quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9341: Memórias de Manuel Joaquim (3): Est-il un ennemi?

1. Mensagem de Manuel Joaquim* (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 6 de Janeiro de 2012:

Meus queridos camaradas, editor e co-editores:
Aqui vai mais um texto sobre a "minha guerra". Não sei avaliá-lo quanto à sua publicação. Cometemos muitas vezes erros de avaliação por olharmos mais para o próprio umbigo do que para o universo que nos envolve. Sei que "Est-il un ennemi?" me marcou, para o bem ou para o mal agora não interessa.

Um grande abraço
Manuel Joaquim


EST-IL UN ENNEMI ?

“Bellum dulce inexpertis”, é uma expressão latina que pode ser entendida como “bem parece a guerra a quem não vai nela”. Pois é, devem ser raros os combatentes que não concordem com tal afirmação. Eu fui nela, a guerra, e ela também não me pareceu nada bem. Quando nela entrei senti necessidade de solucionar uma dúvida, como que existencial para mim: “quem é o inimigo?", “sou inimigo do meu inimigo?”, “vê-me ele seu inimigo?”

Chegado a Bissau, onde fiquei dois meses e meio, este processo mental foi tendo um lento desenvolvimento ao mesmo tempo que eu tentava “apreciar” a atmosfera militar e política da Guiné. Havia uma guerra de guerrilha, onde está o inimigo? A teoria bélica diz que pode estar em qualquer lado.

Ideologicamente percebia a guerra, comecei a ver que a minha observação (no local) ia ao encontro das minhas ideias sobre o assunto. Estava numa guerra iniciada pelos mesmos motivos e com os mesmos objetivos que justificaram centenas de outras no decurso da história das nações, e que era a conquista da independência de um certo território, a do meu próprio país é um pequeno exemplo (ou grande!).

Parti de Bissau para Bissorã, saí da coscuvilhisse da guerra para uma zona de combate. Psicologicamente tinha de agarrar a nova situação “pelos cornos”, construir o meu lugar naquele conflito, para evitar “ir-me abaixo”. Em primeiro lugar arrumar a cabeça. Como controlar as emoções, como gerir as contradições entre as ideias e os atos? Já que tinha obedecido à mobilização só tinha uma coisa a fazer, que era combater o designado inimigo. A ética assim mo exigia, em respeito por mim próprio e pelos meus camaradas.

Percebendo as razões do conflito, não foi difícil imaginar-me na pele do IN e pensar que provavelmente estaria a fazer o mesmo que ele, se estivesse no seu lugar. Éramos inimigos mas os dois lados do conflito combatiam por ideias de soberania para um mesmo território, uns a favor outros contra. Éramos inimigos num combate político, usando armas de guerra. Assim, não poderia guardar em mim um lugar para ódio, desprezo, nem mesmo menosprezo pelo IN. E foi com este estado de espírito que geri, na parte que me cabia, a minha presença e ação nesta guerra.

A propósito de inimigo, aqui vai uma pequena história.

Ao chegar a Bissorã, uma das primeiras coisas que fiz foi ligar o meu rádio/gravador e procurar estações de rádio em OM. Já esperava “apanhar” bem o Senegal mas a surpresa foi grande quando começo a ouvir um acordeão tocando uma melodia para mim desconhecida e que me pareceu familiar mas, para mim, completamente deslocada nas estações de rádio daquela zona de África. Já não sei se era o indicativo da estação ou de um seu programa. Adiantando: anos mais tarde ouvi tal música na voz de Amália e, surpresa, era o fado “Maria Lisboa” (letra de David Mourão-Ferreira e música de Alain Oulman).


Esta rádio senegalesa era de expressão francesa e começou a fazer-me companhia diária, ouvia-se muito bem, tinha belas canções, enfim, respirava-se Europa. E aconteceu o imprevisto numa canção que me marcou. Melodia triste, com tonalidades que me faziam lembrar uma mistura de fado e flamenco, muito agradável de ouvir e... com uma letra que me revolveu e que não mais esqueci, 46 anos passados. Não sei qual a razão por que era reposta frequentemente. Seria pela mensagem? Gravei-a e ficou uma das canções da minha vida, não pelo seu valor artístico mas pelo tempo e circunstâncias em que a ouvi. Era cantada pelo franco-argelino Enrico Macias mas só agora soube o seu nome (abençoada internet). Chama-se “Est-il un ennemi?” (É ele um inimigo?)


