar a sua coragem. Então, sempre que oportuno, exibia a sua voz grossa, entrecortada e pouco perceptível, e atirava:
- Tafôôuda Tinênha. Pareces mesmo uma Tinênha boieira!

- A Tininha está aqui. – gritava o Tininho com aquela voz feminina, enquanto apertava o centro das pernas provocatoriamente, dando azo à desejada gargalhada geral .

No entanto, o Ramião já havia sido apertado. Quem o safou dos Quintelas foi a GNR, depois dos gritos protectores da sua mãe e a solidariedade dos vizinhos.

O Tininho, que saiu tarde da escola, manteve a sua meninice até à tropa. Sim, ele foi à tropa. Já andava no CICA do Porto, quando rebentou a guerra em Angola. Em pouco tempo foi mobilizado e partiu para Luanda. Como andava sempre endinheirado, não foi difícil obter alguma predominância entre os seus camaradas. Acabou por ser o protegido de um primeiro-sargento, que o indicou para impedido de apoio a um Major, que vivia com mulher e duas filhas, em idade escolar.

As irmãs Quina e Micas, eram vaidosas e gostavam muito de mostrar o seu corpo avantajado, através das roupas ajustadas. E para salientar mais as mamas, atiravam provocadoramente o peito para fora. Digamos que, para aquela época, elas eram umas mulheraças. No entanto, o tempo ia passando e elas pareciam não segurar os namorados, talvez devido à falta de humildade e à sua apetência para mandar. Gostavam muitos das festas de arraial e de frequentar as actividades religiosas. E foi na frequência da igreja que elas desenvolveram uma relação com a família Santana.

O velho Santana, um conhecido industrial de cortiça, além da missa, gostava de ir ao cemitério com a sua neta Bélinha (Isabel), onde rezavam por alma do pai e da avó. O Sr. Santana costumava dar boleia às manas Quintela. A Bélinha, que cedo ficou órfã de pai, tinha a mãe bastante debilitada de saúde. Viviam em casa do avô Santana, que muito as acarinhava e amparava. A Bélinha, que estava internada num colégio de Freiras, só vinha a casa durante fins-de-semana. Ela era a alegria da família, incluindo os dois tios já casados.

Foi grande a alegria dos Quintelas ao receber de volta o Tininho, vindo da guerra de Angola. O rapaz que sempre fora mimado pela família, via esse afecto redobrado devido aos dois anos de ausência. Por outro lado, as manas faziam tudo para que a imagem de menino efeminado, fosse ultrapassada rapidamente. Compraram-lhe um carro VW azul claro, vestiram-no de tudo que era bom (foi dos primeiros a usar camisas TV) e adornaram-no de anéis, relógio de luxo, alfinete de gravata, etc. Embora não fosse bem o género de jovem moderno dos anos 60, ele, quando saía, cheio de pose, no carro a brilhar, de óculos Ray Ban e carregado de Brilcream na cabeça, era uma tentação para um certo género de miúdas. Porém, parecia não ser feliz nas suas conquistas porque, após os primeiros contactos, elas não mostravam interesse no relacionamento.

Agora, que dispunham de carro e de condutor, as manas Quintela mostravam-se mais. E, da igreja, chegaram a trazer a Bélinha, com a devida anuência do Sr. Santana. Como a Bélinha, já com 16 anos e corpo feito, praticamente não tinha outros contactos fora da família e do colégio, mostrava alguma simpatia com o ambiente amistoso das manas Quintela, agora também manifestado pelo irmão Tininho.

- Senhor Santana, como a Bélinha está de férias da Páscoa, podia ir connosco a Fátima, no próximo sábado - dizia a Micas, à saída da igreja, das cerimónias da Semana Santa, que continuou:
- Temos que ir lá a pé cumprir a promessa que devemos pelo meu irmão mas, por agora, só queremos ir à missa agradecer o seu regresso da guerra e dar umas voltas de joelhos na Basílica.

