segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9418: Notas de leitura (328): La Pointe du Couteau, de Gérard Chaliand (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2012:

Queridos amigos,
Gérard Chaliand publicou recentemente o seu primeiro volume de memórias e dedicou páginas de grande beleza a Amílcar Cabral, refere com minúcia a viagem que fez a Conacri em 1964 e ao interior da Guiné em 1966, que deu matéria para um livro que conheceu notoriedade e várias traduções a partir de 1967.
Mais uma peça a juntar à muita bibliografia que já temos em recensão.
A investigação não pára.
Escreveu-me hoje o Leopoldo Amado, temos ai em breve mais um livro.

Um abraço do
Mário


As memórias de Gérard Chaliand e a luta armada na Guiné

Beja Santos

Editado pela conceituada Robert Laffont, no ano passado foram publicadas as memórias de Gérard Chaliand com o título “La Pointe du Couteau”. Chaliand foi um dos primeiros escritores revolucionários a percorrer a Guiné na companhia de Amílcar Cabral (anteriormente tinha percorrido as zonas libertadas Mario Marret autor do filme “Lala Quema” e dois jornalistas franceses).

Chaliand participou aos vinte e cinco anos nos acontecimentos argelinos e cedo verificou que uma grande parte destes discursos ideológicos ditos vanguardistas nem sempre assentava na realidade dos fatos e na sinceridade dos homens. É nessa ocasião que ele parte, a convite de Cabral, para a Guiné. Como ele escreve nas suas memórias, esta experiência decisiva determina a sua existência.

Toda a sua vida de intelectual está ligada ao estudo dos conflitos, por isso ele vai percorrer o Vietname, a América do Sul, os campos Palestinianos da Jordânia, em Israel, no Iraque e no Líbano. Deu numerosas conferências por todo o mundo e a sua bibliografia é impressionante. Poucos intelectuais franceses assumiram tantas responsabilidades como ele no ensino superior em França, em Harvard e Berkeley, mas também Singapura, a Cidade do Cabo, Salamanca e Tbilissi. Procede-se à recensão deste seu texto, entre as páginas 233 e 268.

Descreve-o [ a Amílcar Cabral,]como um homem de estatura média, magro, rosto largo e um olhar atento por detrás dos óculos. Considera-o o mais inteligente dos revolucionários africanos, com uma cultura política impressionante e bem fundamentada. Recorda como a sua intervenção na Conferência Tricontinental, em Havana, em 1965, introduziu uma leitura completamente diferente sobre os movimentos revolucionários, a sua conceção de vanguarda dirigente estritamente associada à base social de apoio, uma leitura que inquietou a ortodoxia vinda de Leste.

Conheceram-se na Argélia, no princípio de 1963, foi nessa altura que Chaliand pediu a Cabral para ir à Guiné estudar as condições da luta armada no território. Cabral fizera convites a outros visitantes de muitos países, só Chaliand e dois chineses é que apareceram em Conacri. Escreve que a imensa vantagem que Cabral tinha sobre a maioria esmagadora dos dirigentes africanos era o conhecimento do terreno, e explica o seu trabalho no recenseamento agrícola da Guiné nos anos 50.

Em Conacri, Chaliand visita a escola de quadros e regista como os revolucionários procediam à abordagem das populações e como, com toda a franqueza, expunha os seus fiascos. Importa não esquecer que a viagem posterior, em 1966, irá dar um livro com várias traduções depois de publicado, em 1967, pela então incontornável editora Maspero, com o título “Lutte armée en Afrique”, cuja recensão já foi publicada no blogue.

Em 1966, Chaliand vai mesmo percorrer o interior da Guiné, o que não fizera em 1964. Saíram de Dakar e entraram no território guineense a partir do Senegal, irão ser acompanhados por Titina Silá, José Mendes, quadro do MPLA, ao seu encontro vem, Osvaldo Vieira, responsável militar da Região Norte. Viajam em direção ao Morés, é uma descrição sóbria, cortante, o viajante sabe que corre mutos riscos, interessa-lhe apurar a vibração existente nas bases de guerrilha, aperceber-se da moral dos combatentes, da qualificação militar e do apoio efetivo das populações. Não esconde o deslumbramento pela qualidade das intervenções de Cabral, o recurso a imagens apreensíveis, a exaltação dos direitos das mulheres, o repúdio por qualquer tipo de neocolonialismo; vai rebatendo a argumentação das autoridades portuguesas na Guiné, como refrão refere o trabalho forçado, a palmatória, o chicote e o imposto de palhota.

Dá um quadro da criação do PAIGC que provavelmente não coincide com os fatos hoje conhecidos (aliás, no início desta exaltação Chaliand diz que Cabral era originário de Cabo-Verde), a seguir temo-lo a conversar com Chico Mendes e Osvaldo Vieira, procura captar a lógica de uma base onde a guerrilha proteja a população, perceber qual o papel do comissário político e do comandante militar.

