sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8664: Notas de leitura (264): A Guerra de África 1961 - 1964, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
Aqui vai o que parece de mais relevante deste terceiro volume do livro publicado em 1994 e 1995, e agora reeditado pelo Círculo de Leitores, ocorre perguntar se o blogue não se podia lançar na empreitada de dar voz e escrita aos protagonistas da Guiné, nos mesmos moldes em que José Freire Antunes trabalhou com a sua equipa. Seria tudo uma questão de esquematização, atendendo à cronologia dos acontecimentos, incitando os protagonistas disponíveis a reflectirem em função da documentação conhecida, do que experimentaram e da leitura que esta distância permite.
Aqui fica a sugestão para um volumoso mas exaltante trabalho de casa.

Um abraço do
Mário


A Guerra de África, 1961-1974, III volume, por José Freire Antunes

Beja Santos

A reedição de uma das mais impressionantes e abrangentes recolhas de testemunhos de personalidades ligadas à guerra colonial merece ser saudada pela sua incontestável importância para quem quer aprofundar conhecimentos acerca dos três teatros de operações, motivações, evolução e desfecho de todo o processo político-militar (A Guerra de África, 1961-1974 III volume, Círculo de Leitores, 2011).

Compreensivelmente, aqui, o destaque vai para aqueles que têm uma ligação inquestionável com a Guiné.

O primeiro testemunho vem de Lemos Ferreira, general da Força Aérea que serviu na Guiné entre 1971 e 1974. Diz ele: “Quando fui para a Guiné os meios aéreos que lá existiam eram extremamente limitados. Havia uma desproporção do dispositivo militar terrestre: cerca de 40 mil homens, entre milícias locais, forças locais e forças metropolitanas. E, para um território com a dimensão do Alentejo, 40 mil homens era muita gente. A parte aérea envolvia 50 a 60 pilotos. Tínhamos assim, por um lado, 40 mil homens que suportavam as agruras que tinham que suportar. Por outro lado, os 50 ou 60 pilotos, 70 pilotos no máximo. Eles tinham o chamado risco diário e a todas as horas, porque tudo estava pendurado neles, de uma maneira ou de outra.

Era preciso transportar pessoas, ia o DO. Era preciso levar o correio ia o DO. Era preciso fazer uma evacuação sanitária, ia o Allouette-3. Era preciso fazer uma evacuação e iam uns quantos helicópteros, um DO, dois DO, mais um Nordatlas ou dois, um Dakota, e mais não sei quê, e mais não sei quantos Fiat (…) Havia já uma desagregação pela repentina alteração das ideias. No consulado de Salazar, bem ou mal, sabia-se o que queria. Mas depois já não era assim. Éramos nós, os responsáveis directos, que estávamos nos locais, que íamos explicar às pessoas a situação. E acontece que tão depressa me diziam que eu estava numa operação de guerrilha como diziam que o país está em guerra, como diziam que se estava numa operação de polícia. Eu via-me na contingência de ter que explicar às pessoas qual era exactamente o meu papel – era eu polícia, antiguerrilheiro, militar, o que é que eu era. Tudo se passa muito rapidamente quando as coisas entram em desagregação. Nessa altura, a convicção do PAIGC era a de que seria possível uma vitória militar e então arriscou e fez o contrário da guerrilha, que era aparecer no terreno com forças relativamente vultosas. Eles consideravam que o que faria a diferença seria a parte aérea. Isto foi perfeitamente claro e apareceram os mísseis Strella (…) Tivemos que ser inventivos: se a ideia do adversário era de que a Força Aérea estava de gatas, havia que provar o contrário. E provar o contrário como? Com a utilização muito mais intensa da arma aérea. Eu nunca fiz tantos bombardeamentos na vida, nunca fiz tantos disparos, como nessa altura”.

O segundo testemunho vem do brigadeiro Martins Marquilhas que serviu na Guiné entre 1966 e 1968.

Depois de expor a situação de Angola, que ele considera que em 25 de Abril estava 90% controlada, tece o seguinte comentário: “O mesmo não acontecia na Guiné. Eu só me senti na guiné um bocado em balso quando estive a fazer uma operação de 5 dias, a armadilhagem das passagens do rio Corubal, porque havia infiltrações através daqueles sítios onde a vegetação não permitiam a ninguém entrar, mas onde havia locais por onde uma canoa entrava. Eu estava a 20 dias de me vir embora. Só levei para lá parte da minha tropa e depois deram-me de reforço uma série de companhias e tive de fazer esta operação de 5 dias em terreno sob controlo deles, em Madina do Boé, era zona nitidamente controlada por eles. Nós só íamos a Madina do Boé, onde tínhamos tropas, ou a Béli, para reabastecimento, e eu fiquei 5 dias sem qualquer ligação, a sentir que à medida íamos avançando, eles iam na nossa peugada. Tivemos confrontos violentos. Houve tiroteio, tive três feridos sem gravidade. Fomos evacuados, não tínhamos ligação. Deixámos armadilhas lá postas, mas a maior parte delas funcionava era com caça. Eles para o fim, na Guiné, tinham armamento mais sofisticado do que nós. O inimigo da Guiné era mais aguerrido. Não estou a falar das elites, as elites da Guiné eram iguais às de Angola ou às de Moçambique. O magala da Guiné, que era dos fulas, era mais evoluído”.

