segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9301: Notas de leitura (319): Milicianos, Os Peões das Nicas, de Rui Neves da Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
Procurei atinar com a relevante importância do curso para capitães de Julho de 1970, em Mafra, não terei sido muito bem sucedido. O autor gaba-se de como estes capitães milicianos, em muitos casos ardorosos, entusiastas e valentes, podiam ter contribuído para mudar o curso da guerra, era um sangue novo que foi recusado pelos muitos interesses enquistados dos oficiais do quadro permanente, que neste relato romanceado são, regra geral, tratados a baixo de cão. Seria bom ouvir a opinião daqueles que, à época (entre 1970 e 1974) tenham vivido a incorporação, a guerra em África e depois a rejeição dos oficiais do quadro permanente.

Um abraço do
Mário


Milicianos, os piões das nicas

Beja Santos

Em Julho de 1970, cinco dezenas de cidadãos, com idades compreendidas entre os 27 e os 35 anos, e com formação académica superior, foram convocados pelo Ministério do Exército para se apresentarem em Mafra, na Escola Prática de Infantaria. Estes adultos tinham em comum coisas como estas: havia cumprido já o serviço militar obrigatório, estavam numa fase ascendente das suas carreiras profissionais e não eram propriamente aliados do regime. Receberam quatro meses de formação, foram promovidos a capitão e deram-lhes o comando de Companhia, numa das três frentes de combate. Este é o ponto de partida do relato romanceado “Milicianos, os peões das nicas”, por Rui Neves da Silva (Prefácio, 2007).

Com o passar dos anos e o agravar da guerra, tornou-se indispensável o recurso generalizado a estes capitães milicianos para suprir a falta de oficiais do quadro no comando de Companhias. Durante os primeiros anos, eram oficiais do quadro os chamados, e os alferes, seus subordinados, eram milicianos. A narrativa centra-se no papel que eles desempenharam, a contragosto dos oficiais do quadro permanente. São cerca de 700 páginas de um relato que não esconde o excesso, tanto na linguagem rebuscada como na animosidade a muitas figuras do quadro permanente, isto numa atmosfera em que o vinho a mais, a cartilha de Marialva e a solidariedade são omnipresentes. É uma narrativa composta por três livros: a Escola Prática de Infantaria é apresentada como uma fábrica de oficiais; a guerra como uma fábrica de heróis; e a revolução do 25 de Abril uma fábrica de equívocos. Esses capitães milicianos são apresentados como piões das nicas, numa daquelas diatribes carregadas de gongorismo o autor levanta o véu do conflito latente entre o quadro permanente e os milicianos: “Entre os diversos processos de tirar partido do jogo do pião há um que exige dos participantes um forte instinto destrutivo; trata-se de, lançado o pião, procurar não só que ele gire rápido e de forma equilibrada, mas também que, ao chegar ao solo, acerte do pião do adversário que por sorteio jogou primeiro. Acertando, o vencedor ganha o direito de, com o seu pião, nicar o pião do vencido; ou seja, espetar-lhe através de sucessivos golpes o espigão de ferro na zona mais carnuda e frágil, junto à pequena saliência onde o cordel é preso no acto de lançamento”. E, mais adiante, o tenente miliciano diz a um tenente-coronel: “Neste jogo há um processo de o nosso pião perdedor, ou ganhador, não sofrer o menor dano, que é o de um jogador ter um pião bem equilibrado para lançar, um outro de ponta de ferro bem afiada para escavacar o do adversário… e um terceiro, de ponta gasta e de corpo cheio de lanhos, para levar com as nicas. Senhor tenente-coronel, nesta maldita guerra nós somos os piões que levam com as nicas”.

