quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8900: Notas de leitura (286): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 8 de Outubro de 2011:

Aqui há alguns dias atrás, um camarada interpelava o Mário B. Santos, através de comentário, se ele já tinha lido o livro com o titulo em epígrafe: "Lugar de Massacre", da autoria de José Martins Garcia, edições Salamandra, 1996 - 3.ª edição**.

Parece-me de realçar que a 1.ª edição ocorreu em 1975 e por via da Afrodite, essa interessante editora de Fernando Ribeiro de Mello, não só pelo cuidado das suas edições, mas, também, pelo arrojo dos temas apresentados (de que o mais conhecido será, talvez, a "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica"), e pela divulgação de autores polémicos como Luís Pacheco, ou o mal-amado Fernão Mendes Pinto. A 2.ª edição foi no Circulo de Leitores.

Aquela interpelação levou-me novamente à estória, pois recordava apenas tratar-se de um texto de uma ficção erudita, e que me deu grande gozo na leitura.

De facto, trata-se de um romance cuja acção decorre no território da Guiné durante o período da guerra pela independência. É um género literário algo difícil, embora escrito com grande qualidade, apesar de o Autor, por momentos, parecer ter bebido um fortíssimo licor de absinto, com consequente perda do fio da meada. Mas não, não perdeu nada!

Ele recorre a um estilo provocador, eivado de uma inspiração humorística, que deve ter dado muito gozo enquanto escreveu a obra, através da qual são estilizadas diversas questões de absurdo, indiferença e irresponsabilidade, que aconteciam, quer nas repartições de Bissau, quer nos batalhões e companhias dispersas pela quadrícula (o mato). A partir dessa malha tece o Autor quadros de exageradas pinceladas, com riqueza de detalhes espantosos, e que contrariam o que mais se espera do retrato da guerra: a disciplina, a ordem, a determinação, o controle da situação. O Autor caracteriza as tradicionais dificuldades "obrigatórias" para o pessoal do mato, tanto ao nível das instalações, como do material, segurança e alimentação.

Mas o grande gaudio atinge-se com a caracterização da ineficiência verificada em repartições e departamentos militares em Bissau, onde vícios associados a tiques, a castas (filhos-de-famílias), à incompetência, ao desleixo, e à generalizada falta de auditorias (um fartar vilanagem, com ramificações cancerígenas por todo o território), espelhavam o ridículo e a ineficiência de algumas dessas repartições e departamentos, subjugados a interesses subterrâneos de conivências, apadrinhamentos e tricas, e à subtil vigilância exercida por uns sobre os outros, de que resultavam expressivas futilidades, inanidades e injustiças.

Neste particular desenvolve-se a narrativa, pela descrição pormenorizada das principais figuras dos "Serviços de Conjugação", onde um "lobby" de "panascas" desenvolve espectacularmente o caos e a actividade displicente, em termos geralmente repugnantes para o meio militar, mas tolerados por via de influências, receios revanchistas, e pela incapacidade para denunciar o comandante daqueles serviços.

A par disso, medrava a bebedeira da rejeição, protagonizada, sobretudo, por um alferes miliciano ceifado pela tropa no inicio da carreira profissional, decadente pelo álcool, que aqui e além acrescenta incisivas críticas ao regime militar em guerra, e que vem a sofrer com sucessivas andanças pelo mato, em inócuas tarefas de experimentação de equipamentos, sem obrigações nem responsabilidades, no que poderia tornar-se a divisa dos serviços, como consequência de uma sórdida congeminação do comandante e do amante.

Como referi, por vezes parece perder-se o tino da acção, por súbitas intercepções ou desvios ao discurso, num propositado caminho de desequilíbrios, dando abrangência a muitas e variadas estórias que aconteceram durante a guerra, mas, também, a muitos aspectos que feriam a capacidade da máquina militar, onde se ocultavam "ilhas paradisíacas", autónomas ou não, onde estranhamente se movimentavam oficiais, sargentos e praças que, objectivamente, não contribuíam para o bom desempenho e resultado da guerra, descrições que chegam a ser hilariantes.

