sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9288: Notas de leitura (318): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2011:

Queridos amigos,
Nada conheço de mais actualizado sobre os novos rumos da literatura da Guiné-Bissau.
É lastimável que a generalidade dos autores aqui referidos não apareça nas nossas livrarias, sendo inequívoco que alguns deles são escritores de elevada qualidade e credores da nossa atenção. Margarida Calafate Ribeiro e Odete Costa Semedo estão de parabéns, encontraram uma boa paleta de colaboradores que permitem descodificar a premente questão do uso do étnico, do veicular e do português na construção literária, qual é a marca de água desta nova literatura e no contexto da africanidade, para onde está a evoluir o romance, a poesia e o teatro, por exemplo.
Ninguém que seja um curioso pela cultura guineense pode ignorar esta rosa de ventos.


Um abraço do
Mário


Literaturas da Guiné-Bissau*:
Os nomes que se impuseram depois do conflito político-militar 1998-1999

Beja Santos

A reflexão multifacetada que diferentes autores e estudiosos da literatura da Guiné-Bissau oferecem no importante livro “Literaturas da Guiné-Bissau, cantando os escritos da história”, tendo como organizadores Margarida Calafate Ribeiro e Odete Costa Semedo (Edições Afrontamento, 2011) gira no essencial sobre a identidade destas vozes, a sua força temática, os seus principais géneros e o reportório e caracterização dos escritores que conseguem superar todos os escolhos para ver os seus trabalhos publicados.

A estudiosa Teresa Montenegro utiliza o termo fogo como uma constante metafórica da escrita guineense. O fogo como luz e fulgor, chama em movimento ou entusiasmo; um fogo descontrolado que pode destruir os campos e afastar a caça, este fogo, neste caso significa morte, dor e punição. Um fogo presente na forja dos ferreiros, ligado à febre, à mente delirante, à cólera ou à paixão. A estudiosa faz a evocação deste fogo que queima em sentido figurado, do fogo destruidor que vai até à noite do passado histórico e que tem a ver com a derrota dos Mandingas ou dos Bijagós, a representação do feiticeiro está igualmente ligada ao fogo e são inúmeras as fábulas da tradição oral guineense onde o fogo tem um papel central.

Outra estudiosa, Íris Maria da Costa Amâncio destaca dois eixos de tensão no processamento da literatura dramática guineense onde a escolha da língua é uma questão de fundo: a língua étnica, a língua franca ou a língua oficial. Até à independência, a literatura guineense propendia para uma visão eurocêntrica, segue-se uma fase em que o ardor nacionalista e independentista usou o português como fala exclusiva; com a independência, o teatro ou as representações teatrais tradicionais orientaram-se para o uso do crioulo, foi um período fértil até de adaptações de clássicos (caso do Macbeth, de Shakespeare) recorrendo a velhas questões tribais, na linha de Brecht (o acontecimento deve ser narrado de forma que o espectador, diante da acção, assuma um posicionamento, tome decisões).

No virar do século, um acontecimento dramático fez inflectir a comunicação pela literatura: um conflito que dividiu os apoiantes de Nino Vieira e a Junta Militar, que levou à expulsão de forças senegalesas e provenientes de Conacri, à diáspora de muita gente que vivia na região de Bissau e cujas cicatrizes ainda estão mal curadas. Todo este sofrimento veio avolumar contradições da consciência histórica e fazerem romper novos procedimentos estéticos. Odete Costa Macedo é o primeiro nome que se avantaja neste novo panorama com dois livros de contos Soneá e Djênia. Uma editora independente, a editora Ku Sin Mon irá ter um papel relevante no estímulo a estes novos escritores como Carlos-Edmilson M. Vieira, Marinho de Pina e Waldir Araújo. A poesia ganha novo fôlego com Manuel da Costa, Rui Jorge Semedo, Filomena Embaló, Tomás Soares Paquete, Tony Tcheka e consagra-se definitivamente no romance Abdulai Sila, autor dos romances Eterna Paixão, A última tragédia e Mistida, bem como da peça teatral As Orações de Mansata.

