sexta-feira, 29 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8617: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (20): Uma Grande Mulher (ou uma imagem de uma geração)

1. Em mensagem do dia 28 de Julho de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta comovente memória (boa) da sua guerra:


Memórias boas da minha guerra - 20

Uma Grande Mulher
(ou uma imagem de uma geração)

Feirães, em Terras de Santa Maria, era conhecida pela relativa abundância de Padres, Médicos e Professores, e pelas suas tradições na oposição ao regime de Salazar. Depois da “vitória abafada” do General Humberto Delgado, em 1958, seguiram-se tempos de retorno à calma habitual, à política “surda”.

Recordo muito daquela época alguns serões, junto dos sapateiros que trabalhavam (à tarefa) até tarde, agrupados no rés-do-chão de algumas casas, ouvir as histórias dos mais velhos e suas discussões desportivas e políticas. Foi com alguns deles que ouvi, clandestinamente, a rádio Moscovo, que, como sabem os que viveram aqueles tempos, era um perigo enorme.

Desde a escola primária que cimentámos um núcleo de amigos que continuou ligado através das actividades na JOC, que era um grupo de forte implantação e muito bem aceite pela maioria da população.

Os rapazes que continuaram os estudos foram para os Carvalhos e para Espinho e as raparigas seguiram maioritariamente para o Porto. Mas, a maioria dos jovens seguia o caminho dos pais: fábricas de cortiça e de calçado, que proliferavam nessa região.

Não era fácil o relacionamento entre rapazes e raparigas no nosso tempo. Apenas as actividades religiosas ou afins mereciam alguma tolerância familiar na aproximação dos jovens de sexos diferentes.
Todavia, havia alguns elementos com laços familiares que facilitavam a aproximação.

A Missa da manhã e as cerimónias da tarde, na Igreja Matriz, aos Domingos, eram o ponto de partida para alimentar qualquer pontinha de relacionamento.
Em prolongamento das actividades religiosas e, sempre que possível em sua substituição, dávamos uns passeios pelo Monte das Pedreiras ou pelas Ribeiras. Desta forma, chegámos a ter um grupo de convívio bastante salutar e muito divertido.

Um dos jovens mais activos era o Neca Ribeiro que, ao contrário do seu irmão Berto, não tinha muito jeito para “conquistas amorosas”. Gostava de praticar qualquer desporto popular e não se importava nada com a roupa ou com o calçado quando jogava a bola, na posição de guarda-redes. Ao contrário do irmão, não gostava de usar gravata e desvalorizava muito o vestuário. Com eles conviviam o Zéquita, o Jalmito, o Mocas, o Lizito, os Bastos e, mais de perto, o Zénico.

No grupo das raparigas, destacava-se a Ilda, que vinha do Porto só aos fins-de-semana. Através da sua habitual boa disposição e das suas exuberantes gargalhadas, transpirava alegria permanente. Como era prima do Neca e do Berto, relacionava-se muito bem com eles desde criança. Essa aproximação com eles e com os seus amigos mais próximos, facilitava a convivência com as suas amigas Zelma, Cassandra, Nelinha, Gita, Dina e outras.

Durante vários anos, viveram-se alegres convívios, donde resultaram amizades e amores eternos.
Devido às suas constantes brincadeiras e uma certa ligação/simpatia pelos movimentos dos anos 60 (as serenatas eram sempre um fracasso e o conjunto musical não passou de acção de “fachada”), estes rapazes de cabelos compridos começaram a sentir algumas dificuldades com a geração de seus pais, especialmente quando se “abeiravam” das filhas.

A primeira grande viravolta deu-se no relacionamento do Neca com a família da Ilda. A tia dele, que o vinha tolerando dentro de casa como o sobrinho preferido, ficou ofendida com o aparente namorico. Expulsou-o de casa e passou a proibir à filha esse tipo de relação. Passou a ser evidente o amor sofrido entre ambos. Ela vivia abaixo da Boavista, no Porto, em casa de uma tia, ao mesmo tempo que frequentava o liceu Carolina Micaelis. Ele fazia tudo para se encontrar com ela. E quando isso era possível ele esquecia, frequentemente, o último autocarro de regresso. Tentava a boleia mas, por vezes, já cansado, metia-se num táxi e mostrando o dinheiro que tinha, dizia:
- Dê-me este dinheiro de táxi, na direcção de Feirães.

Entretanto, a guerra colonial havia estalado em Angola e prometia alargar-se à Guiné e a Moçambique. Mas a convicção inicial era a de que tudo se resolveria a curto prazo. Porém, o tempo ia passando e esses conflitos iam-se agudizando. Talvez por isso, todos os jovens da nossa geração acabaram por ser apurados para o serviço militar. Ressalve-se o caso do Lizito (que fez dietas incríveis) que ficou adiado, para no ano seguinte vir a ser livre da tropa com números impressionantes: 37,5 Kgs de peso 1,48m de altura. Ganhou então a alcunha do “Transparente”.

