quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9518: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (2): Frutuoso João Ferreira, natural da Lourinhã, 1º cabo at cav, 3ª C/BCAV 8323/73 (Pirada, nov73/ago74)

1. Faltam-nos, no nosso blogue, depoimentos dos "últimos guerreiros do império". Por uma razão ou outra (pudor, medo de censura social, falta de tempo, de disponibilidade,  de motivação, etc.), muitos dos  nossos camaradas que chegaram à Guiné nos  último meses que antecederam o fim da guerra e o regresso a casa, ainda não passaram para o papel ou para o ecrã do computador as suas memórias desse tempo, e os sentimentos contraditórios que muitos terão experimentado aquando da retração do nosso dispositivo militar e do "regresso definitivo das naus"...

Percorrendo a Net fui encontrar o depoimento de uma camara da minha terra, que esteve no TO da Guiné durante um ano (Set 73/Set 74) e que pertenceu ao BCAV 8323/73. Esse depoimento está publicado no sítio do Jornal das Caldas (edição em linha) (Jornal regionalista,  tem como diretor Jaime Costa e chefe de redação Francisco Gomes). Tem também uma página no Facebook

Por se revelar de grande interesse para os nossos camaradas que estiveram no leste da Guiné, no final da guerra (*), tomamos a liberdadade de reproduzir aqui, com a devida vénia, um excerto extenso do artigo. Os nossos parabéns ao autor do artigo e ao seu jornal. Um Alfa Bravo para o nosso camarada Frutuoso (e, no meu caso, conterrâneo). (LG)



Memórias da Guerra na Guiné > Frutuoso Ferreira > Jornal das Caldas, 28 de Janeiro de 2009 

Frutuoso João Ferreira foi 1º cabo atirador do Batalhão de Cavalaria 8323, na Guiné, em 1973/74.  Nasceu em Abelheira, Lourinhã, há 56 anos. Antes de cumprir serviço militar foi pedreiro da construção civil. Depois, quando regressou da Guiné à sua terra natal, continuou nessa profissão por mais quatro anos. Em 1978 tornou-se guarda-fiscal. Desde 2005 que está em situação de reserva da Brigada Fiscal da GNR. (...)


Assentou praça em Elvas, no Batalhão de Caçadores 8, em 14 de Maio de 1973, e foi tirar a especialidade em Estremoz, no Regimento de Cavalaria 3. Tinha 20 anos. 

“Quem vivia nos meios rurais, como era o meu caso, de política pouco ou nada conhecia, mas como qualquer bom português que se prezasse, o ânimo que tínhamos era que estávamos a servir a Pátria”, relata.

No dia 22 de Setembro de 1973 embarcou no Niassa (...). Ia o [BCAV]  8323 e mais dois outros batalhões e uma companhia. Levaram uma semana a chegar à Guiné. Alcançaram Bissau e entraram em lanchas [, LDG,] que os transportaram até à ilha de Bolama, onde estiveram um mês a tirar o IAO  (...)

O batalhão adoptou o nome “Os cavaleiros do Gabú” (Gabú era a região onde esteve). O comandante do Batalhão era o [tenente] coronel Jorge Mathias, da Ericeira.

 “Eu estava no 4º pelotão da 3ª companhia, comandada pelo capitão Ernesto Brito, de Lisboa. O alferes Alípio Cunha, de Vila Nova de Famalicão, comandava o meu pelotão e havia três furriéis – o Sousa, o Simão e o Esteves. Os outros comandantes de pelotão eram os alferes Manuel Gonçalves, Rodrigo Coelho e António Pereira, respetivamente do Fundão, Pinhel e Amarante”, descreve.

O comandante da [CCS] era o tenente Francisco Costa, de Coimbra. O capitão Ângelo Cruz, da Amadora, chefiava a 1ª Companhia, enquanto que o capitão Aníbal Tapadinhas, de Lisboa, comandava a 2ª. Integrava ainda o Batalhão a [CCAÇ 11], que tinha à frente o capitão Nuno Sousa, de Lisboa.

“Quando acabou a formação, regressámos no dia 31 de Outubro a Bissau e deslocámo-nos para Pirada, uma pequena povoação que ficava a poucos metros da fronteira do Senegal, onde o inimigo – os guerrilheiros do PAIGC – tinha algumas das suas bases”, indica.

Em Pirada estava a CCS e a 3ª companhia:

 “A nossa missão era proteger  [a sede do batalhão,] e as populações locais – os brancos que lá havia era só um casal de comerciantes e a filha – e patrulhar constantemente aquela zona para que o inimigo não tivesse nenhuma progressão no terreno. Havia um campo de minas e todos os dias íamos lá para ver se tinha acontecido alguma coisa. O certo é que os guerrilheiros do PAIGC nunca foram ao pé do arame farpado para nos atacarem”, lembra. “Mas desde a fronteira eles disparavam mísseis [ foguetões 122 mm] e nós respondíamos com os velhos obuses 14, que tinham menos alcance”, sublinha.

