segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9183: Notas de leitura (311): Uma Jornada Científica na Guiné Portuguesa, de António Mendes Corrêa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2011:

Queridos amigos,
Estas notas científicas não são tão palpitantes como as de Orlando Ribeiro mas é importante conhecê-las para se perceber o sem número de questões postos pela antropologia africana, ao tempo ainda sem respostas consistentes, na linguística, no estudo da religiosidade e da antropologia cultural. Dá para sentir como na governação de Sarmento Rodrigues há uma nova palpitação, uma curiosidade em conhecer a fauna, a doença, as potencialidades florestais, o estudo sobre a cultura de arroz e, evidentemente, o mosaico étnico, era essa a motriz da missão que delegaram em Mendes Corrêa e a que ele procurou dar uma resposta cabal, propondo mesmo um plano de trabalhos da missão antropológica na Guiné. É bom não esquecer que por este tempo alguns estudiosos que eram simultaneamente funcionários coloniais estavam a escrever monografias que se vieram a revelar importantes. Avelino Teixeira da Mota estava por detrás de muitos destes estudos.

Um abraço do
Mário


O antropólogo e etnólogo Mendes Correia, na Guiné, em 1946

Beja Santos

A governação de Sarmento Rodrigues introduziu um conjunto de preocupações científicas como nunca se vira na Guiné. Das missões do sono aos estudos florestais, da importantíssima missão geo-hidrográfica, que se prolongou até meados da década de 50 passando pela zoologia, orizicultura e geografia, alguns dos mais renomados cientistas portugueses aqui aportaram para lançar as bases do levantamento científico da colónia. Como, efectivamente, veio a acontecer. Importa não esquecer que em 1952 Amílcar Cabral chega com a incumbência de coordenar o recenseamento agrícola e que dos anos 40 para os anos 50 apareceu uma vastidão de publicações desde o inquérito à habitação até ao conhecimento das etnias, nos prismas mais diversificados.

António Mendes Corrêa é já um antropólogo com vasto currículo e autor de uma obra que teve grande acolhimento na época, “Raças do Império”. Conhece com uma certa superficialidade as etnias guineenses, visitou as exposições de 1934 e 1940, no Porto e em Lisboa, respectivamente. “Uma jornada científica na Guiné Portuguesa” é o documento da viagem que efectuou durante duas semanas (Agência Geral das Colónias, 1947), e que é credor da atenção dos estudiosos. Vai em primeiro lugar em missão de trabalho a Marrocos, daqui parte por avião para Dakar e novamente de avião para Ziguinchor. Está impaciente, quer começar a satisfazer a curiosidade imensa dos problemas bio-étnicos que lhe assaltam o espírito. Sem perda de tempo, dirige-se para Suzana, território Felupe, uma das populações que ele classifica como das mais interessantes da Guiné Superior. Ouvira falar em barbaridades e canibalismo, nada encontrou, a não ser hospitalidade e manifestações de filariose. Observou antropologicamente 25 felupes do sexo masculino e fez muitas fotografias. Impressiona-se quando vê um felupe que levava consigo o fogo numa porção de excremento de vaca a arder. Acha os felupes bons lutadores, generosos e dotados de uma grande coragem. Regista uma nota curiosa a seu respeito: há entre eles um chefe para as mulheres e os dois sexos não se guerreiam.