O Neca foi com o Jalmito para o quartel das Caldas da Rainha e uns meses depois o Zenico seguiu para o de Santarém. Embora a Ilda e o Neca se tenham ligado mais que nunca, era evidente que a alegria de outrora estava muito longe. Ele andava revoltado e em litígio com a tia que continuava a perseguir o amor da sua filha. Mas esta, apesar de viver triste, respeitou sempre os seus pais, mas nunca recuou perante o amor da sua vida.

Agora era o perigo da guerra que vinha ensombrar ainda mais a sua relação. E o pior aconteceu. Tanto o Neca como o Jalmito seguiram para a Guiné.

Lá longe, na perigosa ilha do Como, no sul da Guiné, o Neca vivia desesperado com a sorte que lhe calhara e com o ambiente hostil que imaginava existir junto da sua amada. Durante esses seis ou sete meses de sofrimento duplo, resolveram dar um enorme passo para a resolução parcial dos seus problemas. Resolveram casar. Ele marcou férias e viria, para casar, nos princípios de Maio (1967). Entretanto, ela já passara a viver mais junto da família dele, que a acarinhara.

Nos fins de Abril, o amigo Zenico partiu também para a Guiné. Combinaram encontrar-se em Bissau, no dia 1 de Maio. Era intenção do Zenico transmitir-lhe o testemunho de que a Ilda já parecia outra, pois que mostrava felicidade com o passo que iriam dar. Como o Zenico não chegou a conhecer Bissau, tendo desembarcado directamente para uma barcaça com destino ao interior da Guiné (Bambadinca), não teve hipóteses de se encontrar com o seu maior amigo.

No entanto o Neca também não pôde estar no Cais de Bissau. No dia 29 de Abril fora dispensado de participar numa operação militar para poder viajar para Bissau, rumo ao seu casamento.
Por azar, um colega Furriel adoeceu e o Capitão pediu ao Neca para o substituir nessa Operação nocturna, uma vez que só viajaria no dia seguinte.

Desconheço pormenores sobre o combate nessa fatídica noite. Só sei que o Neca levou um tiro na coluna vertebral, entrou em coma e foi evacuado para Lisboa.

Em Feirães seguiram-se dias muitos tristes. Ninguém ficou alheio a essa tragédia, precisamente na semana do seu anunciado casamento. Aquela paixão era conhecidíssima e o Neca era o rapaz mais benquisto de toda a população. Foram tempos dramáticos. Ele lutava pela vida prostrado numa maca em Lisboa e ela quase desfalecia de tanto sofrimento, à sua espera.

Logo que ele começou a recuperar, passou a não querer ver as pessoas que lhe eram mais queridas. Não suportava vê-las sofrer nem os lamentos à sua volta. Quanto à Ilda, esclareceu-a sobre a sua situação de paraplégico irreversível e, depois, aconselhou-a a que se afastasse.

Ela não desarmava e procurava permanentemente contactá-lo. Além de familiares e amigos, agora havia outras pessoas a aconselharem-na a abandonar aquela relação. Como ela não desistia, ele passou a rejeitá-la e a procurar que ela o detestasse.

O amigo Zenico, envolvido na guerra, no Oio, lá no norte/centro da Guiné, pouco sabia do que se passava, mas, quando ciente do drama, também teve o cuidado de escrever à Ilda, aconselhando-a a medir bem a situação para não se prejudicar ainda mais, até porque era o próprio Neca a aconselhá-la nesse sentido.

Caro amigo Zenico
Sei que os nossos amigos também vêm sofrendo com a nossa situação. Sabeis que gosto muito de vós e que vos estou muito grata. Porém, não insistam em alterar a minha determinação. Já sofri muito e não quero outro caminho: só viverei para o meu Neca.
Estou a sofrer mais porque ele agora não me quer. Mas eu não acredito nisso porque sei quão forte é o nosso amor. Ele rejeita-me porque é meu amigo mas eu nunca o largarei. Ele é o homem da minha vida e só quero estar com ele. Estávamos prometidos para o melhor e para o pior e eu sei que ele agora vai precisar ainda mais de mim. E o meu prazer será ajudá-lo.

Quase um ano se passara e o Neca ainda não fora a casa. Estava no Centro de Recuperação de Alcoitão. Foi o Zenico, vindo de férias, que o foi buscar. Foram momentos de choque retraídos, para que o Neca não sofresse. Curioso que esta dupla conhecida pela produção de boa disposição permanente, reatou relacionamentos incríveis, como se nada se tivesse passado. Brincavam até com a cadeira de rodas. Foram ao café Central e a todos os lugares que se sabia de grande valor afectivo. E a Ilda, de olhos húmidos, já soltava alguns sorrisos.

