sábado, 18 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8443: Agenda cultural (136): Colóquio/Debate OS FILHOS DA GUERRA COLONIAL - Pós-memória e Representações, ocorrido nos dias 14 e 15 de Junho de 2011 no Auditório do CIUL; CES - Lisboa (José Brás)



1. Mensagem do nosso camarada José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 16 de Junho de 2011:

Caríssimo Luís
Aqui estou, dando cumprimento à tua solicitação para que escrevesse alguma coisa sobre o Colóquio/Debate OS FILHOS DA GUERRA COLONIAL - Pós-memória e Representações**, organizado pelo CES -Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, sob a direcção da investigadora Dr.ª Margarida Calafate Ribeiro e que decorreu a 14 e 15 deste mês em instalações no Fórum Picoas-Plaza, e encerrou com a apresentação de uma Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial -Afrontamento.

Esclareço, entretanto, que apenas poderei falar sobre o decurso do programa nas duas tardes, em virtude de impossibilidades pessoais na participação nas manhãs desses dois dias, e, ainda assim, muito genericamente porque, não tendo sido a Tabanca Grande vista nem achada na previsão e nos convites para a participação, não me ficaria muito bem, acho, alongar-me em considerações sobre as intervenções que aconteceram nas várias "mesas" em que se dividiu o debate, correndo sempre o risco de alguma parcialidade naquilo que direi, como participante, individualmente e em última análise convidado.

Assim, no início da tarde de 14, decorreu na sessão 2, um debate sob o título Pós-memória da Guerra Colonial, tendo como moderador António Sousa Ribeiro (CES), Paula Ribeiro Lobo (Universidade Nova de Lisboa), Hélia Santos (CES) e Margarida Calafate Ribeiro (CES).

Desta parte destaco a intervenção de Hélia Santos que sintetizou a abordagem ao tema pela tentativa de uma dupla visão, por um lado a dos filhos dos que fizeram a guerra, e por outro lado, a dos filhos dos que a recusaram.

Evidentemente, tal tema seria só por si o carro mestre de um comboio de ideias, de emoções e de palavras, tal é a fractura que para o bem e para o mal, está ainda presente em quem aceitou o embarque e quem, por acaso ou por fuga, faltou no Cais da Rocha.

E foi isso mesmo que, na hora de passar a palavra à assistência, eu próprio tentei dizer, tendo como quase certo que, se da parte dos que recusaram a guerra poderemos encontrar muitos e variados motivos, desde a sua recusa, pura e simples, por imperativo de consciência moral e recusa de qualquer tipo de violência, ou por discordância completa com o regime que tinha aceitado a guerra, até ao oportunismo puro dos que apenas temiam pela sua vida, concordando ou não e apoiando ou não o regime, também da parte dos que a fizeram, a aceitaram por motivos igualmente numerosos, muito diferenciados e até opostos.

Na verdade, a grande maioria dos militares de baixa patente que embarcaram, o fez numa situação psicológica e moral muito esbatida na ideia de Pátria trazida da escola primária e da catequese, do trabalho duro e cedo na idade, de uma vida difícil e sem esperanças, de uma postura social velha de séculos de aquiescência humilde ao poder. Outros houve que embarcaram com uma consciência construída na ideia de Pátria, de história, de dever social contra agressões tidas do exterior. Muitos embarcaram e aceitaram correr um risco duplo que era o de ser contrários à guerra e de entenderem a luta dos movimentos independentistas, mas dispararem balas iguais, contra um inimigo, afinal, igualmente assumido, e perderem a vida ou matarem do mesmo modo.

E se o que se queria era distinguir entre a abordagem dos filhos dos que "emigraram" e dos que embarcaram, seria necessário ter tudo isto em conta, mesmo não entrando com a diferença de olhares individuais de tais filhos, uns que aceitam e se revêem e outros que repudiam os pais e a sociedade que viveu aquela realidade, quer num caso, quer no outro.

Claro que não poderá caber num debate como este, e muito menos no olhar de quem constrói e apresenta "tese", todo este mundo, temendo-se que tal tarefa não venha nunca a realizar-se.