Est-il un ennemi? tem uma letra que marcou a minha visão sobre os meus inimigos, numa guerra em que lutei para os vencer. Humanizou a sua presença como meus adversários e mostrou-me que, apesar de estarmos tão “longe”, estávamos muito perto como seres humanos-peças duma guerra em que o sacrifício e o sangue, no limite, nos fazia “irmãos” mesmo que disto não tivéssemos consciência. Aqui vai, com desculpas para possíveis erros de uma tradução sujeita aos limites dos meus conhecimentos de francês, que não são lá grande coisa.



Est-elle un ennemie?
A minha lavadeira, minha amiga e meu alento. Na sua pose vislumbra-se a personagem. Segura, confiante e, para mim, um esteio de beleza humana que me ajudou a admirar as mulheres da Guiné. Inesquecíveis os momentos de convívio que me proporcionou. 
(Nota: ponha-se de lado qualquer ideia de cariz sexual)

Esta visão do “meu” inimigo poderia ser uma ilusão, na prática a morte dava os mesmos resultados fosse ela motivada por ódio ou não, com sadismo ou com misericórdia, com respeito pelo inimigo ou não. Mas isso é outra história que não diminui a dimensão humana que muitos de nós tentaram preservar nas atitudes tomadas tanto com os camaradas como com toda a gente, mesmo do lado inimigo.

O medo e a coragem andavam juntos, talvez muitas vezes o não percebêssemos, tanto para vivermos como para (não)morrermos.Vivemos aqueles nossos tempos com a morte que, desejando-a longe de nós, sempre a sentíamos presente. A nossa sobrevivência, se calhar, dependia mais do desespero que nos fazia agarrar à vida, ao futuro, do que à sorte que tantas vezes suplicámos que não nos abandonasse. A esta distância de dezenas de anos, falo por mim, olho para aquele tempo desgraçado, dolorido, vivido ao dia quando não à hora, algumas vezes ao minuto, como um tempo de vida tão limitada quanto intensa e cheia. Como nunca mais tive mas do qual não tenho saudades. Tenho saudades, sim, é da minha juventude.
____________

Notas de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9326: Memórias de Manuel Joaquim (2): Manhã maculada

14 comentários:

Anónimo disse...

Por razões geográficas deveria ser o último a aqui vir apreciar o...ar fresco.Este poste será no entanto um bom, e positivo,exemplo de "ar fresco" nas nossas memórias. Um abraço.

Anónimo disse...

Caro Manuel Joaquim

Acabo de almoçar e vim até aqui ver as novidades!
É sempre um prazer ler o que escreve, mas, pelo conteúdo desta sua narrativa, também eu retrocedi e fui até esse tempo, já tão distante, mas eternamente presente, e, é-me "gratificante" encontrar na sua descrição de ideias, as minhas próprias ideias, quanto ao referido"inimigo".
Nesta guerra, que nos tocou directamente,"como em qualquer outra guerra", os homens são apenas máquinas cumprindo as funções que lhes destinaram!
Os inimigos, ficam nas salas, tentando controlar os seus objectivos.
Jovens, que mal atingem a maioridade, tem outros sonhos!
Querem ser grandes, amar, constituir família, viver a vida. Não nascem odiando, não tem inimigos!
São puros e facilmente moldáveis.
Convencem-nos, exultando o dever e o brio Pátrio, e eles vão e sofrem, por si e pelos inimigos que não o são: e morrem pela ambição dos verdadeiros inimigos.
"Lá longe, em casa, há a prece: "que volte depressa e bem", mas, quantos ficam, quantas famílias choram sem remédio a ausência forçada dos seus filhos que ninguém mais recorda???....

Aceite um abraço, que estendo a quantos lutam obrigados, e outro, para os que se negam a fazê-lo.

Felismina

JD disse...

