quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9084: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (4): Quando os nossos soldados indígenas se suicidavam...

1. Texto do José Ferraz (ex-Fur Mil, Op Esp, CART 1746, Xime e Bissau, 1968/70)

 Caríssimo Companheiro e Camarada Luis:

Relâmpagos mentais (tradução livre de Brain farts = peidos cerebrais)...

Já estava no QG, [em Bissau, em meados de 1969,]  quando um dia, por volta do almoço, apareceu lá
 um jeep da PM [ Polícia Militar].  Queriam falar comigo urgentemente (nunca gostei desses tipos cagões até dizer chega,  a minha recruta nas Caldas foi dada por cabos milicianos da PM que curiosamente estavam de serviço no cais,  no dia do meu embarque para a Guiné onde eu de propósito me aproximei deles,  todavia cabos milicianos e eu furriel, para que me fizessem a continência da ordem).

Mas voltando ao assunto deste "relâmpago"... Disse-me um dos PM:
 -Meu furriel,  precisa de vir connosco ao Pilão porque esta aí um soldado nativo que nos ameaça com a G3, quando queríamos entrar na sua tabanca [, morança]. Diz que só fala consigo...

Lá fomos. Quando chegámos,  os PM tinham montado segurança à volta dessa morança e procuraram dissuadir-me de entrar. Gritei para que soldado me ouvissee. Entro pela casa dentro,  aí estava o Mussá, que tinha feito operações comigo no Xime,  sentado na cama e semideitado contra a parede,  fardado,  com a G3 ao seu lado e um enorme punhal fula espetado na barriga de que só se via o punho e uma enorme mancha de sangue coagulado e já seco sobre o seu ventre.

Estava vivo... Falámos e consegui convencê-lo,  primeiro a dar-me a G3 e depois a ser levado para o hospital militar onde os médicos o salvaram.

Nunca consegui saber as  suas reais razões por detrás deste acto. Soube que infelizmente ele viria mais tarde a consumar o suicídio.

Um forte abraço, Zé

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9080: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (3): Hugo Spadafora, o Che Guevara italopanamiano (1940-1985), terá estado no (ou passado pelo) Fiofioli nos idos anos de 1965/67
 

6 comentários:

Luís Graça disse...

Mussá parece ser um apelido mandinga... Os mandingas tinham uma tradição histórica de suicídio (pelo menos, coletivo: refiro-me à Guerra do Turu-Ban, em 1864, em que os mandingas foram massacrados pelos fulas do Futa-Djalon, e houve suicídios em massa... Mas o Cherno Baldé, que é fula, pode falar-nos melhor deste horrível episódio da história destes dois povos)...

No Xime havia população mandinga (alguma com fama de ser pouco leal às NT). Faz anos, no dia 26, sábado, faz 41 anos, que morreu em combate o pequeno e valoroso guia e picador das NT, o mnandinga Seco Camará, despedaçado por uma roquetada. (Estava lá e recolhi os seus restos, na antiga picada do Xime- Ponta do Inglês)..

Quanto a este infeliz Mussá, devia ser mílícia... O nosso amigo Eng. José Carlos Mussai Biai, que era "djubi" no Xime, no nosso tempo, tal como o Cherno Baldé em Fajonquito, é capaz de se lembrar deste caso... E até é capaz de se lembrar do Zé Ferraz ou pelo menos da malta mais velha da CART 1746... (Vive em Lisboa, trabalha no IGP - Instituto Geográfico de Portugal; também ele foi aluno do PEM - Posto Escolar Militar, no Xime).

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/
2010/11/guine-6374-p7339-in-memoriam-62-por.html

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Zé Ferraz

O teu caso é bem característico do que de um modo geral se passou com a maior parte de nós, os que por aqui, no Blogue, vamos aparecendo, e também com alguns outros que vou encontrando e que é ter as coisas arrumadas lá num cantinho da memória e depois dum clic vão-se soltando quase em contínuo.

