sábado, 29 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)


Amílcar Cabral, 1966... Fotograma do filme documental Labanta Negro, do realizador italiano Piero Nelli, 1966, a preto e branco, 16 mm, 39' de duração... Passou recentemente no doclisboa2011, na retrospetiva 'Movimentos de Libertação'...


Foto de Luís Graça (2011).


1. Continuação da leitura do livro de memórias do Bobo Keita (BK), da autoria de Norberto Tavares de Carvalho (*)...
 

“Eu não fui mobilizado directamente pelo Partido” – confessa BK ao seu entrevistador, NTC. “Foi graças à minha actividade desportiva e sobretudo à conversa do Nkrumah no Gana [, por ocasião do torneio de futebol de 1959]” (p. 58).

BK sabia da existência do PAIGC, clandestino, mas não tinha contactos diretos com nenhum militante, em Bissau. “(…) Sabia que havia o Rafael Barbosa e que o meu primo Momo Turé fazia propaganda do Partido, mas não conversávamos sobre o assunto” (p. 59).

Já na clandestinidade e sob vigilância da PIDE (, instalada em Bissau desde 1956), Amílcar Cabral tinha estado na capital da província, de 14 a 21 de Setembro de 1959,  para trabalho de organização política, com os seus colaboradores mais próximos (o seu meio-irmão Luís Cabral, Aristides Pereira, Rafael Barbosa e João Silva Rosa), instalando-se depois em Conacri.

Em todo o caso não se percebe muito bem, pela leitura do livro do NTC, como é que BK decide, uma bela manhã, partir para o sul com o objetivo de chegar a Conacri, e oferecer os seus préstimos a Amílcar Cabral que, em boa verdade, ele mal conhecia. BK, que era o sustento da família, despede-se, com a aparente naturalidade das gentes africanas, da sua querida mãe e dos seus 3 manos (dois dos  quais irão mais tarde ingressar no PAIGC, na fase da luta de guerrilha). Presume-se que BK tenha ocultado à família os seus projetos.  Aparentemente ele ia para o sul fazer a “campanha da costura” (sci), numa altura propícia aos alfaiates, que era a colheita das nozes de cola.

Por outro lado, a sua saída de Bissau não parece ter sido um ato isolado… No dia 26 de Dezembro de 1960, “o primeiro grupo de colegas” (sic)  decide “organizar-se” e parte para o sul  (p. 60). Presume-se que BK se refira aqui a “colegas” do futebol e do Cupelom de Baixo. A 30, “foi a vez do meu grupo sair de Bissau” (p. 60).

Terá sido simples coincidência ou foi mesmo uma “fuga”, planeada e organizada, com a eventual cobertura do PAIGC ? BK  não é claro a este respeito, nem o seu entrevistador aprofundou (ou mostrou interesse em aprofundar) esta questão. 


Do “primeiro grupo” faziam parte craques da bola como o Julião Lopes, o Lino Correio (UDIB) e o João de Deus (primo do BK e também titular da seleção). Do outro grupo, além do BK, fazia parte o Ansumane Mané, “Corona”. Um e outro eram também jogadores da seleção. Ao todo eram apenas três, incluindo um “rapaz de Bissau”, não identificado.

Os três embarcam no porto de Bissau a caminho de Enchudé, frente a Bissau, no outro lado do Rio Geba, mas já na região de Quínara. Aqui apanham uma boleia, de carro, até 
Sangonhá, região de Tombali, já na fronteira com a Guiné-Conacri. 


“Quem nos levou foi um dos condutores do Camacho, um grande comerciante português instalado no sul”… Em Sangonhá, havia duas lojas, “a do Alfa Camará e a de um senhor mestiço que, segundo constava, colaborava com a PIDE” (p. 61).

O Alfa Camará era amigo do pai do BK. Não se se sabe se era simpatizante ou até militante do PAIGC. Muito provavelmente não, já que a mobilização no interior ainda não tinha começado. De qualquer modo, era um dos contactos do BK no sul. Ele já tinha levado, “em segredo”, as bagagens do BK, numa viagem anterior em que viera a Bissau abastecer-se (p. 61).

A escolha da rota do sul, para se chegar a Conacri, era aparentemente mais fácil do que a rota do norte, via Senegal. Para justificar a sua presença, perante as autoridades portugueses, BK apresentava-se sempre como alfaiate que ia fazer a “campanha de costura do sul”. O “Corona” era o seu “ajudante” (p. 60).

O grupo não entrou na Guiné-Conacri através do posto fronteiriço de Sangonhá. Daqui seguiu para Campaeane, na margem esquerda do Rio Cacine, a sul de Cacine. Dormiram na casa  de “um amigo que nos fora recomendado” (p. 61). Esse mesmo amigo levou os três, logo de manhã, para a “outra margem”, que já era território da Guiné-Conacri, a uma hora de distância.