Alguns nomes como Félix Sigá e Conduto de Pina vinham já de uma anterior busca de identidade e confirmaram-na depois da tremenda convulsão que foi o conflito político-militar a que se podem também juntar nomes como Nelson Medina, que usa frequentemente o crioulo.

Num estimulante ensaio, Laura Cavalcante Padilha faz uma análise dos romances de Abdulai Sila, um romancista que usa magistralmente o pensamento de Amílcar Cabral e o seu legado, os códigos do período colonial, transpondo os estereótipos da dominação branca para a nova classe possidente, repescando, dentro destas representações da violência colonial imagens do animismo e da feitiçaria. Prosseguindo dentro desta saga histórica, Abdulai Sila critica a nova classe dirigente e as instâncias neocoloniais para, em Mistida denunciar toda a precariedade do tempo presente, a nação à deriva e sem nenhum sentido de identidade. A autora do ensaio fala mesmo em trilogia, fica entreaberta a porta seja para a esperança seja para a continuação da violência.

O livro permite a Abdulai Sila que fale na primeira pessoa do singular, dá margem para que se sinta a inquietação africana em que se mesclam poesia e romance, como neste parágrafo:

“Quero gritar por ti, mas a dor não me deixa, mãe. Mãe, tenho um punhal de dois gumes espetado no peito, que me impede abraçar-te. Por isso, mãe, deixa o meu outro eu, aquele que mantive imune, procurar asilo no teu ventre. E se me perdoares, mãe, se me esqueceres, ficarei à espera de mim. E no teu próximo parto, mãe, eu serei eu mesmo. Para que esse amor que tenho, essa profunda paixão pela vida, não fique reduzida a uma mera e fútil recordação”.

Carlos Lopes, hoje Subsecretário-Geral das Nações Unidas, é outra das vozes fortemente críticas da moderna literatura guineense, seguramente o texto escolhido para o apresentar neste caleidoscópio denota o cansaço pelo aparato político baseado na argumentação de que os outros políticos são sórdidos, enfim a chamada roupa suja e em que vence o que ele designa por partido dos surdos:

“Eu já não posso mais. Esta família passa a vida a discutir heranças, falam da casa e bens com tal paixão e ódio que nem parecem irmãos do mesmo sangue. São capazes de discutir penicos, travessas, almofadas e qualquer dia até os restos do frigorífico, como se as suas vidas dependessem completamente destes bens deixados (…) digam-me só meus caros como é que julgam esta família? Acham um exagero eu estar a dizer que sinto vergonha que ninguém respeita a memória daqueles que lutaram para que fossemos gente? (…) Não se pode aceitar que quase 10 anos depois de os pobres estarem debaixo da terra ainda se revolva mais do que o estrume das suas vidas: o pai devia ter feito isto… a mãe devia ter feito aquilo… se eles tivessem dividido tudo não era preciso esta confusão… Mas falando disso se calhar a questão não é a divisão, porque eles, verdade seja dita, não fizeram mais do que pensar no presente sem nunca imaginar que não nos íamos entender à volta dos bocados deixados”.

Temos, por fim, a carta aberta de uma bidera abstencionista aos que querem mandar na Guiné, da autoria de Fafali Koudawo, reitor da primeira universidade guineense, investigador emérito. Depois de se apresentar como bidera de peixe, propõe-se dizer algumas verdades aos dois candidatos presidenciais, quer falar em nome dos filhos, antes que seja tarde de mais e diz desabridamente:

“Neste momento, a maioria das pessoas que falam connosco dizem que o país vai de mal a pior. Eles pensam que os políticos não dizem a verdade e não pensam no povo. Eu penso como eles. Pois, vivo o retrocesso do país diariamente. Por exemplo, quando comecei a escola em Bor, havia salas de aulas e mesmo uma residência para alguns professores. Agora, a maior parte da escola está feita de kirintin. É a maior escola de barracas da capital, a poucos quilómetros do centro da cidade (...) Como posso ir votar se ninguém me convence que vai realmente mudar a minha vida e dar esperança aos meus filhos? Em 2000, eu votei em Koumba Yalá porque acreditava que, finda a guerra, o país iria ter uma alternativa. Em 2004, eu escolhi Cadogo porque eu tinha visto o descalabro que levou as pessoas a não receberem os seus ordenados durante quase um ano, em 2002-2003. Em 2005, votei em Nino Vieira porque ele representava a autoridade que devia acabar com o deslize para a anarquia. Em 2008, votei no PRID, cujos candidatos nos disseram que iriam ajudar Nino a reconstruir o país. Hoje, tenho muitas dúvidas sobre a seriedade da fala dos políticos. Hoje, estou com medo porque a violência é a linguagem que mais se ouve no país”.