“A 1ª companhia foi para Paunca e a 2ª para Bajocunda e nós tínhamos de ir abastecê-las. Foi numa dessas alturas que passei o primeiro susto e momento aflitivo. Quando íamos para Bajocunda, a 13 de Dezembro [de 1973], foram detetadas várias minas anticarro. Toda a gente se protegeu, ficando só o sapador da CCS – o soldado Fernando Almeida – que as levantou. Repetiu a operação quatro vezes, só que a seguinte foi-lhe fatal”, narra.

“Gritava ele para o alferes Alípio Cunha, dizendo-lhe, satisfeito, que ao levantar a quinta mina já tinha dinheiro para ir à metrópole de férias (a passagem de avião custava cerca de quatro mil escudos – 20 euros) – os sapadores recebiam do Estado mil escudos (cinco euros) por cada mina anticarro que levantassem – mas a mina estava armadilhada com outra antipessoal e rebentou”, prossegue.

“O corpo ficou todo desfeito aos bocados, espalhados pelo mato. Um pé foi cair à minha frente. Juntou-se o que se pôde e ficámos muito impressionados e desmoralizados. Não estávamos assim há tanto tempo na Guiné e já havia uma baixa. A partir daí sentimos que estávamos na guerra a sério”, comenta Frutuoso Ferreira.



No dia 18 de Dezembro houve um ataque inimigo a Amedalai e a 7 de Janeiro [de 1974]  houve em Bajocunda uma emboscada com armas ligeiras a uma coluna que ia abastecer um pelotão que estava em Copá. Morreram dois soldados – Sebastião Dias e José Correia, da 2ª Companhia, que ficaram em cima das duas Berliet destruídas. O pelotão a que pertencia foi escalado para ir lá buscar os corpos e tentar trazer o que restava das viaturas, operação difícil mas conseguida.

Durante o mês de Fevereiro registaram-se várias investidas em Copá e Bajocunda. A 1ª companhia também sofreu ataques e morreram o 1º cabo António Ribeiro e os soldados Rui Patrício, Silvano Alves e José Oliveira.

“Passados uns dias fomos fazer protecção a Sissaucunda, povoação a quinze quilómetros de distância de Pirada, com meia dúzia de palhotas. Cada pelotão permanecia naquele fim do mundo durante um mês. A nossa alimentação era ao almoço arroz com marmelada e ao jantar esparguete com atum. No dia seguinte era quase a mesma e só variava com arroz com salsicha”, conta.

O PAIGC quis juntar-se à "festa” e no dia 13 de Abril [de 1974]  brindou-os com um ataque de mísseis lançados desde o Senegal. O destino era Pirada

“Vi os mísseis passarem por cima de Sissaucunda e começámos todos a correr para as valas escavadas no chão para nos protegermos. Sentia os mísseis a ‘assobiarem’ por cima de nós e poucos segundos depois a caírem em Pirada. O objectivo deles era atingir o quartel, mas caíram na povoação e mataram muitos civis”, descreve.

No dia 25 de Abril o PAIGC voltou a atacar Pirada e mataram civis africanos, mas “da nossa parte não houve feridos nem baixas”. 

A partir de 25 de Abril de 1974, em virtude das modificações políticas ocorridas em Portugal, “não tivemos mais problemas na Guiné, porque iniciaram-se os contactos e conversações com os chefes da zona, entre as nossas tropas, o PAIGC e a população. Ainda bem que assim foi, porque a guerra estava tão acesa naquele setor, que se tem continuado mais tempo não sei se estaria cá para contar a história”.

“A primeira vez que encontrámos o inimigo já como amigo, na fronteira do Senegal, houve um sentimento estranho. Mas baixaram as armas e começámos a trocar tabaco e bonés”, conta. E adianta: “Passámos o resto do tempo a recolher material bélico e na companhia do PAIGC a fazer propaganda política”.

A 21 de Agosto procedeu-se à entrega de Paunca ao PAIGC. No dia seguinte foi a vez de Bajocunda e a 25 de Agosto seguiu-se Pirada, com a recolha da CCS e da 3ª Companhia a Bissau.

Ainda prestou serviço no quartel-general em Bissau a guardar o palácio do brigadeiro Carlos Fabião, comandante-chefe das Forças Armadas na Guiné. No dia 4 de Setembro, na parada do BCP 12, em Bissalanca, cerca de 500 homens do [BCAV]  8323 uniram-se em formatura geral, “sentindo cada homem palpitar dentro do seu peito a dignidade do soldado português, que enfrentou os perigos de uma guerra dura”, manifesta Frutuoso Ferreira, que regressou a Portugal no dia 12 de Setembro de 1974.

Francisco Gomes (texto)
Texto e foto: Jornal das Caldas
_________________


Nota do editor:

Último poste da série > 21 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9512: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (1): O caso de Buruntuma e o ultimatum de Bobo Keita, comandante do PAIGC

4 comentários:

Luís Graça disse...

Mensagem enviada hoje ao Jornal das Caldas:

Caro diretor do Jornal das Caldas, caro Jaime Costa:

Tomei a liberdade de reproduzir um grande excerto de um artigo vosso sobre um camarada nosso que fez a guerra colonial na Guiné. O texto, excelente, é do vosso chefe de redação, Francisco Gomes. Os meus parabéns pela iniciativa e pela oportunidade de dar voz a um camarada meu e à causa dos antigos combatentes.

O artigo foi reproduzido, com menção expressa da fonte (e o respetivo link), no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, blogue coletivo com cerca de 540 membros, oito anos de existência, mais de 9500 postes publicados e um número médio de visitas diárias superior a 3500. Espero que me perdoe o abuso, mas é por uma boa causa. Desejo-lhe todo o sucesso para o seu projeto jornalístico. As melhores saudações estremenhas. Luís Graça.

Luís Graça disse...

Continuo sem ter a certeza sobre quem estava no início de julho de 1974 em Buruntuma, cercado - "bluff", à parte - pelas tropas do Bobo Keita... Era a 2ª C/BCAV 8323, do cap Tapadinhas, ou era alguma das companhia do batalhão de Piche, o BCAÇ 4610/73 ? Não consta que nenhum delas (destas últimas) tenha passado por Buruntuma...

Era importante ouvirmos a versão do capitão de Buruntuma... Numa guerra, há sempre pelo menos duas partes, dois beligerantes, e cada um contará a sua história...

José Marcelino Martins disse...

Transcrição parcial da página 299 do 7º Volume da CECA - Tomo II - Guiné:

A 2ª Companhia [BCav 8323/73] seguiu em 15Nov73 para Piche, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCaç 3463, tendo assumido a responsabilidade do respectivo subsector de Piche em 25Nov73, ficando na dependência do BCaç 3883.
Em 24Jan74, mantendo-se no Sector L4, assumiu a responsabilidade do subsector de Buruntuma, por troca com a CCaç 3544, onde se manteve até à sua evacuação em 05Jul74, deslocando-se para Piche.

Comandantes da 2ª Companhia: Capitão Miliciano de Cavalaria Anibal António Dias Tapadinhas e Alferes Miliciano de Cavalaria António Jorge Ramos Andrade.

Anónimo disse...

Camaradas,
Pela 1ª. vez li uma referência a um soldado sapador. Eu fiz o curso de minas e armadilhas no Casal do Pote, talvez durante 5/6 semanas.
A capacidade do formador, bem como as capacidades dos formandos, eram questões essenciais para uma boa apreensão dos riscos sobre os mecanismos objecto do curso. Além do manuel de apoio e de escassas experiências. Lembro-me sempre de uma frase do meu instrutor, que alertava para a necessidade de agirmos com certeza do que se fazia: "nunca se armem em parvos".
Mas outras frases eram bestante conhecidas, e advertiam para o perigo daquela actividade, por exemplo, "só se falha uma vez". Tive ocasião de me confrontar com camaradas que insistiam em querer fazer. Comigo não fizeram, porque não avaliavam suficientemente o risco. E, provavelmente, uma das intenções do pessoal para levantar minas, estaria associada ao prémio consequente, mas poucos saberiam, que era igualmente atribuído a quem as rebentasse.
Também se podem considerar factores de ordem psicológica, como a guerra não é (era) para meninas, ou a vaidade tonta de mexer com o perigo.
Mas quero referir que "vi" muita displicência no manuseio dessas minas, pelo contacto com camaradas que se gabavam dessas valentias, mas que não tinham preparação para identificar um engenho armadilhado, quer por cordão detonante accionado à distância (que pressuponha a presença do IN na proximidade), quer pelo recurso ao disparador de descompressão. Ora, perante casos tão gritantes, acuso de incompetência os comandantes que permitiam aqueles comportamentos, talvez escudados no princípio de que meteram-se à obra, porque quiseram; bem como os senhores da guerra que, no remanso dos gabinetes, não tinham ocasião para pensar naqueles assuntos de lana-caprina. E também não me consta que alguém tenha recebido instrução para numa daquelas circunstâncias, antes de agir com o engenho, o pessoal dividir-se numa acção de segurança, e noutra de bater o terreno, ou procurar sinais de fio enterrado. Esta acção não será tão perigosa quanto deixa perceber, na medida em que as minas AC (as mais armadilhadas) ficavam comprimidas num buraco no solo, e a explosão ganhava uma orientação em cone invertido, com uma pequena margem de segurança. Memo assim... não era de confiar, pois podia esconder um fornilho.
Nas colunas, se não sempre, quase sempre fazia-me acompanhar da bolsa e da corda de sapador.
Abraços fraternos
JD