sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9376: Notas de leitura (324): Passadas, recordações de um aluno do Liceu Honório Barreto, de António Estácio (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
Tomei a iniciativa de pedir ao António Estácio que me deixasse consultar estas memórias em torno da sua vida liceal, fiquei varado pela reconstrução, a carpintaria da escrita apropriada, o registo de histórias que, mesmo por diferentes itinerários, cada um de nós viveu. Acho uma tremenda injustiça esta colectânea de lembranças ficar no olvido. Injustiça até para a cultura guineense. Injustiça porque é prosa muito boa. É muito raro voltarmos à adolescência com tantos pensamentos positivos e lembranças tão sadias como o faz o António Estácio.

Um abraço do
Mário


Traquinices da mocidade no Liceu Honório Barreto, entre 1958 e 1964

Beja Santos

Guardamos, todos nós, recordações das brejeirices e dos actos azougados que praticámos e ajudámos a praticar nos bancos da escola. Os comentários em voz alta nas cadeiras de trás, o professor enfurecido a perguntar quem foi, os tempos das bombinhas de mau cheiro, a malta a ser apanhada a ler revistas…

Nenhum de nós escapou à zomba e à mofa, às faltas colectivas e às barracas durante a imprevista prova oral. E havia as praxes, recordo como se fosse hoje no meu 3º ano em que me coube, logo no início da aula, pedir ao senhor capitão Figueiredo, o professor de Físico-Química, no dia 9 de Abril, ele que era um dos últimos veteranos da batalha de La Lys, que fizesse o favor de explicar à turma, resumidamente, o que tinha sido a batalha, estávamos mortinhos por saber. O senhor capitão Figueiredo fechou o livro dos sumários, ganhou balanço e deu-nos cerca de 45 minutos de ofensiva alemã e tudo fez para justificar o comportamento do Corpo Expedicionário Português. No final, em voz pausada, disse à turma: percebi muito bem que não queriam que eu desse aula; pois bem, vão levar uma lista de 15 exercícios que me entregam no próximo dia.

“Passadas, recordações de um aluno do Liceu Honório Barreto”, por António Estácio, edição do autor, Macau, 1992, é um livro espantoso, não merecia ficar confinado a umas centenas de exemplares, o nosso confrade vazou com melancolia e prodígios de memória um conjunto de passadas (em crioulo da Guiné, estórias, algo que aconteceu e se recorda) e gozos (também em crioulo, brincadeiras, partidas ou piadas). Mesmo admitindo que recebeu muitos contributos, o produto final é uma viagem pela mocidade num estabelecimento de ensino, no pré-anúncio e nos primeiros anos da guerra.

Descreve o liceu instalado em dois pavilhões, o Pavilhão de Baixo e o Pavilhão de Cima. Elenca os nomes dos reitores e dos professores, mostra-nos a salas de aulas e depois entramos no primeiro ano, quase nos sentamos ao lado do Conduinho ou Xandinho, do Lapin, do Tátá, do Carlitos, do Tchengo, do Gui, do Jack Alex, entre algumas dezenas. Os professores também tinham alcunhas: o Dr. António Penedos era conhecido pelo Garú Garú; a professora de Francês era a Dr.ª Clara Shwartz da Silva, mãe do Pepito. Havia alcunhas cruéis, pois claro. A professora de Matemática era a Sr.ª D. Fernanda Barroso (Nha Cassequé) pessoa extremamente magra cuja alcunha provinha da sua semelhança com o peixe seco. O Dr. Aguinaldo Veiga, professor de Ciências Naturais, tinha a alcunha de Aguinaldo Boca, por ser homónimo do personagem cantado numa coladeira muito em voga na altura. Cada professor tem direito às suas histórias e às facécias dos alunos. O Dr. Aguinaldo chamou o Erasmo Serra e perguntou-lhe o que era um rio. O Erasmo pôs-se um tempo a pensar, a malta já gargalhava à espera de o ver disparatar, eis que lhe sai uma soberba definição: rio é uma corrente de água permanente sempre em repouso.

A turma era levada da breca, os professores perderam a paciência, entrou por ali o reitor que anunciou a trinta alunos atemorizados que fora decidido cair sobre aqueles prevaricadores a espada de Dâmocles para os punir exemplarmente. António Estácio escreve e desatei às gargalhadas: “Eramos todos muito novos, uns começaram logo a chorar. Senti um aperto no coração”. Havia relatos de futebol na turma, cachações e lambadas, punham-se migalhas nos livros de ponto. Os anos passam, continua o alvoroço e a balburdia em muitas aulas, o sumário da disciplina de Educação Física e Lavores dizia invariavelmente: “Corridas e saltos”. Os professores vociferam, chamam palerminha e invertebrado aos alunos torcidos nas carteiras. O Dr. Brandão mostra a um aluno o discóbolo e pergunta-lhe o que é e ele responde que é o homem do disco, o professor corrige, e o aluno retorque: é isso mesmo Sr. Dr., eu é que já não me lembrava do nome dele… Nas salas de aulas circulam cães, há claques furiosas de benfiquistas contra sportinguistas, no 4º ano o António Estácio chumba, nessa altura o Tita que escutava na rádio umas lições da BBC dizia a hora I don´t know, o capitão Freire era conhecido pelo Dr. Tell me. Temos depois o segundo 4º ano, estão lá o Gil Bundas, o Toni Porquinho, o Zé Grilo, o Pepito, a Chécha, a Mimela e o Corrente Eléctrica. A guerra já está no horizonte, o professor de matemática era o major Rebelo de Carvalho, dava Canto Coral uma senhora cujo marido era sargento dos fuzileiros especiais. Na aula de História o Armandinho Salvaterra ouve falar numa convenção, tratado ou acordo de Salvaterra de Magos, estava distraído e levantou-se meio atrapalhado dizendo: Pronto! Presente! A professora pede um microscópio, o servente, o Sr. Saná, que não sabia falar português, ficou às aranhas e os velhacos disseram-lhe para ele ir buscar um balde com água, a professora mandou-o pôr o microscópio em cima da secretária, a Dr.ª Palmira Lopes enfureceu-se, houve para ali um pandemónio dos diabos. Inevitavelmente, vem à baila uma história com grilos nas suas invasões periódicas. A malta apanhava dois ou três, metia-os nas caixas das carteiras, as alunas ao levantar a tampa da carteira davam gritinhos. Tínhamos baderna na aula.

António Estácio frequenta o seu último ano no liceu em 1963-1964: ia separar-me de colegas e amigos que tiveram ao longo de anos, era o caminhar para uma meta que ambicionava e ao mesmo tempo temia, ia a caminho da Escola de Regentes Agrícolas de Coimbra, na Bencanta. Exara o nome da malta toda e os professores, a Dr.ª Maria de Lourdes Franqueira Castro e Sousa, a Dr.ª Clara Schwartz da Silva, Dr. Caldeira Firmino e o Dr. Costa Brandão. Para dar geografia chegou um sargento do exército que possuía a licenciatura. Como era careca era conhecido pelo descapotável. O António Estácio também fala dos seus fiascos. A Dr.ª Cecília Quelhas era professora de Ciências Naturais, estava em Bissau a acompanhar o marido, mobilizado como militar. Na prova oral, a professora perguntou-lhe quantas cinturas conhecia e ele respondeu lampeiro: duas, a pélvica e a escapular. A professora prosseguiu querendo saber como era constituída a cintura escapular, ele aí estendeu-se: é constituída pelos ossos das coxas.

Lê-se estas “Passadas” como se vê o Cinema Paraíso ou de qualquer forma se regressa aos tempos de inocência, do espevitar para a vida. É o enunciado em torno de uma família que irá deixar lembranças. Até eu encontrei ali nas turmas do António Estácio o João Cardoso que depois da independência será secretário de Estado e com quem trabalharei alguns meses, em 1991. É um liceu que cresce e onde chegam militares como aquele capitão da administração militar que dava aulas de contabilidade na Escola Comercial e Industrial de Bissau, os filhos do governador Vasco Rodrigues partem em pleno terceiro período de 1964, quando o pai deixa de ser governador para ser substituído pelo general Arnaldo Schulz. Estácio também presta homenagem aos diferentes serventes e contínuos, o Cowboy não se fazia rogado, dava luta e respondia a quem o tratava pela alcunha Obo di bó papé (os tomates do teu pai).

Este livro não é só uma agradável surpresa, naquele mundo que se transfigurava o António Estácio recolheu o ar do tempo, guardou religiosamente a linguagem das pantominices e brindou-nos e aos colegas com um texto cheio de candura adolescente.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9361: Notas de leitura (323): Malhas que os Impérios Tecem (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Pois é Beja Santos, como sou apreciador do teu trabalho, mesmo que alguns olhares teus possam ser difrentes dos meus, agradeço novamente a trabalheira das tuas leituras.

Mas desta vez, como interpretas para nós as recordações da vida que se adivinha que foi, de Antonio Estácio, tambem me lembra a mim a vida suave, alegre, tranquila, quente, rica, sem fome, feliz, despreocupada, que conheci em Luanda, Benguela, Lobito Nova Lisboa, Sá da Bandeira e de outra maneira em tabancas onde nunca tinha entrado nem missões nem escolas nem pronto a vestir.

Era essa vida que parecia fácil, que iludiu muitos «emancipalistas» que desapareceram cedo, que afinal era tão simples governar que "nós podemos fazer muito melhor".

Esperemos que breve se possa torne sonhar tranquilo para bem de toda a gente...até para a «nossa juventude altamente preparada» poder ser útil, lá.

Cumprimentos