De automóvel seguiu de S. Domingos para Bissau. Não compreende como é que as crianças ficam aterradas quando vêem um branco. Acha Bissau uma cidadezinha colonial, com alguns edifícios de certo vulto, muitas casas comerciais, algumas vivendazinhas particulares, dois ou três modestos hotéis, hospital, quartel e mercado. É um grande acontecimento, a chegada de 40 em 40 dias do paquete Guiné. O Palácio do Governo e a Catedral estavam em construção. Uma parte importante da população de Bissau é constituída por cabo-verdianos. Procura esclarecer-se das relações entre os balantas e os papéis. No quartel da Amura recolheu os elementos antropométricos das inspecções militares de vários anos sucessivos. A missão vai prosseguir em Bolama e não esconde a suas críticas: “Creio que a importância comercial de Bissau não deveria ter bastado para arrancar a Bolama a sua categoria política e administrativa, e há uma razão histórica que tornaria profundamente dolorosa no ponto de vista nacional a consequente transformação de Bolama em uma verdadeira cidade morta: é que a soberania na ilha de Bolama constituiu objecto de discussão entre Portugal e Inglaterra, e foi uma nobilíssima sentença arbitral do presidente dos Estados Unidos, em 1870, a nosso favor. Fala do rei de Orango, D. Papo Seco, que anda de chapéu alto e pé descalço. No quartel observou Nalus, Beafadas e Bijagós. E depois partiram para a região dos Beafadas, Fulacunda. Deparasse-lhe muita miséria e muita doença. Recolheu vocábulos Beafadas e Mandingas, não lhes encontrou semelhanças. Apreciou as tatuagens abdominais das mulheres Beafadas e observa que os dois sexos têm mutilações dentárias.

A viagem prossegue para o Sul, Mendes Corrêa quer estudar os Nalus e os Sossos que, à semelhança dos Bagas, Landumãs e Cocolis, estão em regressão. Sente-se muito atraído pelos Nalus, acusados de antropofagia e de constituírem sociedades secretas. A viatura de vez em quando empana, mas tudo acaba bem. Agora a jornada inflecte para o Leste, o cientista quer ir ao chão dos Fulas, aprecia Bafatá, conversa com o régulo de Ganadu sobrinho de Bonco Sanha, régulo de Badora e depois vão até ao Gabu. Vale a pena ler o seu registo: “Uma primeira paragem na tabanca de Fulas pretos de Uacaba onde desfilam, para um rápido exame, diante dos nossos olhos 28 homens e 15 mulheres, que são fotografados num enorme grupo. Quase todos esguios, de saúde razoável e robustez regular (…) As doenças mais frequentes são boubas, lepra, bócio, não havendo mais do que alguns raros casos de doença do sono (…) Queremos levar amostras da rocha, depois de termos fotografado o acidente geológico perto de Canjadude. Mandámos alguém à aldeia próxima pedir que venha um homem com um machado, visto não termos connosco um martelo de colheitas geológicas. Apareceu-nos pouco depois uma multidão de Mandingas, armados, cada um com o seu machado de ferro”. Conversa com o filho do régulo de Madina de Boé, Mamadu Alfa Djaló. E depois discreteia sobre as missões e a delicadeza do seu trabalho em meio predominantemente islâmico. A propósito das centenas de idiomas africanos, faz o reparo das novas classificações. Até 1912 estabelecia-se uma distinção profunda entre as línguas sudaneses e as bantos. Nota que algumas línguas sudaneses e guineenses, como o Mandinga e o Sosso têm caracteres diferentes das bantos.

Mendes Corrêa é um apaixonado pela arte guineense, faz uma recolha de cachimbos em madeira ou argila, mas também de couro lavrado, armas, peças de prata filigranada e panos. A jornada prossegue para o noroeste da Guiné, o estudioso quer ir ver as tabancas de Banhuns e de Baiotes. Ainda visita os Cassangas e o Cobianas, núcleos étnicos muito reduzidos. E de S. Domingos parte para Ziguinchor.

A seguir a esta jornada científica, e ainda dentro do mesmo volume, consta a comunicação ao congresso do descobrimento da Guiné intitulada “Elementos para a classificação de raças e línguas da Guiné Portuguesa”, e um longo artigo intitulado “Movimento de populações na Guiné Portuguesa”.

Por último, o cientista espraia-se sobre as observações antropológicas da sua missão e fala dos projectos futuros. Convém recordar que a sua presença foi importante para a preparação da 2.ª Conferência Internacional de Africanistas Ocidentais que se veio a realizar em Bissau, em 1947.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Dezembro de 2011 Guiné 63/74 - P9162: Notas de leitura (310): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (2) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: