terça-feira, 25 de outubro de 2011

Guiné 63/74 – P8944: Memórias de Gabú (José Saúde) (11): A coluna: Notícias que chegavam e “novas” que ficavam na… picada


1.   O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, continua a narrar-nos a catarse das suas recordações.


A COLUNA: NOTÍCIAS QUE CHEGAVAM E “NOVAS” QUE FICAVAM NA… PICADA
MISTO DE PRAZER E… MEDO

As velhas berliet’s mandadas construir pelo exército português nas oficinas do Tramagal, assumiram papel de “burro de carga” na guerra do Ultramar. A sua enorme resistência desafiava trilhos aparentemente impensáveis. O seu motor debitava uma força enorme. Na Guiné, aquela usada máquina transportava víveres para as tropas isoladas no mato e servia também para o transporte de pessoal entre as localidades. A coluna era, em simultâneo, composta por unimog’s, viaturas mais pequenas, que se intercalavam entre a monstruosidade dos esverdeados camiões.

A coluna apresentava-se para a rapaziada como um misto de prazer e… medo. Prazer por que a finalidade era reabastecer o aquartelamento, já vazio, de comestíveis e, por outro lado, trazer o ansiado aerograma (azul) que trazia notícias frescas dos ente queridos e amigos lá na Metrópole. Medo por que a picada envolvia mistérios imprevisíveis. Quantas horas de sofrimento a picar meia dúzia de quilómetros da estéril picada? Quantas emboscadas interromperam trajectos sonhados que se pretendiam felizes? E quantos infelizes não perderam as suas vidas em imprevisíveis emboscadas? E quantos não ficaram estropiados na ânsia de procurar uma estabilidade física e emocional? Enfim!

Um rol de perguntas sem resposta que ficaram nos anais da história da guerra colonial. Sabemos que uma coluna era, por norma, motivo para a recepção a camaradas de outras paragens e o momento único para desafiar uma conversa atinada sobre os últimos acontecimentos do local onde coabitavam. Na unidade militar ao lado comentava-se o ataque ao quartel e desenhavam-se possíveis cenários dos rebentamentos. Tudo, porém, era dissuadido num aglomerado de interrogações do militar que em boa hora não se deparou com tal fatalidade. As vítimas falavam de sua justiça e contavam ao pormenor o sucedido.

Das várias colunas sob o meu comando em tempo de guerra, destaco uma onde a finalidade foi reabastecer a zona Leste de material maquiavélico: caixões. Aconteceu no princípio do ano de 1974. A zona tinha sido fustigada com muitas baixas, sendo que o respectivo material armazenado ter-se-á esgotado. Veio então a ordem para uma deslocação a Bafatá a fim de reabastecer Gabú com as respectivas faltas. A berliet veio carregada e os caixões de seguida depositados na arrecadação para suprimir eventuais falhas futuras.

Fomos e voltámos sem problemas de maior, ficando o rescaldo de uma coluna que transportava, na altura, urnas para acolher corpos de corajosos camaradas que romperam o seu ciclo de vida num combate, numa emboscada ou numa mina, algures nas zonas de Gabú, Piche, Pirada, Canquelifá, Buruntuma, Mandina, Cabuca, ou num outro sítio quaisquer no Leste da Guiné.

Tenho uma vaga ideia das bocas que o material transportado proporcionou ao longo da viagem entre Bafatá e Gabú, inseridas no convívio de jovens militares que brincavam com coisas sérias. O prazer da viagem cruzou-se com um agoirento medo quando se colocava a questão: “quem serão os futuros donos destes “capotes” que solenemente transportamos?”. Depois, lá vinha uma gargalhada da malta que entretanto se divorciava do seu próprio futuro. As colunas tinham coisas maquiavélicas. Momentos de boa disposição e de dor. Sacrifício. Outras vezes imperava uma reacção rápida a uma eventual contrariedade deparada.

Numa outra coluna a Bafatá uma viatura avariou-se. Confrontado com o imprevisto e dado que o condutor não conseguiu resolver o problema, comunicámos para o comando expondo a situação. A resposta foi evasiva. As comunicações via rádio não me davam alternativas. Não batiam certas. A resposta foi a seguinte: “o furriel que resolva!”. E resolvi. Deixei a viatura avariada no local e com todo o grupo regressámos ao quartel onde peguei numa equipa de mecânicos para resolverem o problema. O pior veio a seguir. O comandante chamou-me e deu-me um grande raspanete por que entendia ele que eu como responsável abandonei uma viatura militar.

No seu posto de comando, e com a voz estridente do cumprimento do dever militar, autoritário, a sua opção teria passado por deixar metade do grupo de guarda à viatura e a outra metade regressava a Gabú para recolher os meios de assistência. Ouvi, reflecti e disse: “A opção foi minha e está tomada. Assumo. Fiz o que a minha consciência decidiu. Estamos em guerra e não posso, nem devo, sacrificar vidas humanas”. Virei as costas, a conversa acabou ali e palpitei logo uma eventual sanção disciplinar. Uma “porrada” como se dizia na vida militar. Nada aconteceu, o homem caiu na realidade e sanei um problema imprevisto. No regresso, a berliet lá permanecia no local, não longe do quartel, os mecânicos resolveram a avaria e lá retomámos o caminho para Bafatá.


Numa passagem por uma tabanca a coluna despertou curiosidade. Eu, entretanto, verificava se tudo estava em ordem.

Em terra batida e o céu carregado de nuvens, a coluna segue o seu destino com um cuidado redobrado.

Um abraço a todos os camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

19 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 – P8924: Memórias de Gabú (José Saúde) (10): O velho da tabanca revelava um saber ancestral

1 comentário:

Anónimo disse...

Oh nosso furriel

Desde quando é que se abandona material militar na picada ?

Então o Sr. não sabia que o material era muito mais importante que o pessoal ?

Fique sabendo que vai levar uma "porrada" retroactiva.

Um alfa bravo

C.Martins