Respondeu, concordando, o Sr. Santana:
- Está bem, mas venham cedo porque a quero em casa antes do jantar. Sabem que a minha filha é doente e não pode ter aflições.

Tudo correu pelo melhor, quer na parte religiosa quer durante o almoço. O ambiente não podia ser melhor. Porém, no regresso, perto da Curia, o carro abrandou, parecendo avariado. O Tininho, mostrando alguma surpresa, pediu às irmãs que lhe dessem um pequeno empurrão. A Bélinha também queria ajudar mas disseram-lhe que não era preciso sair do carro. O carro avançou e o Tininho começou logo a dar sinal de querer voltar para trás. No entanto, quando voltou a sul, não parou e seguiu com a Bélinha. Neste caso, a forma mais correcta de dizer seria: fugiu com a Bélinha!!!

O escândalo rebentou. A desrespeitada e conservadora família Santana, entrou em desespero. E, como ferida no seu orgulho, não podia aceitar qualquer desfecho apaziguador. Por isso, moveu desde logo todos os meios para interceptar o raptor.

Só na manhã do dia seguinte o carro foi localizado perto de Mafra. Soube-se, também, que a Bélinha estava doente e que não seria aconselhável viajar nessas circunstâncias.
- Se a desonrou, tem que casar com ela - diziam uns.

- Isso quer ele. Por isso é que ele fugiu com ela – diziam outros.

- Ele não tem categoria para uma miúda daquelas. Além disso, mostrou que é um animal – diziam ainda outros.

- É evidente que as matronas ajudaram ao golpe - acrescentavam as más-línguas.

Pouco se sabia de concreto sobre o que se passara. O certo é que a miúda, ao fim de três dias, veio mesmo doente para casa, onde se manteve incontactável. O Tininho não se inibia de publicamente, fazer juras de amor e da vontade de “pagar” o seu apaixonado impulso mas, a família Santana, nem o queria ver por perto.

A Bélinha faleceu, pouco tempo depois. Havia gente que acusava a família por ter preferido a sua morte à desonra ou ao seu casamento forçado.
Bastante debilitada, a mãe da Bélinha não aguentou mais que dois meses, o choque daquela tragédia.
E o Tininho foi para a cadeia de Custóias, cumprir 14 anos de prisão.

Mais tarde, quando se perguntava por ele, pouco ou nada sabiam dizer. Como não era benquisto na zona, mudou-se para parte incerta. Também diziam que se dedicava, profissionalmente, à vida nocturna, talvez fruto das ligações adquiridas na prisão.

Há cerca de 10 anos, casualmente, encontrei-o. Eram altas horas da madrugada, quando fui abastecer o carro de gasóleo numa área de serviço, aberta toda a noite. E, quando estava a tomar qualquer coisa ao balcão, ele passou pela frente e foi colocar nas prateleiras umas revistas e os jornais do dia. Ao virar-se para os clientes do balcão e demais pessoal da noite, olhou-me e exclamou:

- Tu és o Zeca, não és? Há quantos anos não te vejo!!!

Disse-lhe que tinha casado em Crestuma e que vivia lá. E perguntei:
- E tu, que fazes?

- Faço vida lá no Porto. Comprei isto há pouco tempo mas dá-me muito trabalho. Não imaginava que custasse tanto.

Curioso, acabei por perguntar:
- E as tuas irmãs, que é feito delas?

Ele respondeu:
- A Micas já morreu e a Quina vive comigo.
- Não casaram? – perguntei.
- A Micas, não. A Quina namorou com o Tono da Lagoa durante dezassete anos e esteve casada com ele um ano e picos. O fdp, disse-lhe que ia visitar um primo a França, para ver se valia a pena mudarem-se para lá, e nunca mais apareceu. Viemos a saber que tinha fugido para a Venezuela.

E continuou:
- Um gajo que faz uma coisa destas a uma mulher, merecia que lhe cortassem o pescoço!

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste de 28 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9411: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (13): Vícios ou frutos da época

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