Chegados lá, tiveram uma “agradável surpresa”, foram encontrar o grupo do Julião Lopes, que partira de Bissau a 26 de dezembro de 1960. (Este Julião Lopes será o futuro comandante da Marinha de Guerra da Guiné-Bissau,  depois da independência e até ao golpe de Estado de ‘Nino’Vieira, em 14 de novembro de 1980).

Continuo, no entanto, sem perceber se BK agiu sozinho,  por conta e risco, ou se beneficiou da eventual ajuda da “rede clandestina”  do PAIGC que, na época, ainda deveria ser bastante “incipiente” em Bissau (para não dizer "inexistente" no sul). De qualquer modo, BK chega a Conacri, são e salvo,  a 12 de Janeiro de 1961, doze dias depois de se ter despedido da mãe e dos irmãos em Bissau. Ele e os seus "colegas" da bola...

Antes disso, aos dois grupos (o do BK e do Julião Lopes), reagrupados em Canfandre, junta-se em Boké, um terceiro, também oriundo de Bissau. Formaram um equipa de futebol que ainda disputou algumas partidas. Os “Portuguis Nara” (expressão local, que queria dizer: 'São Portugueses'), com vários titulares da seleção de futebol da província portuguesa da Guiné, foram recebidos com entusiasmo pela população e pelas autoridades  da região de Boké,  não tanto pelo seu ardor nacionalista como sobretudo pelo seu talento futebolístico…

Chegados finalmente a Conacri, foram encaminhados para os serviços de imigração a fim de legalizarem a sua situação. Recorde-se que a Guiné-Conacri tinha-se tornado independente da França em 2 de Outubro de 1958, quase dois anos mais cedo que o Senegal (, que chegará à independência apenas a 20 de Agosto de 1960).

“Comunicaram então ao Cabral a nossa presença na capital guineense” (p.65)… 

BK conhecera o “senhor engenheiro” uns anos antes,  “quando era ainda muito jovem”… [ou seja, entre 1952 e 1956, quando Cabral trabalhou na sua terra como engenheiro agrónomo, com a sua esposa, Helena, portuguesa]. BK lembra-se de ele lhe oferecer “uma bola” e de organizar “pequenos torneios na Granja do Pessubé para os mais jovens” (p. 65).

Em Conacri, BK e os seus amigos passaram a ficar no “lar do Partido”, que ficava no bairro de Almame-La. Nessa época Cabral preparava os primeiros combatentes da futura “luta de libertação”. Ele próprio vai à China, em Agosto de 1960, pedir apoio, à frente de uma delegação que integra o Luciano N’Dau, o Dauda Bangura e o Joseph Turpin. 

Um segundo grupo segue, no 2º semestre de 1960,  para a China,  para formação político-militar, do qual faziam parte 10 futuros destacados dirigentes do PAIGC, hoje todos desaparecidos, uns em combate outros na "voragem da revolução" (com exceção de Manuel Saturnino da Costa)… Aqui vão os seus nomes, por or ordem alfabética: 

(i) Constantino dos Santos Teixeira (“Tchutchu Axon”);

(ii) Francisco Mendes (“Tchico Tê”) (1939-1978);

(iii) Domingos Ramos (morto, em combate, em Madina do Boé, em 11 de Novembro de 1966);

(iv) Hilário  Rodrigues “Loló” (, comissário político, morreu em 1968, num bombardeamento da FAP, no Enxalé);

(v) João Bernardo “Nino” Vieira (1939-2009) (natural de Bissau; ex-Presidente da República);

(vi) Manuel Saturnino da Costa (será 1º ministro entre 1994 e 1997; ainda é vivo);

(vii) Pedro Ramos (fuzilado em 1977, às ordens de ‘Nino’ Vieira, ao que parece, no âmbito do chamado "caso 17 de Outubro");  

(viii) Rui Djassi (comandante da base de Gampará, morreu em 1964, por afogamento na sequência de um ataque das tropas portuguesas);

(ix) Osvaldo Vieira (1938-1974; morreu, por doença, em 1974, num hospital da ex-URSS, e com a terrível suspeita de ter estar implicado na conjura contra Amílcar Cabral; ironicamente repousam os dois, lado a lado,  na Amura); era também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra);

(x) Vitorino Costa (morto, numa emboscada em 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, comandado pelo Cap Inf José Curto; era irmão de Manuel Saturnino da Costa).