Na segunda tarde, após a passagem de um curto excerto de "Quem vai à Guerra" de Marta Pessoa (filha de militar do quadro), e "Poeticamente Exausto, Verticalmente Só", da jornalista Luísa Marinho sobre José Luís Bação, poeta morto em Moçambique, o painel, sob o título "Representações da Pós-memória da Guerra", sob a moderação de Margarida Calafate Ribeiro, teve como intervenientes, além da duas autoras dos filmes referidos, Ana Vidigal, artista plástica filha de combatente, Pedro Branco (músico e sem ligação directa ao conflito), Norberto Vale Cardoso (filho de combatente) e Rui Vieira (sem ligações ao conflito, escritores, e ainda Susana Gaspar, actriz directamente ligada à peça teatral de que se leram excertos no dia anterior, "Ignara Guerra Colonial".

Digo aqui, que me agradou muito o filme de Luísa Marinho, não apenas pelo seu riquíssimo conteúdo, mas também pela forma, pelo estilo e pelo ritmo com que o construiu e pelo grito que com ele nos choca ainda hoje.

Naturalmente que os olhares diferentemente construídos pelos indivíduos que compunham a mesa, serão muito importantes como depositários de hipóteses de abordagens condicionadas pelas formas em que cada um cresceu no caldo cultural respectivo e que, afinal, são parte significativa da sociedade que vive o esquece a experiência da guerra colonial, nem que seja porque, se a abordaram, dela têm ecos particulares.

Com referência na intervenção de Marta Pessoa e da sua recolha de depoimentos junto de mulheres que viveram a guerra, ou ficando aqui sofrendo as ausências e aguardando a volta, ou aceitaram fazê-la directamente no campo da luta, e na sua afirmação de que é muito importante por ainda hoje a falar a vozes que teimam em se calar, dei uma pequena nota de um episódio real vivido por mim duas horas antes, a partir de conversa com uma mulher, culta, social e culturalmente de esquerda (ainda que resguardando tal significado), que, respondendo a pergunta sua eu tinha informado que estaria num Colóquio sobre a Guerra Colonial, de imediato tinha recebido dessa mulher uma declaração azeda "ainda andam a falar disso?", "mas não chega já de conversa sobre tal cansativo assunto?" . Tal resposta tinha-me surpreendido como emboscada e deixara-me com pouca reacção, perguntando apenas se ela não achava que tal guerra que tinha matado mais de oito mil jovens, danificado de corpo mais de quinze mil, ferido mais de trinta mil, envolvido directamente mais de oitocentos mil e respectivas famílias e, ao fim de contas, determinado fortemente o fim do antigo regime, a actual situação da democracia e o desenvolvimento das situações vividas nas ex-colónias, se tal guerra, achava ela, que teria já acabado, ou que teria sido já debatida em excesso.

Na sequência, Sá Flores, ex-combatente mutilado na guerra colonial colocou a questão da constituição da mesa que tinha apenas gente que não fizera a guerra, alguns que nem haviam vivido essa realidade através de familiares, não estando nela nem um dos que escrevem, pintam, fazem música a partir do seu próprio sofrimento por nela ter participado, sinal este de que, doutro modo, o que se vai é escondendo e adocicando a sua visão, no fundo, num mesmo resultado que levou o regime a proibir-lhe um livro antes do 25 de Abril e os actuais editores a recusarem as suas propostas actuais. Nisto foi secundado por um outro participante ex-combatente.

Naturalmente que se entende a importância da abordagem metódica feita por investigadores cientificamente preparados, sociólogos e historiadores, para organizarem e arrumarem analisados os testemunhos recolhidos, ainda que por e de gente que não viveu directamente o conflito.

Naturalmente que se entende que a comunidade científica, cujos membros têm também um olhar importante sobre o fenómeno, além de objectivos de carreira, curriculuns e ambições pessoais legítimas, temam que a sua análise organizada se misture com as intervenções emocionadas de quem viveu a guerra e, por isso, decida evitar protagonismo a tais actores.

Entende-se menos que, de todo, organizações presentes no terreno nesta área e com gente também armada de saber e de experiência, nem sequer seja convidada para a iniciativa.