No Morés propriamente dito vê o funcionamento de um hospital de campanha e pela primeira vez sente os aviões a largar bombas muito perto. Por onde quer que passe, Cabral reúne com as populações e discursa, apela ao fomento da produção, à camaradagem, à disciplina e à denúncia dos déspotas da guerrilha que procedem como senhores feudais. Chaliand regista as suas conversas com António Bana, outrora mecânico, é ele quem clarifica a natureza do papel mobilizador entre 1961 e 1963, como foram desencadeadas ações de sabotagem a partir dos finais de 1962 e se alcançaram grandes progressos no Sul, de 1963 para 1964 operou-se uma relativa clarificação nos apoios das populações, por essa época já era elevado o número de quadros militares e o armamento melhorara substancialmente.

Ainda de acordo com António Bana, a partir de 1965 fora tomada a decisão de não responder com barbaridade aos atos de repressão dos portugueses (convenhamos que esta argumentação é falaciosa e desfasada de inúmeros atos de barbaridade perpetrados por forças da guerrilha, inclusivamente contra outras populações africanas). Chaliand é inteirado da organização das FARP, vê com os seus olhos o armamento.

É em Djagali que Chaliand regista a peça de oratória mais empolgante de Cabral, ao dirigir-se à população o líder do PAIGC pede ao mundo para estar atento ao que ali se passa, há vida nova que ali se organiza, ao progresso que há de vir, não há maior vitória que a do progresso, fundamentado na escolaridade, nos melhores indicadores de saúde e na criação da riqueza apropriada por todo o povo. Chaliand escreve que impressiona a consciência aguda que Cabral tem dos defeitos e das necessidades da sua sociedade.

E depois é a torna-viagem, Chaliand escreveu o que viu, o seu trabalho iria ser elogiado por grandes especialistas da contrainsurreição. Ao longo dos anos foram-lhe chegando notícias do desaparecimento de guerrilheiros que ele conhecera: António Bana, Chico Mendes, Titina Silá. Chegou-lhe a notícia que ele não confirmou de que Osvaldo Vieira teria estado em contacto com os portugueses. Veio a morte de Cabral e depois no Outono de 1973 o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau pelas Nações Unidas. Ele lembra-se da receção que teve em Cabo Verde, em 1975, ali se encontrou com Abílio Duarte, Aristides Pereira, Dulce Almada e Pedro Pires.

Anos mais tarde, Lucete Cabral, então mulher de Luís de Cabral, numa homenagem a Nelson Mandela, quando o abraçou disse-lhe: You are the best ao que este respondeu: No, there is Cabral. Chaliand, de forma lacónica, repertoria as etapas seguintes da vida da Guiné-Bissau, num duro contraponto com a democracia cabo-verdiana.

Ao findar as suas recordações de Cabral, volta a referir que ele foi um dos raros africanos do século XX que possuiu o estatuto de um dos grandes dirigentes do mundo contemporâneo, a despeito da dimensão do país. Foi em nome dessa recordação que Chaliand abriu a exceção, ele que tem recusado todas as condecorações, e recebeu a medalha Amílcar Cabral que lhe foi dada pela República de Cabo Verde, a mais alta distinção do país. E termina assim: “Tu contaste muito para mim, pelo teu exemplo, a tua coragem tranquila, a tua inteligência das situações, o teu saber, o teu gosto repartido entre a poesia e o teu prazer de viver e de agir para mudar, modestamente, a ordem suposta das coisas. Tenho sempre a tua fotografia, em tamanho grande, em farda de combate, colada no interior da porta do meu armário, justamente para mim”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9407: Notas de leitura (327): Bordo de Ataque - Memórias de Uma Caderneta de Voo e um Contributo para a História, de José Krus Abecasis - II Volume (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

"Considera-o o mais inteligente dos revolucionários africanos, com uma cultura impressionante e bem fundamentada".

É um elogio deste escritor, que pode ser aplicado a todos os portugueses luso-africanos como Amilcar Cabral que lutaram no PAIGC, FRELIMO, UNITA, MPLA menos na UPA que foi um movimento tribal.

(Pinto´s de Andrade, lúcio Lara, alguns Van Dunem e uns Boavida, e milhares que ou ficaram em cima do muro ou nunca acreditaram mas tinham as mesmas qualidades)

Este escritor, e outros, ao não associarem Amilcar a uma equipa de trabalho, ao isolarem-no como "Lider" e ao distinguirem-no, tambem ajudaram a "matá-lo".

Os Caboverdeanos tinham muito orgulho no Amilcar, mas "adivinhavam" que não ia ter bom fim.

Ao dizer isto posso parecer parvo, mas ouvi em crioulo a caboverdeanos velhos, colegas de profissão dizer baixinho "Amilcar é parvo". Muito antes de o assassinarem.

Muitos caboverdeanos que diziam e/ou pensavam assim moram em Chelas ou em Cacem e Amadora.

Mas teem um orgulho enorme no Amilcar.

Já o irmão Luis, estava "sozinho", ou dava essa sensação, quando o derrubaram.

Mas, de fora, adivinhava-se o fim.

Mário, já que estás com tanta trabalheira, tenta se puderes analizar uma leitura sugerida num coment a um post de J.Belo.

Onde está patente as diferenças entre o "racismo" luso o "racionalismo" sueco.

Cumprimentos