O autor argumenta que estes tenentes milicianos tiveram necessidade de ser exigentes consigo próprios. E para que não haja equívoco sobre a carga autobiográfica, Rui Neves da Silva esclarece: “Foi em Angola que combati. No Leste e no Norte. Orgulho-me de ter feito parte do único Exército do mundo que venceu uma guerra subversiva. Quando saí desta província ultramarina os três movimentos independentistas estavam de rastos”. O leitor é logo emerso no Convento de Mafra, o lançamento das hostilidades é dado pela pergunta do miliciano a um oficial superior: o que vão vossemecês fazer quando a merda da guerra acabar? Depois o autor aprimora-se a identificar a proveniência destes tenentes, como eles se relacionam entre si, as tascas e restaurantes onde se encontram, os engates, as bebedeiras, as zaragatas, as peripécias da instrução, a ansiedade das suas famílias. Quando há palestras, são inevitáveis as ferroadas políticas, os oficiais do quadro permanente são confrontados com a abertura inevitável de diferentes áreas de comando aos milicianos. Há também o diagnóstico do quadro mental e político de cada um, tudo é superado pela franca camaradagem. Alguns deles irão frequentar o Centro de Instrução de Operações Especiais de Lamego e depois colocados nas Unidades de onde partirão para a guerra, à frente da respectiva Companhia.

Partem todos para a guerra, o epicentro narrativo será Angola, Guiné e Moçambique merecerão igualmente referências, praticamente anódinas e desambientadas. Marcelino, filho de D. Diogo Fermões de Pimentel, parte para Bissum, Daniel Cabrita fica em Bissau. São apontamentos frágeis, ao contrário de tudo quanto é escrito sobre Angola, é um desequilíbrio de que toda a obra se ressente, terá faltado investigação que permitisse dar quadros impressivos e ajustados ao que ele descreve sobre o Leste e Norte de Angola. Vão surgindo as baixas, os sinistros, os capitães mantêm-se em contacto entre si e toda a desconfiança quanto ao quadro permanente jamais abranda. Sensivelmente a partir de Março de 1973, os capitães milicianos da tal incorporação de Julho de 1970 começam a regressar. Marcelino tinha morrido heroicamente em combate.

E chegámos ao período revolucionário, o autor descreve minuciosamente a legislação do ministro Sá Viana Rebelo e o descontentamento que ela provocou, como irão ficar acirradas as relações entre os oficiais preparados na Academia Militar e aqueles que o regime de Marcello Caetano pretende que ingressem no quadro especial de oficiais. É deste ângulo que o autor parte para uma crítica demolidora aos oficiais do quadro que confundiram uma reivindicação com as obrigações que deviam ter mantido com ética militar. O MFA, nesta lógica, foi uma maneira de esses oficiais do quadro terem fugido à competitividade com aqueles que tinham ardor e entusiasmo em combater. Esses oficiais foram politicamente manipulados, os comunistas e a extrema-esquerda. Os piões das nicas descobrem o logro em que caíram. Um mestiço que fugira do MPLA e que desertara do Exército português irá abater um oficial miliciano condecorado no dia 25 de Novembro. Aqui termina a narrativa romanceada e dá-se como demonstrado o nefando papel dos militares de carreira em tudo terem feito para impedir os capitães milicianos para não terem sido compensados com igual estatuto ao seu.

Não se percebe exactamente o que levou Rui Neves da Silva a escrever este relato que ele classifica como história romanceada de um punhado de homens que se assumiram como testemunhas de eventos que militares envolvidos na revolução dos cravos e historiadores teimam em calar ou desvirtuar. Não se percebe a dimensão desta conspiração de silêncio e pasma o silêncio do autor quanto ao alferes e tenentes milicianos que, segundo os historiadores, tiveram um papel fundamental na preparação das condições psicológicas que contribuíram para os oficiais do quadro terem chegado à conclusão que todo aquele esforço de guerra era insano na ausência de uma resposta política, quando não se antevia qualquer solução militar, pelo menos da Guiné e em Moçambique.
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Nota de CV:

Vd.- último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9288: Notas de leitura (318): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (2) (Mário Beja Santos)

11 comentários:

Antº Rosinha disse...