Este episódio é mais um desses, se bem que trágico e com qualquer coisa incompleta em termos de explicação para o sucedido. No entanto ilustra bem as fortes ligações que se foram construindo pois o homem, naquela difícil situação, apenas te queria a ti como interlocutor. Sintomático.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Camarada Zé Ferraz

Ui..que mauzinho para com os cabo-milicianos PM..mas compreendo..compreendo.
Como em tudo na vida há gente que ao ter pequenos poderes..gosta de abusar..é evidente que a PM era mal vista por todos,apesar de haver muitos camaradas da PM que exerciam as suas funções digna e correctamente.
Um dia esperava, junto ao quartel da Amura,a carrinha de transporte.
Estava sentado em cima da boina no parapeito de uma pequena montra..nisto sai do quartel um jeep da PM com dois soldados e um furriel, que ao ver-me sem boina manda parar o jeep e dirige-se a "moi" ...oh alferes ponha a boina e diga-me lá o seu n.º mec....bem subiu por mim acima um "furnicoque" que me apeteceu dar-lhe logo uma cabeçada..mas contive-me.. e respondi-lhe...ouça lá ..não sabe as normas militares..fez um sorriso maroto..recuou..sentido..continência e o.. dá-me licença...e eu.. NÃO DOU.. o que valeu foi entretanto aparecer um capitão da PM com senso que resolveu o problema..

C.Martins

jdeferraz disse...

Camarada C. Martins.

Alguem escreveu o
"poder currompe o absoluto poder currompe absolutamente " a esta gostaria de juntar "a ignorancia e a mae do medo tal como o conhecimento sera o pai da coragem...os que nao prestavao deviao ter sido escolhidos de proposito pela sua total ignorancia.
estou-me a dar conta que a minha ortografia nao e o que era peco desculpa por estes erros.
Um abraco camarada-Ze.

Luís Graça disse...

..."Power corrupts; absolute power corrupts absolutely"...

A frase (que eu julgava ser de renascentista Thomas More, o autor da Utopia, ou até do Churchill...) é, na realidade, de John Emerich Edward Dalberg Acton, first Baron Acton (1834–1902), ou simplesmente Lord Acton, escritor, historiador e político, católico (*)...

Eu prefiro dizer que o poder "tende" a corromper...se a correlação de forças entre A e B for demasiado desequilibrada... Como sociólogo, não defendo que os jogos de poder são uma soma nula... Se assim fosse, estávamos historicamente tramados, nunca haveria mudanças societais e as ditaduras teriam mil anos...

Não tenho dúvidas que o exército no nosso tempo era (e continua a ser) uma "total institution", para usar a categoria sociológica de Erving Goffman, uma instituição física, cultural e simbolicamente muita fechada, cujo objetivo é "formatar" um pobre mancebo e fazer dele um "valente soldado"...

Pessoalmente nunca tive problemas com a Polícias Militar, mas que era temida no nosso tempo era... Já aqui se contaram algumas histórias passadas com a PM em Bissau... (Estou-me a lembrar do Hugo Guerra, "cacimbado", vindo de Guileje)...

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(*)

http://en.wikipedia.org/wiki/John_Dalberg-Acton,_1st_Baron_Acton

João Carlos Abreu dos Santos disse...

Curiosidade, para a história da guerra na Guiné.
A propósito deste postal evocar uns «tipos cagões até dizer chega», no pretérito domingo a "nossa televisão xik" transmitiu mais um programa "burguês", no qual um muito conhecido político afirmou – em entrevista precavidamente gravada –, ter sido «mandado para o mato da Guiné» e mais algumas "coisas" que, durante alguns dias prévios, foram transformadas em tópicos de propaganda daquela conversa... , por acaso transmitida na semana precedente à tal greve "geral".
Jerónimo Carvalho de Sousa, nascido a 13Abr47 em Pirescoxe, em 29Mai69-06Fev71 foi Soldado PM na CPM2537, tendo esta destacado em 07Jun69 alguns efectivos «para reforço temporário dos destacamentos de Rossum, Uaque, Jugudul e Infandre, no sector do BCac2885», seguidamente um pelotão em 10-20Jun69 destinado a «reforço do BCac2856» em Bafatá e dali transferido «para o sector do BCac2852, com vista a organizar a autodefesa de Samba Juli, Sansacuta e Demba Tacobá», pelotão aquele que em 14Jul69 regressou à sede da subunidade em Santa Luzia, a qual em 05Set69 foi transferida para o Forte da Amura.
Haverá por aí camaradas da Guiné, contemporâneos do actual secretário-geral do PCP, com testemunhos que queiram partilhar?
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