Para quem pretende aprofundar conhecimentos sobre o que se passa com a literatura da Guiné-Bissau, não há que hesitar, este livro é abrangente sobre as formas de inovação e o sofrimento que atravessa todo o discurso literário guineense.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9270: Notas de leitura (316): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 28 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9283: Notas de leitura (317): Vie et enseignement de Tierno Bokar - Le Sage de Bandiagara, de Amadou Hampaté Bâ (Cherno Baldé)

5 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Como não conheço as organizadoras deste livro fui à net à procura.
Da guineense Odete Costa Semedo encontrei estes excertos de um poema(?)seu:

“Nada de receber ao final do mês / que é vício colonial (...) / Não vos deixeis levar / por ideais / neocoloniais (...) / Para quê, luz elétrica? / Saudosismo / do imperialismo colonial (...) / Voltemos às nossas origens irmãos / Para quê, importar fósforos? / Mil vezes melhor / atritar duas pedras / e obter o lume precioso / sem encher o cofre imperialista” (p. 151-153).

Eu não digo nada. A Odete Semedo vai dizendo tudo.

Abraço,

António Graça de Abreu

antonio graça de abreu disse...

Afinal, por uma questão de seriedade e rigor, ainda vou dizer mais qualquer coisa.
Este poema foi publicado no livro “No Fundo do Canto”, datado de 2003, também editado no Brasil pela Nandyala Livros em 2007.
Tem uma recensão muito amiga e favorável do brasileiro Ricardo Riso
publicada na Nova Revista do Triplov, 2010, número 07.
Foi aí que fui encontrar este poema (?).

António Graça de Abreu

Unknown disse...

Caro António G Abreu e restantes amigos, ''...por uma questão de seriedade e rigor,...'', não está no que escreveste.

A falta de seriedade e rigor, está precisamente no teu esquartejamento do texto da autora e naquilo que não quizeste criteriosamente escrever.

Exactamente por isso escreveste:
''Eu não digo nada. A Odete Semedo vai dizendo tudo.''

Faz-nos um favor, procura pensar que nem toda a gente que te lê é iletrada, ou qualquer outra coisa qualquer semelhante.

Porque o próprio extrato por ti cirurgicamente apresentado, dava para um bom debate antropológico, quiçá sobre a história da humanidade.

Cumprimentos e renovo os votos de um Bom Ano p/ todos.

Carlos Filipe
ex-CCS BCAÇ3872 Galomaro/71

an disse...

Meu caro Carlos Filipe

Eu não esquartejei o poema, nada fiz para a cirurgia poética.

Aparece exactamente assim, nestes termos, na recensão amiga e favorável
do tal brasileiro Ricardo Riso, no Triplov. Recomendo-te que vás à net e procures na entrada com o nome da
poetisa.Exactamente pela seriedade e rigor.

Quanto ao resto, tens todo o direito de gostar deste tipo de poesia (?)"para um debate antropológico, quiçá sobre a história da humanidade."

Eu, na minha ignorância, como não sei o que é a "história da humanidade" e também não entendo muito deste tipo de poesia, tenho o meu direito de não gostar.
Mas tudo bem, "o mundo pula e avança", mesmo que às vezes sejas às arrecuas.

Abraço,

António Graça de Abreu

Unknown disse...

Amigos, permitam-me est Ps.

''História da Humanidade'' o mesmo que 'história do homem','civilização africana', 'evolução do homem africano', etç, etç.
Graça Abreu, percebeste muito bem o sentido da minha expressão (ou definição).

Cumprimentos, Carlos Filipe