Quer se queira quer não, Beja Santos é valentão: mais 700 paginas!

Mas este livro deve ser daqueles de cabo-de-esquadra.

Eu que tive azar com capitães enquanto andei na tropa, soldado, cabo milº e furriel milº, gostava de encontrar este para "dar umas nicadas".

Gostava de um dia ler um livro a descrever certos capitães portugueses antes de 1961, outros de 1961 a 1974 e outros até regressarem aos quarteis.

Que pena eu não saber escrever!

Contratado disse...

Pelo que se lê na recensão, o dito livro tem muita verdade incómoda.
O cenário continua nas actuais Forças Armadas (em particular no Exército), só mudou o nome dos peões, que agora se chamam "oficiais contratados" - na gíria, oficiais RC. Continuam a ser oficiais de segunda - mesmo que sejam bons militares -, sem quaisquer perspectivas de carreira, salvo uma ou outra necessidade dos ramos; contam-se pelos dedos de uma mão os oficiais RC que passaram ao QP nos últimos quinze anos.
Portanto, as Forças Armadas continuam a deitar fora muita gente dedicada, enquanto que a "casta superior" continua no seu caminho, sem rivais. A corporação militar (e outras) tratou de si no 25 de Abril, mantendo ou aumentando regalias e acirrando a desconfiança em relação aos "de fora". Tem os cursos pagos por nós (e ainda gozam com os universitários que se alistam), promoções à nossa frente e quando houver serviço complicado, é o contratado (de qualquer categoria) ou o sargento do QP que leva com ele. Já nem falo da palhaçada de contar o tempo de antiguidade quando ainda se é cadete numa academia.
O resultado é a crescente insularidade das FA em relação à sociedade, um erro tremendo que só prejudica Portugal. Meritocracia? Nem vê-la.
Há bons (ou mesmo excelentes) oficiais do QP, militares com "M" maiúsculo e autênticos exemplos? Há, sim senhor, felizmente para todos. Mas duvido que a maior parte chegue ao topo de carreira, que é onde merece estar.
Nestes dias, até a tropa se quer livrar da memória do Ultramar, salvo honrosas excepções.


Bem hajam, caros combatentes.

Anónimo disse...

É petulante, como em outras ocasiões, a forma como conclui o que conta acerca do livro que leu - "Não se percebe" ou você não percebe?


SNogueira

José Marcelino Martins disse...

Caro contratado

Como leitor acho que o comentário traz alguma coisa de novo, mas que "nós" não o soubesse-mos já.

Como individuo (pare que já nem cidadão sou, apesar de ter combatido na Guiné) custa-me saber que a tropa está na situação em que está, e que use o "contratado" para evitar males maiores.


Como colaborardor permanente deste blogue, acho que podia ter usado o nome, mesmo que "trubcado", bastando para tal não deixar tão explicita a sua situação de militar. É que, como militar que aceitou ser, tem de aceitar as regras impostas. É contratado, nós, os combatentes, fomos OBRIGADOS, e fomos porque as nossa familias tambem podiam ser retaliadas.
Se a nossa, de país, está como está, é porque não nos esforçamos todos. até onde podíamos ir, e deixamos para os partidos - entenda-se politicos profissionais e vitalicios - a resolução dos nossos problemas.
Mas vocês, Militares, ainda são militares, ou não?
Os editores tomarão nas suas mãos o comentário, mas eu JOSÉ MARCELINO MARTINS, continuo a defender que o anonimato não ajuda nada.

JD disse...

Meu Caro Zé Martins,
Realmente existe a regra de subscrever os comentários e, neste caso, o autor poderia recorrer a um pseudónimo em vez de usar o "contratado".
Porém, o que parece ter sido sua intenção, é a manifestação de medo perante a instituição que, provavelmente, ainda não está preparada para o debate interno e a auto-crítica de aperfeiçoamento, e terá tendência para punir e assobiar para o lado.
Será que os militares de hoje renegam o 25 de Abril e a liberdade de expressão responsável e construtiva? Ou será o "contratado" uma peça de má-língua?
Quanto ao livro, desde já estou com grande interesse em lê-lo.
Abraços fraternos
JD

João Carlos Abreu dos Santos disse...

