sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8786: Nós da memória (Torcato Mendonça) (1): Hesitação





1. Em mensagem do dia 14 de Setembro de 2011, o nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), enviou-nos este texto para publicação na sua nova série Nós da memória:






NÓS DA MEMÓRIA
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

1 – Hesitação

Estavam, sentados a uma mesa, três amigos em amena cavaqueira. Um ntrara de férias, o segundo período de férias, de sua comissão da Guiné. Os outros já haviam regressado de todo.

Um recentemente viera de Angola, Cabinda,  e ainda buscava rumo. O outro voltara há muito da Guiné e estivera nos Caçadores Especiais. Falavam, claro está, da guerra colonial.

Preferia ouvir mais e falar menos. Estava ainda, duas semanas após a chegada, confuso, desconfiado, irritadiço com tantas luzes e barulhos.

– ... O diabo da emboscada rebentou e atirei-me, sem o jeep parar, para uma vala da estrada. Demorou pouco mas marcou-me muito. De repente tudo se calou e fez-se um silêncio enorme. Voltei ao jeep e vi o assento, o meu assento, ao lado do condutor, todo esburacado das balas. Fiquei lixado…

– Lixado, uma ova. Ficaste borrado de medo  – dizia o que estivera na Guiné.

–  Talvez. Tu, vós sabeis como é.

– Pois sei. Por isso e porque não quero lixar este gajo. Que ainda por lá anda, só conto as mais leves.

Riam-se os dois.

 – Estás lá há quanto tempo?

 – Mais ou menos um ano.

 – Estás lixado,  pá. Tens que “papar” um ano mais. A Guiné é diferente, o clima, a humidade…

A conversa continuava ou da guerra virava para “gajas”. Aí só dois alinhavam. Os da Guiné. Ambos tinham os seus afazeres, as suas cumplicidades, gentes em amizades comuns e amores a serem escondidos ou as mulheres seriam olhadas de atravessado. Vidas de outrora, mas, como hoje, eram assuntos para pouco palavreado.

Despediram-se mais cedo nesse dia.

Ficou sozinho. Necessitava estar um pouco só. Necessitava de beber mais uma “1920”.

Bebeu mais uma “1920” ou “CRF" e, naturalmente navegou com seu pensamento até á Guiné, até às milhentas recordações. O álcool suavizava e abria aquele emaranhado de recordações. Sem querer (ou quis…?),  recordou-a. Lembrou-se das primeiras férias da Guiné. Do penúltimo dia, dia de partida – 8 de Setembro – o dia de regresso à Guiné.

Desta vez não a vira. Chegou quase a meio de Janeiro, dia dez ou doze. Ela, caso tenha vindo, teria vindo mais cedo por volta do Natal. Talvez. Não perguntou a ninguém. Seria aborrecido. Tinha namorada de alguns anos, amiga especial – digamos assim – e, naquele momento, recordou e sentiu o forte desejo de esquecer aquele ultimo encontro. Não foi um encontro normal, não. Foi só uma, duas visões, duas trocas de olhares a perdurarem no tempo. Forte recordação. Dia a não ser esquecido facilmente. Dia? Ou a fusão dos olhares e o que só eles disseram? Até isso roubaram a esta geração, até isso.

Agora só, ali estava em recordação e era quase presente. Lembrava bem o encontro fortuito, a troca forte de olhares, o sobressalto de ambos – ou só dele? – Não o olhar fala e diz muito, muito mesmo. Saiu e nada disse. Ficou confuso, pensativo e alterou a hora da partida. Adiou para a puder ver e falar.

Procurou-a mais tarde, pois sabia onde. Viu-a. Sentiu ter sido visto, sentiu o afastamento dela para uma hipotética troca de palavras. Parou. Pensou, hesitou, raio hesitou. Um turbilhão de pensamentos entulhou o seu querer, a sua decisão. Olhou, olharam-se e ele voltou para trás. Justificou-se a ele mesmo.
– Tens quem tens, a guerra é para aonde vais e apressa-te para chegares a Lisboa, à Portela, a horas.

Só que recordou lá, na Guiné, e ali naquele momento, o rosto, aquele corpo de mulher… diabo.

Na sua guerra não cabiam assuntos e prisões daquelas. Mesma a que tinha teria que desaparecer. Isso era para outros.

Agora ali estava só, mais só se encontrou no regresso final, na dita desmobilização. Mas aí começou a fúria de viver, a tentativa de recuperar tempo perdido. Felizmente por pouco tempo e, mesmo assim a deixar mossas…

E voltou a recordação. Haverá recordações eternas, algo eterno?

Lembra-se naquele dia ter rejeitado mais uma “1920” e ter saído para o frio da noite.
O frio e a humidade do rio, ali ao lado, limpavam a memória.

Agora não, agora não. É tarde, está calor, a memória tem demasiados nós… desatemos, de quando em vez, um…
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8770: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (25): A essas Mulheres o nosso reconhecimento e o nosso bem hajam (Torcato Mendonça)

3 comentários:

Anónimo disse...

Pois é Torcato...e este naco de prosa passa despercebido...
Começo a pensar...e não digo mais nada.
Abraço V. da Gama

Luís Graça disse...

Pois é, José, "a memória tem demasiados nós"… Aceitemos o teu desafio: "desatemos, de quando em vez, um" (dos nós)…

Torcato Mendonca disse...

Meus Caros Vasco e Luís

Fui lendo, neste final de tarde e não vou mais para a frente.

Por mim tudo bem e como eu compreendo.

Este nó era tão bom que fosse ficção.
Aqui não, aqui não...

Abração T