Coisa que a mim, pelo menos a mim, não passou despercebida, é o uso constante e continuado das mesmas referências quando se fala de literatura sobre a guerra colonial, sempre Lobo Antunes, sempre Lídia Jorge (de quem gosto particularmente, sempre João de Melo (de quem gosto também e tenho a honra da sua amizade), a Manuel Alegre, quando uma ou duas centenas de autores andam por aí mais ou menos esquecidos, alguns com excelentes trabalhos muito pouco ou nada divulgados. Nesta área merece destaque a vénia que os autores das teses presentes, de modo geral, dedicam aos novíssimos autores como José Rodrigues dos Santos e Rodrigo Guedes de Carvalho.

Pensando bem, também se entende que pouco crédito acrescentaria uma referência a Carmo Vicente, a Sá Flores ou a tantos outros conhecidos apenas no círculo restrito dos directa e activamente interessados no tema.

José Brás numa sessão de autógrafos, na Feira do Livro de Lisboa, do seu último livro "Lugares de Passagem"
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Notas de CV:

(*)Vd. poste 11 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8406: Agenda Cultural (131): Lançamento do livro Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial, dia 15 de Junho de 2011, pelas 19 horas, no Auditório CIUL / Forum Picoas Plaza, Lisboa (José Brás)

(**) Vd. poste de 11 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8407: Agenda Cultural (132): Colóquio/Debate - Os Filhos da Guerra Colonial: pós-memória e representações, dias 14 e 15 de Junho de 2011, no Auditório do CIUL; CES-Lisboa (Forum Picoas-Plaza) (José Barros)

Vd. último poste da série de 15 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8423: Agenda cultural (135): Lançamento da Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial, hoje, às 19h00, em Lisboa, Fórum Picoas Plaza

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro José Brás,
Agradeço a tua apreciação do evento. Para mim (e por razões que cá sei), as tuas reflexões foram ensinamento.
Um abraço,
Carlos Cordeiro

Hélder Valério disse...

Caro camarigo José Brás

Como disse, 'vim de cima para baixo', na apreciação dos textos que não tive oportunidade de ver esta semana, e não vou conseguir ver todos.
Deste modo já tive ocasião de comentar sobre a parte final desta tua 'reportagem'.

Quanto a este relato propriamente dito ressalto, entre outras coisas que bem poderiam ser debatidas, as tuas reflexões sobre as múltiplas motivações, ou pretextos, ou contextos, dos que 'foram à guerra' e dos que 'não foram à guerra', com a particularidade de se fazer estender aos filhos de ambos o entendimento dessas 'motivações, etc.'
E também a tal 'postura enfadada' da tua interlocutora que acha que já não se deve falar da guerra colonial...
E não é a única!

Quanto à primeira questão, a das 'razões' para a ida ou para a não ida, fico só pelo registo de que seria certamente enriquecedor perceber-se todas as diferentes 'posturas', até para se conhecer melhor o ambiente então vivido, e por quem, que camadas sociais, que formação, que cultura, etc., de cada um ou dos grupos sociais a que pertenciam.

Quanto à 'posição enfadada' será certamente por incomodidade. De quê, não se pode perceber assim, 'às primeiras', mas lá que deve ser, acho que sim.
E é curioso verificar que 'antes' uns proibiam a discussão à volta da questão da guerra, da sua justeza, não se podia colocar em causa o esforço, seria 'traição'. Em todo o caso essa discussão foi-se fazendo e originou largamente o "25 de Abril", como é propalado.
Depois, o rápido desenrolar dos acontecimentos tornou 'inoportuna' a discussão à volta desse tema incómodo, que todos (ou quase todos) queriam 'apagar da memória', uns por uns motivos, outros por outros motivos.
Agora que o 'grosso da coluna' dos contemporâneos desses acontecimemtos está na idade da reforma (uns já la estão, outros já passaram ao eterno) e começou com mais ânimo e entusiasmo, embora sem organização, a fazer o registo da memória e a interrogar, voltam a fazer-se ouvir vozes contra essas manifestações (também aqui, por motivos muito diversos, alguns até opostos).

Para esta última situação, 'a dos enfados', digo que "não senhor, a questão não está esgotada". Seja porque a memória não pode ser amordaçada (incomode quem incomodar), seja porque é mesmo importante manter o tema em aberto pois há muitas coisas não resolvidas e é de toda a justiça (pelo menos, tentar) resolver.

Abraço
Hélder S.