sábado, 14 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9354: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (48): Bula - estória de uma foto

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 11 de Janeiro de 2012:

Amigo Carlos Vinhal
Segue mais uma estória de “Viagem…” que poderá trazer às lembranças Camaradas que em dado momento se voluntariaram em nome de uma ou outra razão, assumindo riscos que lhes não caberiam. Devo dizer que me merecem todo o respeito.

Que 2012 seja ultrapassado com saúde e que as amizades se fortaleçam.
É o meu desejo para ti e para todos

Abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (48)

Bula – estória de uma foto

Companheiros de guerra havia - julgo que em especial daqueles que pertenciam aos serviços e se encontravam integrados em Batalhões ou Companhias estacionados em centros populacionais mais importantes - que não queriam regressar a casa no final da comissão sem terem saído pelo menos uma vez para o mato.

Uma fotografia carrega (va) com ela uma dessas estórias. Estou cansado de a procurar… não aparece! Sinceramente gostava muito de a encontrar. Na certa não havia (há) outra no mundo… será única esta fotografia original, tirada julgo no terceiro terço de 1972.
Preservei-a religiosamente durante trinta e tal anos … ficou até ver desaparecida, esquecida ou “surripiada” há bem pouco tempo, talvez numa qualquer mostra em reuniões nossas.
Tenho pena que tenha acontecido, pois como disse, carrega (va) com ela uma estória comum a alguns, talvez até a muitos Companheiros da guerra.

Por Bula íamos avançando nas semanas, intervalando ócio e lazer com emboscadas, operações, patrulhamentos e serviços, ansiando pela rendição que parecia não mais acontecer, mas que a cada dia ganho se ia aproximando.

Acontece que, sendo a “FORÇA” uma Companhia de intervenção, mas estacionada num aquartelamento sede de Batalhão, à altura pouco atreito a ataques, havia rapaziada dos serviços que nunca tinha saído para o mato em operações e como tal achariam talvez não terem ainda sentido verdadeiramente aquela guerra.

Assim, um ou outro não querendo acabar a comissão e regressar a casa sem ter minimamente vivido e usufruído dessa experiência, de modo a saberem e sentirem como era, para os finais de comissão e quando sabiam de saída para operações, pediam-nos para integrar o grupo, o que era consentido ou não, dependendo do risco do objectivo, da pessoa e da autorização do Capitão.
Claro que se tentava demovê-los e só o consentíamos se considerávamos o objectivo de pouca probabilidade de confronto, sendo que de qualquer modo o risco existia sempre.

É neste contexto que numa saída para Ponta Matar se apresenta o Lourenço, Fur. Transmissões (o “Metralha”), equipado a preceito e qual “repórter de guerra”, acompanhado da sua quase inseparável “Asai Pentax”(?) pendurada ao pescoço. Instruo-o de que o lugar dele será atrás de mim, que deverá fazer tudo o que me vir fazer, sem despega.

O grupo arranca e lá vamos pela noite cumprindo a missão destinada, que se antevia calma e sem incidentes. A manhã encontra-nos deambulando em plena mata com o Lourenço procedendo como combinado e a assentir que tudo estava bem com ele. O tempo vai passando e registos fotográficos para memória futura, vão ficando na maquineta.

Sem mais nem para quê o tiroteio rebenta. O amigo Lourenço havia ganho a aposta e a experiência desejada, ainda por cima com “picante”que não se antevia.

Dias mais tarde, são-me mostradas as fotografias tiradas, e no lote havia a tal de que falo e anda desaparecida, que a pedido me foi oferecida na altura. Gostava mesmo de a vos poder mostrar, contudo, na impossibilidade actual espero ter a arte e o engenho para a descrever de molde a que possam observá-la como se à estampa tivesse sido dada.

É uma foto de grande nitidez e originalidade, tirada nas matas de Ponta Matar. Não regista nem uma nesga de chão, nem uma árvore, nem uma pessoa, nem qualquer objecto… nada a não ser uma única haste de capim focada em grande - plano até meia altura do rectângulo fotográfico, majestosa e erecta, perfeitamente centrada na foto e tendo o céu como fundo.

O Lourenço atirando-se para o chão tinha feito o que eu na certa fiz e a foto única e original, talvez inesperada e tirada debaixo de fogo em ângulo superior a 45º… aconteceu.

Luís Faria

Foto LF
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9237: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (47): O fugitivo

5 comentários:

Anónimo disse...

Tenho uma fotografia semelhante à do Lourenço e curiosamente também era de Dimple.Aliás Em Ponta Matar, devido a vários tratamentos que o enfermeiro Silva teve de fazer, o álcool esgotou. À noite,quando estacionamos para dormir, comecei a ter uns arrepios de frio.Chamei o Silva para me dar umas massagens e ele disse-me.Furriel, já não tenho álcool.Não faz mal disse eu, tenho aqui uma garrafa de Dimple, e massage-me com ela.Assim fez.Em vez de a beber fui massajado com o precioso líquido.Do que nos haviamos de nos lembrar, já foi pelo menos há 39 anos...
Aquele abraço.

JORGE FONTINHA

Hélder Valério disse...

Caro Luís Faria

A tua descrição da foto, com o capim em grande plano, fez-me lembrar o início do documentário "As duas faces da guerra" em que a câmara vai-se movimentando lentamente, junto ao solo, pelo meio do capim, até subir ao monumento aos mortos, salvo erro em Bula.
Dá uma imagem 'em crescendo' que serve para induzir a ideia que as coisas se elevam da terra e vão ganhando expressão. Calculo que a foto que relatas e que foi tirada em plena situação 'debaixo de fogo' pode servir também para ilustrar essa 'elevação', com a quebra dos 45º a sugerir a possível interrupção dessa ascensão.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro amigo Luís Faria,

...Mas sempre ouvi dizer que Ponta Matar era um osso duro de roer.
Afinal acabaram por ter “steaK” à Dimple nessa saída. E do grosso!

Pena mesmo é não aparecer a foto. Poderá acontecer que alguém a consiga descobrir.

Entre a família açoriana havia muitos mancebos com os pais emigrados nas Américas. Por isso não era surpresa encontramos jovens a oferecerem-se para cumprirem o serviço militar mais cedo.

Tambm houve aqueles que, quase sempre a troco de dinheiro, trocaram o seu lugar com mobilizados. A vida difícil nas ilhas obrigava a isso, mas também não podemos esquecer o espírito aventureiro dos açorianos.

Um abraço amigo,
José Câmara

manuelmaia disse...

Caro Luís,

É a tal situação que às vezes vale mais uma imagem que mil palavras.
Pode ser que apareça.
braço
manuelmaia

JD disse...

Coitado do Fotógrafo,
Arriscou tanto e, se calhar, não seria aquela haste de capim com fundo nublado, que pretendia registar.
No entanto, ganhou direito a ter andado na guerra, um estranho e invejado "usufruto".
Um grande agraço
JD