O terceiro testemunho compete a Almeida Bruno, um colaborador dedicado de Spínola e depois comandante do batalhão de Comandos Africanos. Falando de 1968, Bruno considera que a situação militar se caracterizava assim: “as forças portuguesas tinham perdido iniciativa, estavam remetidas a uma situação meramente defensiva e a liberdade dos movimentos no teatro de operações era exclusivamente das forças especiais. Havia a ideia de se garantir a soberania com a ocupação e cobertura de área, o que implicou a disseminação da tropa ao longo de todo o teatro de operações, perdendo-se capacidade de intervenção e iniciativa na acção… A noção que tenho é que as nossas unidades não saiam dos quartéis. Estávamos empatados com o PAIGC. Spínola renovou o dispositivo, não se podia jogar à defesa, impôs a concentração de meios, reformaram-se as forças especiais que passaram para o comando directo do comandante-chefe. Passou-se à ofensiva porque, dizia Spínola não se negoceia em situação de inferioridade. Bruno cola-se às doutrinas de Spínola: “Aquele tipo de guerra só se resolvia politicamente. Por isso é que eu sempre defendi o marechal dizendo que o conceito da “Guiné melhor” é dele. Salazar viu em Spínola um tenente-coronel em tronco nu, de monóculo e pingalim. Mas enganou-se, porque quando o chamou ele era outro homem (…) O desaparecimento de Salazar abriu perspectivas a Spínola. Nós estávamos em boas condições operacionais em 1969-1970. Tínhamos retomado a iniciativa, estava a avançar o plano de reordenamento, o Carlos Fabião dominava a grande força político-militar da Guiné que eram as milícias (…) Nós tínhamos a ideia da independência dos territórios não como foi feita mas por fases. E o nosso projecto foi escrito e entregue a Marcello Caetano (…) Acho que foi uma pena não termos conseguido pôr de pé o nosso projecto que era, quanto a mim, o melhor para os africanos e para nós também”. Almeida Bruno espraia-se sobre as operações que coordenou, os acontecimentos do chão manjaco que culminaram com o massacre de três majores e um alferes em 20 de Abril de 1970, as iniciativas de conversação com Senghor que Caetano proibiu. Trata-se de um longo depoimento em que Bruno contesta a primazia de ocupação do território pelo PAIGC. Contesta que até Julho de 1973 se pudesse considerar que a Guiné estivesse à beira de uma derrocada. E termina assim: “Na Guiné não havia condições para ser criado um Dien Bien Phu. Um Dien Bien Phu tinha que ser Bissau e Bissau, porque está encostada ao mar, nunca o poderia ser, a menos que o PAIGC aparecesse com uma marinha de guerra superior à nossa. Eu perdi o meu gosto pela Guiné a partir do momento em que vi que a nossa solução política estava perdida, porque os políticos de Lisboa não tinham entendido a nossa mensagem. Quando percebi que tinha perdido essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime.

O quarto testemunho é dado por Manuel dos Santos, o operacional do PAIGC que tinha a seu cargo a responsabilidade dos misseis Strella. Explica como aderiu ao PAIGC, destaca as diferenças da governação entre Schulz e Spínola, opina sobre a invasão de Conacri e a cedência em 1972 dos mísseis Strella pela URSS, dando conta do abalo que este novo armamento provocou nas tropas portuguesas. E emite o seu juízo sobre o desfecho da guerra: “Penso que o Governo português encarou a perda da Guiné como uma eventualidade possível. O Bethencourt Rodrigues chegou lá quando já estava praticamente tudo acabado. Lembro-me que a chegada do Bethencourt Rodrigues foi saudada com uma operação, talvez a última operação ofensiva que os portugueses fizeram. Foi uma operação no chão manjaco com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas duas companhias foi perfeitamente destruídas e até capturado o comandante de uma delas”.

Este terceiro volume inclui ainda depoimentos de grande interesse como os de Ferrand d’Almeida, o papel desempenhado pelas enfermeiras pára-quedistas, a opinião de várias governantes sobre a situação económica e financeira dos últimos anos do regime e um ensaio do brigadeiro Lemos Pires sobre doutrina e prática na guerra de África.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8652: Notas de leitura (263): Guinéus, de Alexandre Barbosa (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

Eu tenho os livros do J.F.Antunes
Aproveito para rectificar que o Sr. Manuel dos Santos (Manecas) era só comissário político na "frente norte".Sobre os seus depoimentos... valem o que valem..e mais não digo.

C.Martins