Camaradas,
A prosa do Manuel Joaquim vem carregada de humanismo e de sentimentos que, quero crer, a generalidade sentiu.
E também tenho saudades da minha juventude. De quando sonhava.
Finalmente, a Felismina faz um atento e oportuno comentário sobre os jovens: "querem ser grandes, amar, constituir família, viver a vida". Essa foi a minha motivação durante o período da guerra.
Depois, claro, vêm as outras "guerras".
Abraços fraternos
JD

JD disse...

Camaradas,
A prosa do Manuel Joaquim vem carregada de humanismo e de sentimentos que, quero crer, a generalidade sentiu.
E também tenho saudades da minha juventude. De quando sonhava.
Finalmente, a Felismina faz um atento e oportuno comentário sobre os jovens: "querem ser grandes, amar, constituir família, viver a vida". Essa foi a minha motivação durante o período da guerra.
Depois, claro, vêm as outras "guerras".
Abraços fraternos
JD

JD disse...

Camaradas,
A prosa do Manuel Joaquim vem carregada de humanismo e de sentimentos que, quero crer, a generalidade sentiu.
E também tenho saudades da minha juventude. De quando sonhava.
Finalmente, a Felismina faz um atento e oportuno comentário sobre os jovens: "querem ser grandes, amar, constituir família, viver a vida". Essa foi a minha motivação durante o período da guerra.
Depois, claro, vêm as outras "guerras".
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...

Camarigo Manuel Joaquim

Acho este Post extraordinário.
Nem sequer vou alongar-me muito, pois o ar fresco que o J.Belo adicionou, sente-se logo na face,as motivações,as emoções, e os somhos, principalmente os sonhos, de gente como nós,que aos vinte e poucos anos se confrontou com a guerra, a sentiu e a viveu, os sonhos, esses, como muito bem diz a camariga Felismina, esses é que felizmente triunfam, no passado,no presente, e no futuro.
As outras guerras, como também muito bem diz o Zé Dinis, foram, são, agora e sempre, passado, passaram de lado(ainda que com custos dolorosoa é certo) mas, não queremos que possam, em qualquer lado, voltar.
E a canção linda, na sua melodia e na sua mensagem, ainda hoje nos conforta.Obrigado Manuel Joaquim por compartilhares, hoje e sempre, estas "coisinhas" que nos aquece o coração, nestes dias tristes e frios.
Um abraço a todos,

Francisco Godinho

Anónimo disse...

Manuel Joaquim

É disto também que terá de viver o blogue.
Na Guiné não estiveram apenas corpos mas sobretudo almas, espíritos, culturas, dúvidas e certezas que se foram construindo e destruindo.
Sem palavras como estas tuas, até pareceria que não foi assim.
Abraço grande
José Brás

Juvenal Amado disse...

Camarada Manuel Joaquim

Que dizer deste teu belo texto?
Não sou capaz de dizer nada que acrescente à maravilha que acabei de ler, só te digo que tenho inveja do que escreveste pois é um texto, que eu gostaria de chamar meu.
Não pares.

Um abraço

Manuel Joaquim disse...

Preciso de dizer uma coisa:

O nosso querido editor Carlos Vinhal melhorou muito este meu "Post" com a adição dos dois videos com as canções referidas no texto.
Se, no fado de Amália, não tive intenção de acoplar o seu video( vejo agora que fica aqui muito bem) na canção de Enrico Macias bem eu me tenho esforçado, há muito tempo, por encontrar a sua interpretação em video. Nem calculam o meu espanto e a minha emoção quando o vi colocado no texto.
A sua audição, para lá da emoção, confirmou-me tudo o que imaginava ter sentido quando há 45 anos a ouvi pela 1ª vez. Se o Carlos estivesse ao pé de mim tinha-lhe saltado para cima e pespegado um grande beijo. Muito obrigado, Carlos!
Eu sei que ainda ando na "escola primária" no que à informática diz respeito. Pensei logo que tinha sido nabice minha não ter encontrado o referido video no meio das dezenas deles referentes a E. Macias.
Afinal a nabice nem era tanto assim. Verifico agora que este video com "Est-il un ennemi?" foi carregado no Youtube em 28/12/2011, há três semanas! Tenho que agradecer a um(a) tal "ketani02" que nem imagina o prazer que me deu e quanto foi importante o seu contributo para valorizar este "post".
Finalizo dizendo que há um erro linguístico (meu) no 2º verso de "Est-il un ennemi?):
Deve ser "Celui qui est tombé en même temps que moi?" ("en" em vez de "au").

Um abraço a todos, em especial ao Carlos Vinhal pelas razões atrás expostas.

armando pires disse...

Quando, na segunda-feira, me trauteaste esta canção, ia lá eu supôr que tinhas este poema para escrever. Sábado voltamos a estar juntos. Quando te der um abraço, já sabes porquê.
armando pires

Manuel Joaquim disse...

Mais uma coisa sobre este "post":

O Carlos Vinhal, na prè-edição, questionou-me sobre o título da foto com a minha lavadeira, "Est-elle un ennemie?" (É ela uma inimiga?)
Neste sentido acho que devo dizer o seguinte: com a aplicação deste título quero dizer que, numa guerra daquele tipo, devíamos sempre ter em conta os resultados de qualquer contacto com membros da população, por mais pacífico e carinhoso que ele nos parecesse, e muitas vezes o era. Isto para dizer que nos meus contactos com a minha lavadeira sempre estiveram ausentes quaisquer referências sobre a atividade operacional das nossas forças. Posição esta que "pregava" a quem me queria ouvir tentando alertar quem, por vezes, até teria dificuldades em perceber o valor informativo que as suas simples e ingénuas palavras poderiam ter para o IN.
Quando me "calhou" (ou fui escolhido?) prender o meu vizinho da casa da frente, funcionário dirigente da Administração local e meu companheiro de frequentes conversas de porta com porta, não me admirei nada.O que eu sabia é que nunca nele tinha percebido qualquer palavra de simpatia para com o PAIGC.
Seria um "escândalo" para mim vir a saber que a minha lavadeira daria informações a alguém? Nunca dei por isso nem tive razões para suspeitar mas não ficaria nada admirado.
Seria ela uma inimiga? Não sei. Para mim foi só uma linda "flor" que me fez sentir bem muitas vezes, nas suas conversas simples mas abertas sobre a sua vida pessoal e familiar e a quem eu "pagava" do mesmo modo, vida militar de fora, obviamente.

Um abraço

Torcato Mendonca disse...

Manel Joaquim: só agora li. Já aqui estive e pensei deixar o teu escrito para o fim. Voltei a ser interrompido e só agora li e reli.
Bem te disse no breve comentário ao teu anterior escrito.Escreve mais... Não me alongo neste comentário por duas razões. -tinha muito a dizer sobre o que li e o que me fez sentir;mas, a esta hora, hoje e cada vez mais frequentemente, sinto o cansaço com um ou outro excesso. Digo-te e não é novidade que gostei do que li e reli. Gostei por vários motivos, o humanismo, a necessidade destes escritos aqui, o "ar fresco" e corroboro o que antes outros camaradas escreveram. Até até a saudade da juventude...é a ordem natural da vida.
Penso que naquele tempo me envolvi demais naquele processo, na guerra e esqueci ou era forçoso que esquecesse, suspendesse o meu eu, para poder aguentar.No fim o eu e o outro confundiam-se. Que vida!
Estou a escrever muito devagar textos com suporte de slides. Ainda estão em borrão e tenciono começar a passar a limpo. Serão, pretendo que sejam, diferentes do que habitualmente tenho escrito. A guerra, a guerra que vivi merece parar um pouco. Desgasta. Há mais "comissão, mais vida , mesmo de militar forçado para lá da guerra.

Que aborrecimento. Escrevi demais.

Caro Camarada e Amigo Manuel eu te mando um abraço fraterno. T.

Alberto Branquinho disse...

Manuel Joaquim

Para além da questão de ser "ele" um inimigo ou um irmão, a frase final que começa assim:"A esta distância de anos..." e que termina como transcrevo: "Tenho saudades, sim, é da minha juventuda", é o resumo de um "mundo todo".
Que senhor pedaço de texto!

Um abraço
Alberto Branquinho

Luís Graça disse...

... "ponha-se de lado qualquer ideia de cariz sexual", certo, mas a verdade é que o rapaz tinha/tem ar de galã, e ela está muito bem na sua pele... Encantado, Manel Joaquim: estou a ver que és como o Saramago, agora é que estás a "abrir (e a escrever) o livro"... Espero pelos próximos capítulos, professor!