“Quinze ou vinte dias  depois da nossa chegada a Conacri  regressou da China este segundo grupo”, esclarece BK  (p. 66).

Os primeiros tempos em Conacri – estadia que se vai prolongar até Outubro de 1961 – foram passados com aulas de “preparação política de base”, dadas pelo próprio Amílcar Cabral … As aulas chegavam a prolongar-se até às tantas da noite. Cabral utilizava, para o efeito, a garagem da casa onde vivia. 

"Aí é que começamos a vida dura de militantes. Cabral dava aulas de conhecimento geral sobre a nossa terra, sobre os motivos porque resolvera lutar contra os Tugas, as injustiças, e dava exemplos práticos que toda a gente compreendia. Falava muito de independência e de liberdade" (p. 66).


À pergunta de NTC sobre se alguma vez o BK teve dúvidas ou quis voltar para trás (“e entregar-se aos tugas”), BK é firme e peremtório, mas sobretudo "politicamente correto" (aos olhos do seu entrevistador, também ele antigo militante do PAIGC, e também ele vítima do golpe de Estado de 'Nino' Vieira), como seria de esperar, de resto, de um homem que passou mais de 13 anos na dura luta de guerrilha:

“Houve momentos de incertezas, felizmente esses momentos foram passageiros. De dúvidas não posso falar. Sabe que eu tenho um princípio que é o seguinte: palavra dada é coisa sagrada. A luta foi difícil, mas nunca pensei em abandonar. Quanto aos desertores, a lei do Partido exigia que fossem executados… Era a lei militar” (p. 67).

Não tenho dúvidas que Bobo Keita, sendo um homem coerente, se tivesse jurado bandeira, nas fileiras do exército português e não se tivesse sentido injustiçado (como aconteceu com o 1º Cabo Miliciano Domingos Ramos, vítima de racismo, segundo o depoimento do seu amigo Mário Dias), nunca teria chegado a comandante do PAIGC... Bobo Keita, por outro lado - é bom recordá-lo - foi dos poucos guineenses que, opondo-se ao golpe de Estado do guineense 'Nino' Vieira contra o caboverdiano Luís Cabral, se exilou voluntariamente, em Cabo Verde, em 1998, para vir morrer no país dos  tugas, em 2009...

Luís Graça,

Quinta de Candoz, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 27/10/2011

(Continua)

[ L.G. segue a nova ortografia. Respeita, no entanto, a ortografia antiga nas citações de outros autores ou fontes]

7 comentários:

Torcato Mendonca disse...

****--A luta foi difícil, mas nunca pensei em abandonar. Quanto aos desertores, a lei do Partido exigia que fossem executados… Era a lei militar” (p. 67).---***

Pensem nesta frase, Caros Camaradas, para quando se tecem,mesmo aqui neste blogue,"louvores" ao antigo inimigo e diz-se agora amigo!

A guerra,esta, acabou mas...

Bom fim de semana para todos e que nunca se esqueça Marte.

Ab T.

Luís Graça disse...

"São portugueses" [Portuguis Nara], diziam na Guiné-Conacri as gentes locais, maravilhadas com o talento futebolístico dos homens que, como Bobo Keita, vinham, de Bissau, juntar-se em Conacri ao movimento de Amílcar Cabral...

Em Janeiro de 1961... ainda antes do início de todas as guerras coloniais na África portuguesa...

Torcato Mendonca disse...

Aqui há gato ou eu estou com o Alzheimer adiantado....o comentário que fiz não foi a este Poste. O escrito foi modificado ou eu estou chalado. Não era assim.
Torcato Mendonça

Anónimo disse...

Caríssimo Amigo Torcato Mendonça. "Má que gêto mó!?" Como escreves-te:-Ou o texto foi modificado...OU........ Ficamos,"a modos que",suspensos entre os dois "OU"s.Não desanimes!Sinceros desejos de melhoras, com muita Fé e mezinhas.

Anónimo disse...

Hesitei em comentar.

Perante tantas contradições, estou meio pasmado.

Havia posto fronteiriço em Sangonhá? ?
Não seria em Gadamael fronteira?

Não era mais fácil atravessar a fronteira em Sangonhá,do que ir para Campeane e depois ter que atravessar todo o Quitafine e ainda ter que cambear um rio já na Guiné-conakri.
Considero isto irrelevante, mas que me faz confusão , faz.
Eram fuzilados os desertores ..uihh
mas que grande novidade.

C.Martins

Luís Graça disse...

Temos uma série de referências sobre Sangonhá no nosso blogue:

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/
search/label/Sangonh%C3%A1


O nosso amigo Cor Art Ref Nuno Rubim informou-nos que Cacoca foi ocupado desde 25Jun64, sendo desactivado em 29Jul68, tal como Sangonhá [, onde também só havia tropa desde 1964].