Ele regressou a Alcoitão e o Zenico a Catió (no sul da Guiné). Ninguém era feliz, mas a Ilda era a pessoa que mais se aproximava. Casaram ainda antes do Zenico voltar. O amor triunfou!

A vida da Ilda e do Neca decorreu normalmente. Foram sempre um casal exemplar dedicado à família, especialmente aos sobrinhos. Mas o Neca foi sempre um caso especial. Viveu intensamente as mudanças políticas do 25 de Abril, foi autarca de destaque e um entusiasta enorme pelas colectividades desportivas e outras associações de âmbito cultural. Teve sempre a sua vida preenchida com trabalho e obras de solidariedade social.

Lisboa no dia 25 de Abril de 1974
Foto retirada do site Olhares, Fotografia Online, com a devida vénia

Há uns anos, quando a mãe de Ilda, já viúva, adoeceu gravemente, coube à consciência desta filha maltratada, entre quatro irmãos, assumir os seus cuidados finais. Foram mais uns anos de sacrifício permanente, para amenizar o sofrimento de sua mãe. Esta, acusava o seu arrependimento e manifestava-o constantemente. Confessava-o a toda a gente.

Recentemente, num dos raros reencontros da malta daquele tempo (anda cada um para seu lado), à mesa, o Neca, sempre com a mulher ao lado, ouvia cada um falar da sua vida, da dos seus e dos seus azares. Acrescentavam ainda algumas maldades, traições e outras desgraças dos ausentes. A dada altura, o Neca, reposicionou-se a pulso na sua cadeira de rodas e interrompeu o rol de misérias:
- Ó malta..

Foi logo interceptado pelo Joca:
- Tens razão. Nós a lamentarmo-nos para aqui e tu, que hás-de dizer depois do azar que tiveste?

- Não, nada disso, retorquiu o Neca: - Quero apenas aproveitar para vos dizer que, graças aqui “à minha patroa”, sou o homem mais feliz do mundo!

E ela, envolvendo-o carinhosamente com uma mão nas alvas barbas e outra contornando os cabelos da mesma cor, exibia o seu semblante resplandecendo de alegria, dizendo-lhe:
- Obrigada “meu trengo”, sabes muito bem que tu é que me fizestes a mulher mais feliz do mundo! E, comovida, encostou demoradamente a cara à dele e deixou cair algumas lágrimas enquanto sorria de felicidade.

Silva da Cart 1689
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Notas de CV:

Foto do General Humberto Delgado na Praça de Carlos Alberto em 14 de Maio de 1958 retirada do site Porto Antigo - Histórias e imagens da cidade, com a devida vénia

Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8529: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (19): O alferes maluco... está tolo

7 comentários:

Anónimo disse...

Bravo José Ferreira da Silva!

Que bom ler Histórias destas!

O Amor verdadeiro, nada nem ninguém o vence!

Adorei ler, e já agora, parabéns aos protagonistas e ao escritor.


Um abraço da Felismina Costa.

Hélder Valério disse...

Caro camarigo José da Silva

Grande história.
Poderá haver quem possa ler e considerar que é 'muito à antiga portuguesa', muita tristeza junta, muita infelicidade, muita coincidência.
Sim, poderá haver quem pense isso. Mas só porque não viveu, não conheceu 'aqueles tempos'.
Acho que está aqui conseguido um bom 'fresco' sobre os costumes da época que aqui recordamos, os tempos da guerra de África.

Só uma pequena chamada de atenção. Cuidado com a revelação de algumas recordações... andam por aí alguns 'viggilli'...

Abraço
Hélder S.

Juvenal Amado disse...

Caro José Ferreira

Não sei o que dizer em relação a esta estória triste com final feliz.
Talvez que a felicidade tem muitos rostos ou muitas formas de se atingir.
Parabéns para ti pela forma como contas a estória, parabéns para a Grande Mulher, que numa situação infeliz teimou em distribuir o seu amor.
Quanto ao Neca só lhe desejo tudo de bom e dizer-lhe, que por vezes calha-nos a lotaria mesmo sem jogarmos. Foi o caso dele, que a sorte lhe bateu à porta de forma tão importante para o seu Futuro.

Um abraço para todos

Unknown disse...


Mais que a história de um casal dentro de várias histórias, as tuas palavras fizeram senti-las de uma realidade impressionante

Luís Dias disse...

Caro José Ferreira da Silva

Um excelente relato sobre o amor e a amizade em tempo de guerra.

Tenho as minhas dúvidas se, hoje em dia, o amor ainda venceria.

Um abraço
Luís Dias

Anónimo disse...

Caro João,

Que má estória em tão belo texto. De facto fazes uma boa descrição sobre a juventuda na nossa geração, os sonhos e os condicionamentos. Aquela realidade.
E o caso do Neca, infelizmente, não é único, mas constitui um sinal de pureza sentimental, algo meio arredio dos tempos modernos.
Um abraço
JD

Anónimo disse...

Mas que linda história.
Comovente.
Parabéns
Filomena