Rui Neves da Silva, nascido em 1938 em Espinho, teve como instrutor na EPA o (então) tenente Gabriel Augusto do Espírito Santo e anos depois conheceu no RAL1 o capitão Ernesto Augusto Melo Antunes; foi mobilizado pelo BC10-Chaves como capitão miliciano comandante da CCac3370, embarcou em 15Mai71 no "Vera Cruz" rumo a Angola e ficou colocado no sudoeste de Angola, aquartelando em Gago Coutinho (onde reencontrou Melo Antunes e conheceu o alferes Lobo Antunes); em Mar72 foi com a sua subunidade transferido para o noroeste (onde reencontrou Melo Antunes), e ficou aquartelado sucessivamente no Quelo e em Madimba; em Abr73, após intensa actividade operacional, regressou, sem baixas de nota na sua subunidade.
O autor, daquelas 730 páginas, já cá não está para vos responder com mais "umas nicadas"... Faleceu em Lisboa, em 24Out2009. Paz à sua alma.

Anónimo disse...

Ao MBS, peço que continue o trabalho a que se propôs, levando em linha de conta as criticas prós e contra desde que construtivas, e ignorando os ressabiados, porque para estes o silêncio é a arma letal.

Aqueles que com conhecimento de causa e que tenham outros pontos de vista que não os do MBS, exponham as suas ideias de forma correcta e leal procurando corrigir ou complementar as recensões produzidas.

Porque não sendo eu, membro de pleno direito, deste Blog, o que me leva evitar o mais possível envolver-me em polémicas ou tomar partidos, respeitando todos os que aqui escrevem, embora por vezes não concordando minimamente, sobre algumas opiniões veiculadas por alguns combatentes sobre situações que são comuns a outros teatros de guerra, já deu para entender que há dois lados da trincheira, o que é lamentável.

Um bom ano para todos, com saúde, paz e tolerância.

A.Almeida

jdeferraz disse...

Caro camarada Rui Neves da Silva:
Um esclarecimento o primeiro exercito governamental a derrotar um exercito subrevesivo foram os ingleses na Malasia nos anos cinquenta... O general ingles vitorioso afirmou entao; para combater um tigre so com outro tigre...se bem me lembro esta foi uma outra licao do Cap. Larangeirs Henriques numa das nossas conversas em Bissau quando filosofavamos sober o desfeixo da tragedia que era a luta em africa.

Anónimo disse...

Caro Ferraz, dirigiu o seu comentário a uma pessoa que faleceu em 2009... ou foi à consideração da plateia?
Cpts,
JCAS

jdeferraz disse...

Caro JCAS- Nao sabia que o autor tinha falecido -Paz a sua alma.
O meu comentario foi simplemente como correcao a uma informacao/ afirmacao falsa, e para informacao dos camarigas.nem mais nem menos---
Um abraco-Ze

Anónimo disse...

Caro contratado

Confesso que não percebi, ou será que percebi de mais.

Segundo julgo saber há academias militares para todos aqueles que querem seguir a carreira militar.

Em relação aos contratados, são aqueles que se oferecem para o serviço militar e que querem continuar durante mais algum tempo, certo ou errado.

É que não entendo o seu argumento,ou será que entendo.

Fala em meritocracia,mas esta é sempre relativa seja na actividade castrense ou civil, e quanto a injustiças é o que mais existe em qualquer actividade profissional.

Meu caro, não faça confusões entre o nosso tempo e o actual, são realidades completamente distintas.

Em relação ao último parágrafo.."até a tropa se quer livrar da memória do ultramar", só lhe digo que a história não se apaga, e para os que assim pensam vai o meu profundo desprezo e não honram e dignam a instituição que representam.

C.Martins