Por sua vez, Cor Art António José Pereira da Costa, acrescenta o seguinte:

(...) Em Maio/Junho de 1968, o Gen Spínola [, então ainda brigadeiro, ] determinou o abandono dos quartéis de Sangonhá e Cacoca. Houve que transportar, para Gadamael e Cacine, a população que ali residia e que, em Cacine, ficou instalada na antiga Missão do Sono que agora já não existia, visto que a doença estava erradicada.

Foram feitas mais de 30 colunas em pouco mais de 15 dias. À chegada foi necessário construir as casas com o auxílio do pessoal da CART 1692. Pela sequência das fotos é possível ver que se podem construir casas a partir do telhado. A qualidade das fotos não será a melhor, mas este poderá ter sido o primeiro Reordenamento da Guiné. (...)

Quanto à questão levantada por C. Martins, admito que Bobo Keita tenha feita troca de nomes; ... Será que se queria referir a Gadamael Fronteira em vez de Sangonhá ? Em princípio, não, já que o amigodo seu pai vivia em Sangonhá e trouxe, com ele, de Bissau, as bagagens do BK... Sangonhá ficava a c. de 3 km da fronteira (em linha reta, pela carta de Cacoca, 1/50000, de que dispomos)...

Se tinha ou não tinha um posto fronteiriço em finais de 1960 ? Não faço a mínima ideia, nem tenho meios de o confirmar, não havia lá tropa sequer, nessa altura... No livro de memórias de BK, está escrito o seguinte:

"Esse comerciante, o Alfa Camará, amigo do meu pai (...) vivia perto de Sangonhá que era a fronteira com a Guiné-Conacri. Ficava a menos de quinhentos metros do posto fronteiriço onde se edificava a barragem controlada pelas autoridades portugueses" (p. 61).

Por é que ele e os seus colegas, que viajavam desde Bissau, não entraram nessa fronteira, e preferiram ir dormir a Campeane, a sul de Cacine, entrando, depois, de canoa, no território da Guiné-Conacri ?

O BK e o seu entrevistador (NTC, autor do livro) não são muito explícitos sobre esta questão... Julgo que as razões eram sobretudo de segurança: " Tivemos sempre que justificar a nossa presença nos lugares em que transitávamos. Dizíamos simplesmente que íamos fazer a campanha [da costura no sul]" (p. 61). Ora o sul terminava em Sangonhá, Gadamael, Cacine... Passar para o "outro lado", só podia ser "ilegalmente"...

Cherno Baldé disse...

Caro Luis Graca,

O Comandante Bobo Keita pertence a grande familia etnolinguistica dos Mandingas/Sossos espalhada por toda a regiao oeste africana, tendo como ponto de partida o actual territorio do Mali e da Guiné-Conacri.

Na, entao, Guiné-Portuguesa, o ramo Sosso (dos Camara, Keita, Bangura, etc;) estabeleceu-se predominantemente no sul do pais, no chao Nalu, cujos habitantes, ciosos dos seus segredos ancestrais, adoptam a lingua e os apelidos dos seus hospedes muculmanos e mais tarde a sua religiao. Como consequencia mais relevante desta assimilacao voluntaria é o facto de que a lingua Sosso passou a ser nao so a lingua de referencia (franca) mas, para as novas geracoes, a unica lingua conhecida e falada pelos proprios Nalus, para nao falar da conversao em massa a religiao muculmana.

Ao escolher a via do sul, o BK sabia estar bem protegido no meio de um ambiente bem familiar. Penso mesmo que, a par de outras razoes possiveis, a forte ligacao do (Cu)Pilum com a zona sul, podia estar na base das escolhas estrategicas para o inicio e posterior desenvolvimento da guerrilha.

Na Guiné, o futebol constituiu sempre, mesmo no decurso da guerra, um forte elemento de valorizacao, de ascensao social, de rivalidades entre grupos e de despertar de consciencia politica (ver nacionalista).

Parece-me sintomatico, diria mesmo paradoxal, mesmo se nao damos muita importancia, o facto do antigo guerrilheiro do PAIGC morrer num hospital de Lisboa, na sua antiga metropole, em completa ruptura com os seus. Embora nunca tenha fraquezado nem tao pouco esteja arrependido de nada, todavia, nesse pequeno lapso de tempo "Portugues", creio que foram muitas as interrogacoes.

E verdade que para as populacoes dos paises vizinhos da Guiné, ainda hoje, a expressao "Portuguis" ou "Portugais" designa os habitantes da Guiné-Bissau.

Com um grande abraco,

Cherno Baldé