sábado, 8 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8869: Filhos do vento (8): O Jorge Gomes, de Barro, e o Bacar Turé, de Bigene (A. Marques Lopes)


Texto de nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968), e um dos membros mais antigos da nossa Tabanca Grande... Escrito por ocasião da viagem de grupo organizada pelo Xico Allen (Do Porto a Bissau, Abril de 2006)..

Reproduzido hoje, com a devida vénia ao autor [, foto à esquerda] (*), na série Filhos do vento (**)


 Caros camaradas e amigos: Foram casos que muito me sensibilizaram nesta visita à Guiné. É sabido que há-de haver muitos casos destes, mas estes tocaram-me pessoalmente e quero dar notícia disso.

Em Barro, o Bacar Sani, filho do Cacuto Seidi, disse-me que havia um filho de branco chamado Jorge Gomes [, foto à esquerda]. Pedi para o ir chamar, mas o rapaz não vinha, vergonha ou receio, não sei. Fui eu pela tabanca dentro à procura dele e lá cheguei á sua morança.

Disse-me que o pai se chamava F... e que lhe tinha dado o nome, mas fora-se embora. Não sabia quem era a mãe, porque ela desaparecera, por vergonha e repúdio dos da sua etnia (não lhe perguntei qual). Também não me soube dizer a qual companhia pertencia o pai, mas penso que terá sido das últimas a estar em Barro, pois que o rapaz tem 33 anos.

Passámos, depois, em Bigene, onde parámos bastante tempo para o turbulento fotógrafo Hugo [Costa] fazer a sua reportagem fotográfica. E aí conheci o Bacar Turé, que me disse ser filho de (...)  [um]  médico do Destacamento [...] dos fuzileiros que estavam em Ganturé [no Rio Cacheu, a sul de Bigene], e que o comandante [...] conhecia bem o pai dele, que se fora e não lhe dera nome, daí ser Bacar Turé [, foto à direita].

Há mais casos semelhantes a estes, é claro, pois é verdade, como disse o António Gedeão, que, como muitos, também eu "Tremi no escuro da selva, /Alambique de suores, /Estendi na areia e na relva, /Mulheres de todas as cores" (in Poema da Malta das Naus). E tive de pensar sobre o que faria eu se soubesse que tinha medrado alguma semente minha em terras da Guiné... mas cada um deve pensar por si, evidentemente.

A. Marques Lopes

Fotos: © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados.

______________

Notas do editor


(**) Último poste da série > 29 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8838: Filhos do vento (7): O infanticício não era uma prática tão generalizada quanto se pensa... O caso do Balanta-Tuga, de Bedanda (Cherno Baldé)


(**) António Gedeão > Poema da malta das naus

Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
Pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão direita benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.

In Teatro do Mundo, 1958

Fonte: CITI - Centro de Investigação para Tecnologias Interactivas, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (com a devida vénia...)

6 comentários:

Anónimo disse...

Não sou Gedeão mas deixo-te aqui em homenagem a esses "Filhos do Vento", a cujos pais não ouso chamar "Filhos da Mãe" porque a vida é muito mais complexa do que o simplismo de um julgamento a frio e ao longe.

Resumo de Mim


nasci cruzado
por muitas ânsias
cresci moldado
pelas distâncias
de aquém de mim
a além-mar
querendo partir
e retornar
buscando o mundo
sem me alcançar

cercado em terra
não quis ficar
na crença de ir
só p´ra voltar
cruzei as águas
não sei nadar
as minhas mágoas
choro a cantar
chamando fado
ao meu chorar

nasci cruzado
pelas paixões
cresci moldado
por mil traições
lancei ao mar
as ilusões
quis abraçar
espalhei o medo
a minha esperança
foi meu degredo

sei que algum dia
há-de acabar
esta utopia
de navegar
aquém de mim
além do mar
de mim partir
a mim chegar
chamando fado
ao meu cantar

José Brás

Anónimo disse...

Caro Zé Brás
Há muito tempo que não tinha notícias tuas!
Valeu a pena esperar...
Abraço. Miguel Pessoa

Torcato Mendonca disse...

Ontem guardei a foto de Mansambo saída no Blogue e as outras que, me fez o favor de enviar o Luís Graça.(viagem de 2006)
Hoje fico satisfeito com mais este Poste e o Poema do Professor. Mais ainda pelo teu regresso aqui. Claro que recebo os e-mail's e agradeço.

Um abraço igualmente ao José Brás.
Belo Poema que nos envia.
----a vida é muito mais complexa....por isso,digo eu. criticar filhos ilegitimos é assunto a ter cuidado. Se forem fruto de amores ou desamores em tempos de guerra bem melindroso será. Merecia um Poste o Poema.
Abraço os dois e estendo-o a esta Tertúlia. T.

Anónimo disse...

Caro José Brás

É um prazer e uma honra ler este seu "Resumo de Mim"

Esta sua análise, do seu "eu," é sublime.

Análise e afirmação!

E a utopia... só vai acabar com a extinção do seu "eu" terreno, que é, o que nos é dado conhecer...
Por ventura...prolongar-se-à!!!

O meu obrigada e um abraço fraterno.

Fico vaidosa de si.

Felismina Costa

Anónimo disse...

Caro A. Marques Lopes

Peço desculpa por invadir este seu
espaço com um comentário ao trabalho do José Brás, mas o assunto em epígrafe, não me é dado comentar, embora goste de ler e conhecer e até analisar os factos, que a esta distância se tornam mais compreensivos, dado as circunstâncias de que se revestiram e a sua complexidade em resolver na altura.
São assuntos do foro íntimo, mas que a meu ver se revestem de uma culpabilização social muito vasta.
Acabei por comentar. Não devia.

Saudações cordiais.

Felismina Costa

Hélder Valério disse...

Caros camarigos

Notas em três tempos:

Para o Marques Lopes, que tem aqui reproduzida uma reportagem feita 'em seu tempo' que é muito apropriada ao tema que tem vindo a ser 'tratado' por aqui, espero que, apesar do trabalho que certamente lhe dá o seu blogue "Coisas da Guiné", envie mais algumas das suas peças (ou até, porque não? com edição simultânea...) pois fazem falta!

Para o Luís porque acho que fez bem em 'repescar' este texto, acompanhado das fotos, e por o ter completado com o poema.

Para o Zé Brás, não só por ter podido voltar a ver um escrito seu mas porque o poema que achou por bem colocar pode ser 'autobiográfico' (num sentido geral, colectivo) mas é também uma afirmação de esperança pois no 'conhecimento do eu' passa-se do "chamando fado ao meu chorar" para "chamando fado ao meu cantar", ou seja, há uma evolução do 'choro' ao 'canto' (embora se saiba também que há situações em que se canta para não chorar...).

Gostei do 'post' e também dos comentários antecedentes.

Abraço
Hélder S.