terça-feira, 9 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8652: Notas de leitura (263): Guinéus, de Alexandre Barbosa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
É só para recordar que este livro se vendia nas tabacarias da Guiné, ouvi mesmo comentários mordazes acerca de relatos que pareciam ficcionados, Alexandre Barbosa descreve incursões em áreas que a guerra tornou improváveis. Só que tudo quanto ele descreveu foi anterior à guerra. Impressiona, mais do que a qualidade da prosa, a autenticidade da sua devoção pelas pessoas e a natureza, a exaltação da caça com as suas preliminares e por vezes o seu trágico desfecho com a morte do caçador.
Uma Guiné de nostalgia que apetece reler, pois pesa a estima e a devoção por aquele cantinho africano que guardamos no coração.

Um abraço do
Mário


Guinéus: contos, narrativas, crónicas

Beja Santos

“Guinéus”, de Alexandre Barbosa, foi publicado pela Agência-Geral do Ultramar em 1967. O livro tinha sido distinguido com o Prémio Literário Fernão Mendes Pinto, modalidade de novelística, em 1963. A crítica aplaudiu, considerando que versava belos testemunhos de humanidade, com um poderoso recorte de personagens guineenses, uma mistura equilibrada entre o etnográfico. O autor viveu na Guiné durante 18 anos, provavelmente antes da eclosão da guerra, uma boa parte das suas narrativas venatórias passa-se na região Sul, em localidades profundamente afectadas após 1963. Alexandre Barbosa faz parte daquele leque de autores ainda da literatura colonial cujo discurso narrativo mistura uma atitude cosmopolita com o fascínio africano.

Falando dos bijagós, exalta o carácter identitário do povo, a criatividade da sua escultura e os aspectos por vezes desconcertantes das suas práticas animistas; um povo em que a mulher decide abertamente com quem casa, dá sinais da sua opção afectiva. Apaixonado pelos segredos das matas, Barbosa deixou-nos textos eloquentes de quem captou pacientemente, apaixonadamente, sons, cores, cheiros, basta este exemplo: “Do seu esconderijo escuta enlevado os ruídos estranhos do mato e o fascínio do canto dos pássaros de plumagem policroma. Segue com enternecimento as exuberantes correrias dos pequenos antílopes; o ar embevecido de uma gazela pintada que vigia as primeiras traquinices do filhote; labor admirável de uma colónia de abelhas silvestres; o vaivém dos pássaros tecelões levando nos bicos filamentos de capim para entretecerem os ninhos baloiçantes nos pilões, ou o galanteio quixotesco dum fritambá em redor da fêmea confundida e hesitante. Continua vigilante para ver a astúcia de um civete que espreita uma ave desprevenida, a jibóia que avança subtilmente para o roedor hirto de espanto, petrificado; o grupo de urubus, atraídos pelo odor da morte, a banquetearem-se com os restos de animal abatido, ou o curioso trabalho de equipa de uma legião de formigas pretas a transportar insectos mortos ou restos de carne das vítimas dos felinos. Uma vez por outra cai um tronco, com fragor, corroído pela baga baga; drapeja um ramo por golpes de brisa ou brincadeira de macacos ou desprendem-se mais folhas secas e encarquilhadas para se apodrecerem no solo húmido e ubérrimo”. Exemplo que vale por si: um domínio perfeito do que é possível ver, ouvir e cheirar, dito em língua portuguesa, alguém que se rende à exuberância de uma floresta tropical.

São histórias de dor, há mesmo crítica velada, ao trato colonial dominador, relatos de admiração do labor mandinga quando faz os seus diques para aproveitamento dos recursos do solo. Também admiração pelas artes cénicas dos lutadores felupes, combatendo agilmente ao som do bombolom, agradecendo sempre o talento dos caçadores nativos, não terá sido por acaso que ele lançou a seguinte dedicatória, no arranque da obra: “Aos nativos mancanhas Nicolau e Armando e ao fula Mamadú Djaló, meus fiéis pisteiros e ideais companheiros durante centenas de digressões venatórias através do mato guineense sob o sol acutilante, o cacimbo envolvente, a rija chuva e a fúria dos tornados, cenário de tantos momentos de satisfação, de desalento e, por vezes, de perigo, que sucederam para marcar os motivos mais saudosos que vivi em terras guineenses”. Alexandre Barbosa descreve como os caçadores untam o corpo com sucos vegetais para ludibriar o olfacto dos animais, munem-se de mezinhas e amuletos, guardas-do-corpo, tudo tem a sua função miraculosa: para que não suceda qualquer desastre de caça, para que haja poder de concentração no instante em que se procura abater o hipopótamo ou a onça.

Por vezes o autor deixa-se embalar pela toada a que a cultura o vincula, vai desinsofrido na encenação da escrita, o pretexto é um cenário africano, naturalista, como se exemplifica: “No penhasco onde assenta o farol não há rebentação de mar e neste lado, na ilha irmã, o quase imperceptível ondulado das águas estira-se preguiçosamente sobre o lodo reconquistado com pezinhos de lã, o terreno deixado antes no fadário rotativista das marés (…) O ambiente de quietude claustral cede vez a outro, este aspecto de chocalhante debate em hospício de alienados (…) Uma canoa gentílica demanda bolama. Ex-tronco que caiu ante a violência dos golpes de terçado e que milhentas de tasquinhadelas de machete tornou concavo e navegável.”

É uma prosa naturalista, épica, de comunhão lírica, de glorificação pelo korá, tambor, dança frenética, de sentido respeito pelo trabalhador africano que desbravou e dominou a terra. O seu empolgamento precede tudo quanto a guerra veio deixar para trás, só assim se explica como proponha entusiasmado o turismo nas regiões do Corubal, as visitas à lagoa de Cufada ou à mata de Cantanhez.

“Guinéus” foi dado à estampa profusamente ilustrado, tem fotografias do maior interesse: dançarino bijagó antes de iniciar a dança do “peixe-verga”, vemos ninhos de pássaro-tecelão, exóticos penteados balantas, cerimónias islâmicas, pescadores mandingas da ilha de Bolama, cenas de alpendre, entre outras. Para ler, recordar e até comparar com tudo aquilo que nós vivemos, naquele nosso tempo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8642: Notas de leitura (262): Marcello e Spínola: A Missão do Fim (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

Alexandre Barbosa exprime-se como faziam os africanistas de antes da guerra.

Quem tambem escreveu livros de caça e outros relatos foi o Capitão Henrique Galvão do Santa Maria.

Mouzinho de Albuquerque, tambem escreveu umas coisas, e capturou o Gungunhana.

Mas Alexandre Barbosa escreve como mais tarde apareceram descrições de "retornado".

Se eu tivesse geito para a escrita tambem fazia o meu livro de retornado. Era parecido com as lamechas de Alexandre Barbosa.

Beja Santos obrigado por mais este trabalho, mas vê se descobres autores de lá, mais tropicais, para o blogue ficar com mais côr.

Hélder Valério disse...

Caro MBSantos

Interessante, pela informação contida, este livro.
É uma apresentação que ajuda a decidir sobre a urgência, ou não, de uma leitura.
E sem perigo de ser confundida com qualquer tese.... logo, sem 'levar' com os viggili...

É curioso que o autor proponha uma espécie de turismo por aquelas regiões que nós também demos conta do seu potencial durante a nossa (plural, colectiva, não pessoal) estadia, como a do Corubal, Saltinho, Cantanhez....
Aliás é mesmo a região do Cantanhez que está sob os cuidados da AD e que parece estar a recuperar em termos de flora e fauna.

Abraço
Hélder S.