quinta-feira, 28 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8612: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (12): Louvores e condecorações

1. Mensagem do nosso camarada Belmiro Tavares, (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 20 de Julho de 2011:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (12)

Louvores e Condecorações

Em texto anterior – o soldado Milhais ou soldado Milhão – abordei parcialmente este tema,... a talho de foice.
Para facilitar dou aqui como reproduzida a minha abordagem naquele texto ao tema em epígrafe.

Não será demais lembrar que este interessante assunto vai aqui ser tratado por um ex-oficial miliciano – já era! Se o autor fosse um oficial do Q.P. ele veria os factos por um outro prisma e a conclusão seria, óbviamente, mais ou menos diametralmente oposta à minha.
O certo é que eu fui miliciano e via as coisas com os meus próprios olhos – apenas isso – não tendo em conta o interesse dos profissionais.
Não quero que entendam que eu era indisciplinado, o mau da fita, ou que fazia tábua rasa dos regulamentos, actuando por minha conta e risco. Nada disso!
Uma coisa é a disciplina; outra é o que eu entendo sobre louvores e medalhas e o por quê da sua atribuição ou não.

Aqui e agora eu sou o autor e transmito a minha própria experiência – apenas isso.

Em Janeiro de 1967 fui galardoado com o Prémio Governador da Guiné e no dia 10 de Junho do mesmo ano fui condecorado com uma Cruz de Guerra fruto dum louvor muito especial, digo eu.

Qual terá sido, para mim, o galardão com maior significado?

Embora se trate de prémios diferentes, um “encherá mais e melhor as medidas” que o outro, independentemente do seu valor real ou subjectivo que cada um possa atribuir-lhe.

Muito raramente eu deixo de ter em conta a face pragmática das coisas.

Assim sendo, considero que o Prémio Governador da Guiné foi o mais importante porque me proporcionou uma vinda ao “Puto” e consequentemente uma “saída do inferno”, durante 35 dias com viagens pagas; até porque em Janeiro de 1966 eu já não podia ausentar-me da Guiné porque o tão desejado fim da comissão já se aproximava, embora com uma indolência difícil de tolerar.

A Cruz de Guerra, por outro lado, possibilitou que eu continuasse os estudos sem pagar proprinas; esta benesse era extensiva também à minha estimada prole caso algum viesse a frequentar o ensino público. Não era mau de todo! Mas...

Reverso da medalha: quando “recebi” a Cruz de Guerra eu já estava colocado no Colégio Militar. Havia ali muitas e variadas festas e nesses dias tínhamos de colocar as condecorações ao peito o que não era de todo agradável; ao deslocarmo-nos, por vezes em corrida, lá ia a medalha a badalar agressivamente e desconfortávelmente no tórax.

Um dia, estando de serviço, fui com um capitão fazer a costumeira apresentação ao General Director do Colégio; era o Gen. Luis Deslandes; quando ele entrava no Colégio os telefones grilavam logo em todos os locais anunciar: “chegou o Homem”; nunca vi uma coisa assim! Os alunos apelidaram-no de “Ajax, o mais poderoso”!

Por ser oriundo de Cavalaria, gostava de ser assiduamente inconveniente, usando e abusando de vocábulos mais ou menos grosseiros – mais ou menos é favor!

O Capitão e eu entrámos na antecâmara do seu gabinete; abeirámo-nos da porta e o capitão, depois de pedir licença, declarou respeitosamente:
- Apresenta-se o capitão F. que vai entrar de serviço!

O Director olhou (eu estava atrás) e respondeu secamente:
- Não aceito a apresentação!

O Capitão pediu licença para se retirar e colocou-se frente a uma espelho grande que eli havia; olhou com atenção e perguntou-me se havia algum motivo perceptível para que a apresentação não fosse aceite.
Eu respondi:
- Nada vejo de anormal; se o senhor não está em condições... eu também não estou!

O capitão fez nova tentativa; a resposta foi mais completa... mais contundente:
- Não aceito a apresentção porque... está mal fardado!

Dizer isto a um capitão, era uma autêntica afronta; muito mais grave era asseverá-lo na presença dum misero subalterno... mas o General tinha “pelo na venta” e ninguem ousava recalcitrar, qualquer que fosse a situação.

O capitão mirou-se de novo; o General aproximou-se e, dirigindo-se a mim, disparou:
- O senhor também está mal fardado!

Agora já doía mais!... porque se referia à minha pessoa.

De seguida o General perguntou aos dois:
- Os senhores não foram condecorados com a Cruz de Guerra? Onde estão os “indicativos”?