Abraços fraternos
JD
____________

Notas de CV;

(*) Vd. poste de 2 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8728: História da CCAÇ 2679 (43): Aquele hôme (José Manuel Matos Dinis)

(**) Vd. poste de 3 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5924: Notas de leitura (72): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 10 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8885: Notas de leitura (285): Até Lá Abaixo, de Tiago Carrasco (Mário Beja Santos)

3 comentários:

manuelmaia disse...

CARO ZÉ,


A recensão que fazes do trabalho de José Martins Garcia,Lugar de Massacre, indicia que estasmos perante um autor que vem ao encontro daquilo que aprecio na escrita,um toque de provocação, e a sátira na ponta da caneta,evidenciando algum desassombro pela denuncia daquilo que entendeu como errado e que no fundo a maioria do pessoal sentia, a ineficiência da "guerra" da capital e o "mando",a prepotência, o desaforo pelo uso e abuso da política da compadrio por lá existente...
E o pessoal do mato com tantas carências,à mercê daquilo que chamaste "lobby de panascas" ...
Vou tentar chegar à leitura do documento.
abraço

Manuel Joaquim disse...

Caros camaradas:
Como referenciado no final deste "Post", está publicada neste blogue uma outra recensão de LUGAR DE MASSACRE, feita pelo Beja Santos.
Num coment. a esta recensão eu dizia que o texto da obra devia ser visto como um romance e não como outra coisa que provasse algo factual. Disse na altura, e torno a dizer que é um texto excessivo mas cruelmente humano, tal como nós também muitas vezes fomos nas nossas vidas de guerreiros,muitas vezes desorientados "à procura da rolha",tentando perceber o sentido e/ou a razão das ações, algumas vezes sem o conseguirmos.
Li pela 1ª vez o livro em 1980, quando o comprei. Marcou-me logo pelo tema, pelo modo de escrita, por uma espécie de energia anarquista ( ou seria "maluqueira"?)que brotava daquele exercício panfletário contra a guerra. Nunca o vi como "crónica" de guerra, como história assente na realidade factual da Guiné.
Vi-o como um modo de criticar uma guerra por alguém que a tinha condenado e, pelo que se depreende, abominado (sejam quais forem as razões, políticas ou outras). Repito o que disse no coment. referido: "Aquela maluqueira (do livro)
passava ao lado da minha guerra onde tive muito medo, senti a sorte proteger-me, fui louvado por atos em combate, chorei e ri muitas vezes, sofri muito mas também me diverti muito! ..."

É um livro, digamos, muito datado ideologicamente mas a sua reeleitura fez-me compreender melhor a "paisagem" dos veteranos desta guerra, a começar por mim, e a pensar
que muito daquilo por que têm passado como veteranos pode estar ligado ao que passaram como combatentes. Este blogue tem-me ajudado a sustentar esta ideia: basta "saber" ler as suas páginas.

Um abraço

JD disse...

Caros Camaradas:

O comentário do Manuel Joaquim tem toda a razão de ser como, aliás, o do Manuel Maia. É que, na mesma medida em que duas pessoas reagem diferentemente perante o mesmo estímulo, também a interpretação de um livro, qualquer que seja a relação do leitor com o conteúdo, também difere entre leitores em igual circunstância.
É como quem diz: vejo o mundo pelos meus olhos.
Sobre a crónica do Beja Santos, de muito bom nível, por alguma razão não tomei conhecimento dela, nem pretendo revelar coisas diferentes. Só o que me sensibilizou.
Já agora: também eu tive a minha passagem na Guiné com a mesma caracterização feita pelo Manuel Joaquim relativamente à sua, com excepção do sofrimento, que não me pareceu excessivo (outra subjectividade). Logo, em circunstâncias muito equivalentes.
Por último, eu escrevi "lobby", mas a expressão "panascas" é do autor.
Abraços fraternos
JD