quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8718: Convívios (367): Relembrando o 1.º Convívio da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, em Fátima, no dia 24 de Maio de 1997 (Domingos Gonçalves)

 

1. Este poste é como que de apresentação da próxima serie "Guiné 66 - Reportagens da Época", memórias do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), enviadas em mensagem do dia 22 de Agosto de 2011.
CV



REENCONTRO DOS HERÓIS
FÁTIMA, 24-05-97

Ainda foram muitos os que responderam à chamada. Afinal, trinta anos não foi o tempo suficiente para apagar as amizades cimentadas pela adversidade e por inúmeras vivências inesquecíveis.

Compareceu o Comandante do Batalhão, alquebrado pelos anos, mas cheio, ainda, de lucidez e vivacidade. Homem de acção, dinâmico e generoso, sabia merecer o respeito de todos os que dele dependiam.

Compareceu o Comandante da Companhia, o homem que todos detestavam. Foi, enquanto Comandante, uma pessoa em cuja alma a generosidade e o humanismo não tinham lugar. Insensível ao sofrimento alheio, frio e distante, nada soube, ou quis, fazer para minorar o sofrimento dos homens que comandava.
Porém, nada cura melhor que o tempo. Trinta anos foram suficientes para desfazer ressentimentos e apagar da memória a lembrança dos actos mais mesquinhos. Sem mágoa e sem desejos de vingança, na hora do reencontro, todos lhe estenderam a mão.

E compareceram alferes, furriéis, cabos e soldados, que eram, afinal, os homens que no terreno faziam a guerra.
Caminhando ao longo das picadas que seguiam rumo ao desconhecido, mergulhando na lama das bolanhas, ou penetrando no coração da floresta densa e misteriosa, eram eles os verdadeiros combatentes.

Eram eles que sofriam as emboscadas, que atacavam os acampamentos inimigos, que defendiam as povoações, as pequenas tabancas, o povo simples e as suas culturas agrícolas.

Eram eles que sofriam a fome e a sede, a ansiedade e a fadiga, que faziam longas caminhadas a pé, ou sobre viaturas sem quaisquer condições de segurança.
Eram eles que sofriam os efeitos das armadilhas anti-pessoal, ou anti-carro, e que, enquanto conjunto de homens, mais pareciam, às vezes, dada a pobreza em que se vivia, um bando de maltrapilhos armados, do que o grupo de homens corajosos e valentes que, de facto, constituíam.

Porque convivi com eles, partilhando do mesmo destino ingrato, lutando pela mesma causa, nas mesmas condições de miséria, volvidos todos estes anos decidi passar a escrito algumas das nossas vivências no cenário da guerra que ajudámos a fazer.

Eles merecem que a história os não esqueça.
Vou, pois, contar um pouco da história que a Companhia de Caçadores n.º1546, do Batalhão n.º1887, com muito sofrimento ajudou a construir por terras da Guiné. É, afinal, um pouco da minha história...

Se a humanidade, no seu todo, é um astro luminoso a deambular pelo espaço sem fim, a Companhia de Caçadores n.º 1546 não deixará de ser uma das muitas faúlhas luminosas que esse corpo celeste foi, ou vai, largando no seu rasto.

A história é, precisamente, o rasto brilhante que esse belo corpo celeste, o homem, vai deixando ao longo da sua trajectória.

O que a minha Companhia fez na Guiné não passou, com efeito, de uma pequeno contributo para o desenvolvimento da guerra colonial. Mas a História é feita, regra geral, de conjuntos de coisas pequenas, até insignificantes, mas que têm sempre o seu brilho, o seu interesse e significado.
É normal os historiadores referirem apenas o nome dos grandes generais.
Mas eles só foram grandes por que tiveram milhares de homens a combater pelos objectivos que traçaram.
Na trajectória dos grandes generais apenas encontramos sofrimento e rios de sangue derramado por milhares de soldados desconhecidos.

Na Guiné contribuímos para que se fizesse uma guerra.
Foi, por certo, como aliás todas as guerras, uma guerra injusta.
Mas, a responsabilidade dessa injustiça nunca é dos soldados que fazem a guerra no terreno, mas apenas, e só, dos políticos que a conduzem, bem instalados em confortáveis gabinetes.

Os factos que se vão relatar aconteceram.
Eles foram reais, objectivos. Pertencem ao passado e ninguém os pode, minimamente, alterar.

A perspectiva que deles se tem e se transmite é subjectiva e está, por certo, influenciada por um conjunto de factores circunstanciais, de natureza social e psicológica.
É perfeitamente admissível que existam sobre esses mesmos acontecimentos outros pontos de vista, ou outras formas de os interpretar e ver em retrospectiva.

Algumas das pessoas que participaram na construção dessas vivências prefeririam, hoje, que não existisse nenhuma memória sobre o papel que desempenharam.
Mas os factos aconteceram.
Estiveram lá.

É certo que os graus de responsabilidade foram diferentes. Porém, todos fomos actores mais ou menos activos.
Mais ou menos, todos sofremos. Alguns, todavia, tivemos privilégio, ou a má sorte, de fazer sofrer os outros.
Mas que ninguém, agora, pense nisso.
Os ressentimentos, se os houve, apagou-os o tempo.

Os factos, as vivências, a socioafectividade, ou a falta dela, permanecem na memória das pessoas.
É só isso, o que ainda resta na lembrança, que se pretende preservar.

Não se deseja escrever textos de grande brilho literário.
Pretende-se, apenas, transmitir um modesto testemunho para a história da guerra colonial que, sem entusiasmo e convicção, ajudámos a fazer.

Domingos Gonçalves
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Notas de CV:

Vd. postes da série O Regresso dos Heróis

Vd. último poste da série de 31 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8713: Convívios (360): Tabancas de Guilamilo e de Candoz, geminadas...,

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