Referia-se a uma pequena placa metálica revestida com um nobre tecido com listas verticais verdes e vermelhas e uma minúscula cruz metálica sobreposta.
Senti um profundo desconforto, autêntica frustação até porque eu não sabia que era obrigatório usar “aquilo” mesmo na farda de serviço.

Fiquei convencido que, na verdade, aquela condecoração me provocava demasiados dissabores atrozes; Deixava de ser um louvor (fruto dum) para ser quase... um castigo severo.
Afinal qual dos dois galardões devia eu preferir? Sem dúvida o que escolhi acima.

Conheci casos em que os louvores eram dados... a metro; como quem lança milho às galinhas para não usar ternos mais agressivos e isultuosos.

Ainda no C.M. um Major, ao saber que ia sair para outra Unidade, decidiu louvar meio mundo. Ele era Comandante do Corpo de Alunos; quatro capitães do Q.P. e outros tantos alferes milicianos dependiam dele.

O senhor Major louvou os 4 oficias do Q.P. De seguida distribuiu louvores aos sete professores de Educação Física de quem não era chefe. Engrossou a lista: o capitão instrutor militar, o mestre de esgrima, o mestre de equitação e o capitão chefe de secretaria. Distribuiu também louvores a uns tantos professores civis e militares. Só não louvou patentes superiores à sua porque... a Lei não o permitia.

O seu lema, penso eu, seria: “eu dou um louvor a ti para que outro dê um louvor a mim; quanto mais louvores eu distribuir... mais imponente será o meu”.

Nesta altura do campeonato, alguém lhe sugeriu que não seria de bom tom louvar apenas oficiais do Q.P. esquecendo os milicianos de quem era chefe.
O major, incrivelmente, aceitou a recomendação e eu... fui a vítima. Fiquei profundamente aborrecido, furioso mesmo, porque fui louvado... “por ser cumpridor”. Se não fosse cumpridor haveria lugar a uma admoestação – e já gozas!

Só pode ser verdadeira e justamente louvado aquele que faz algo mais (bastante mais) do que aquilo a que está minimamente obrigado... ser louvado por ser cumpridor... nem ao careca lembra!

Na manhã do dia seguinte dirigi-me, apressado, à secretaria do C.M. e, perguntei, angustiado, ao capitão o que poderia eu fazer para que aquele elogio hipócrita não fosse transcrito para o minha “Folha de Serviço” de certo modo brilhante... pelo menos para mim era e é!

- Nada pode fazer!, informou o capitão; louvores não se discutem; além disso não foi o Sr. Major que o louvou; foi o nosso General por proposta, que o senhor considera injusta e injuriosa do Sr. Major.

Meti a viola no saco, inglóriamente... mas aguardei pela hora da “terrível vingança” que haveria de chegar mais cedo do que eu podia imaginar.

O Major saiu do Colégio; um sábado à tarde passou por lá; entrou na sala de oficias; eu estava de o oficial de dia; encontrava-me ali sozinho a dar umas “cacetadas” nas bolas de bilhar; ele estendeu-me a mão – a tal que redigiu aquele louvor fantasma e estúpido – eu, sem boina na cabeça, pus-me em sentido... esquecendo aquela vil mãozinha marota; ele virou as costas com o “rabo entre as pernas e... nunca mais o vi. Senti-me plenamente vingado,... mas aquele autêntico escarro lá foi parar à minha Folha de Serviço.
Que vergonha!

Por vezes as condecorações estão na base da “bronca”. Há muitos casos inéditos e insólitos (uns mais que outros). “Consta” que um antigo ministro raro de Salazar se deslocou a Angola no longínquo ano de 1961 por altura da “tomada” da Pedra Verde (conquista).

Visitava um qualquer quartel algures no Norte de Angola; eis que um grupo de soldados “cagados” de lama e de sangue entra na unidade; logo ali o ministro “apenduricalhou” aqueles “bravos” (!?) rapazes que – pasme-se! – vinham duma... monumental caçada!

Um dia em Farim, um alferes miliciano comandava, interinamente, a 1ª C.C.

Todos os dias, ao fim da tarde, o alferes ia de jeep até ao centro da vila para se encontar com os oficiais do Batalhão ali aquartelado.

O Alferes aproximava-se da “porta d’armas” quando o 1.º Sargento da Companhia, correndo, gritou, que esperasse para assinar a O.S.; o incauto alferes assinou... “de cruz”; naquela O.S. estava inscrito um louvor estrondoso e não merecido àquele 1.º Sargento – diga-se que se tratava dum bom “vendedor” daquilo que não lhe pertencia; lá ia auferindo umas boas “massas” traficando géneros que se destinavam aos soldados africanos e não só.

A dita O.S. chegou ao comando do BCav 490 cujo comandante a mandou anular, e substituir por outra, excluindo apenas o tal “auto-louvor”. Ele conhecia bem aquela “peça”!

Deve haver muita cautela, profunda ponderação para que louvores e condecorações... não sejam banalizados, abandalhados ou venham a causar situações embaraçosas ou mesmo... ridículas!

Acima de tudo... respeito, muito respeito pelas condecorações e pelos que abnegadamente as mereceram... até mesmo por aqueles que, merecendo-as, por juízos incógnitos de um qualquer “Deus” injusto, não foram condecorados.

Julho de 2011
Belmiro Tavares
Ten. Mil.
____________

Nota de CV:

Vd. poste de 26 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8605: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (11): O Soldado Milhais ou O Soldado Milhão

3 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Não posso estar mais de acordo com as considerações do nosso camarigo Belmiro Tavares.
Realço apenas que, a "teoria" aplicada às Medalhas Militares, incluindo os louvores, devem ser extensíveis às condecorações civis.
Por isso, por alturas dos Santos Populares suspiro de alívio, por ser mais um ano em que não fui apanhado pela senha de atribuições de comendas, por "dá cá aquela palha".
Qualquer dia, e se se mantiver o ritmo que alguns presidentes evidenciaram na distribuição de medalhas no 10 de Junho,quando alguém disser "Quem não for Comendador, dê um passo em frente", o País ficará parado.
(Será que já não há ninguém para condecorar? É que parece que o país já parou!)

Hélder Valério disse...

Caros camarigos

Estas histórias do Belmiro Tavares, escritas de forma 'desempoeirada', contendo a sua posição serena, distanciada, das coisas que o envolveram mas também que se relacionam com o nosso viver geral, são muito interessantes e podem servir para se reflectir sobre muitas coisas e sob vários aspectos.

Esse, das condecorações 'a metro', é um aspecto que ciclicamente vai aparecendo. E, dá-me a impressão, que ocorre mais frequentemente em tempos de crise... lembram-se daquela expressão dos tempos em que a monarquia estava cada vez mais decadente e procurava manter e ganhar adeptos? Salvo erro dizia-se "foge cão, que te fazem barão".

Hoje em dia, no 10 de Junho, também há que perceber melhor as condecorações atribuídas.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

A autoria da célebre frase "Foge cão que te fazem barão... Para onde, se me fazem visconde?"... é atribuída ao Almeida Garrett...

O conhecido escritor e político liberal invectivava assim o alegado uso e o abuso que, no tempo da monarquia constitucional, se fazia das "nobilitações"...

Por razões nem sempre "nobres", os nossos reis "nobilitaram" muito burguês... O próprio Garrett não escapou à "sorte" de ser "visconde"...

Noutros casos, a nobilitação tem a ver a benemerência, um conceito muito valorizado no Séc. XIX. Era socialmente desejado que os ricos e os poderosos não fosse apenas ricos e poderosos, qaue fossem também beneméritos, substituindo-se suplementivamente ao Estado, em domínios como a saúde, a protecção social, a educação, a cultura, as artes... O Estado liberal, no Séc. XIX, não tinha preocupações sociais, limitava-se a ser o polícia de cassetete na mão e apito na boca para fazer cumprir a lei e a proteger a propriedade...

Falando de beneméritos e de nobilitáveis liberais, estou-me a lembrar do José Ferreira, de Gondomar, que enriqueceu em África e no Brasil, e que apoiou, política e financeiramente, a causa da futura D. Maria II, filha de D. Pedro IV...

A raínha Dona Maria fez do José Ferreira, filho de médios camponeses de Gondomar, cavaleiro, depois barão, depois visconde e finalmente Conde...

O Conde Ferreira foi, além disso, o maior benemérito português do Séc. XIX: não só mandou construir de raíz o primeiro hospital psiquiátrico do país (que tem sede no Porto, e que ostenta o seu nome), como deixou uma parte considerável da sua imensa fortuna para se construir 100 escolas, por todo o país, de Alenquer a Vila de Foz Coa, as famosas escolas Conde Ferreira... Uma delas foi na Lourinhã, justamente aquela onde eu fiz a escola primária...

Quanto às condecorações militares, é outra história que dá pano para mangas, e que fica aqui bem ilustrada pelos episódios contados pelo nosso tenente Belmiro...

Luís Graça


PS - Declaração de conflito de interesses: tenho um louvor exarado na minha caderneta militar. Não me compete, a mim, pronunciar-me sobre o seu conteúdo e o seu autor. Outros que o façam.... LG

(Por dificuldades técnicas, este comentário vai ter que entrar como "anónimo")