terça-feira, 24 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8316: Contraponto (Alberto Branquinho) (34): Teatro do Regresso - 9.º Acto - Filho da ausência

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 22 de Maio de 2011:

Caro Carlos
Este 9º. Acto - Contraponto (34) - aborda um outro aspecto da realidade verificada em alguns dos regressos, consequência da ausência e da carência por ela provocada... (paciência!...).

Um abraço
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (34)

TEATRO DO REGRESSO
(Peça em vários actos)

9º. Acto – Filho da ausência

Cenário

Refeitório dos soldados.
O Elias, analfabeto, observa as frases escritas na carta que acabou de abrir, vira e revira a folha, com ternura nas pontas dos dedos. Entretanto, olha em volta. Regressa à contemplação da carta. Espera o Cabo Costa, que faz de seu “secretário” na leitura e resposta ao correio que recebe. Esta carta chegara há pouco no Dornier.


Acção

Entra o Cabo Costa e senta-se em frente do Elias.

- Atão, bê lá o que é que a minha mulher diz.

O Costa pega na folha e lê:

- “Meu querido homem…”

Pára e olha o Elias, que já saboreia as palavras, com a cabeça apoiada entre as mãos.
Continua:

- “Espero que esta te bá encontrar de boa saúde que nós por cá todos bem graças a Deus. Olha, agora já te posso dar a nuticia porque já tenho a certeza. No hospital já confirmaram que eu estou grábida. Como bês deixas-te-me uma prenda antes de abalares prá Guiné. Dizem que o menino porque eu acho que é menino debe nascer lá pró Natal. Bai ser o nosso Menino Jesus…”

O Costa pára a leitura e fica a olhar o Elias, com ar interrogativo. Este, com ar embevecido, olha o papel da carta, como se, através dela, visse a mulher, a aldeia, o futuro filho…
Aí o Costa poisa a carta em cima da mesa e começa a contar pelos dedos. E repetia, repetia a contagem. Foi interrompido pelo Elias:

- Atão? Acabou?

- Não, pá. Não pode ser… O filho não é teu.

- O quê??!!

- Pois. Olha lá: a gente embarcou no princípio de Janeiro, estamos no fim de Março e se vai nascer em Dezembro, passam quase onze meses depois de embarcarmos… de tu embarcares.

- Não estou a entender.

- Ó Elias, o filho… não é teu filho.

- Hã??

Ficam os dois a olhar-se e, num repente, o Elias arranca a carta de cima da mesa e sai.
O Costa, aparvalhado, fica a vê-lo afastar-se. O Elias nunca mais lhe falou. Soube que pedira ao alferes para desempenhar as funções de “secretário”.

………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………

Cerca de vinte meses depois, regressam da Guiné.
Quando desembarcam do comboio que os transportara de Lisboa para o Porto, o Costa pára para observar o “pai” Elias com o bebé, de quase um ano, ao colo, rodeado da mulher e mais familiares.
Retoma a marcha e, levantando os ombros, diz baixinho:

- Ora… que se lixe… Já estamos em casa.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8288: Contraponto (Alberto Branquinho) (33): Teatro do Regresso - 8.º Acto - Foi outra guerra qualquer

17 comentários:

Anónimo disse...

Continuas a...acertar em todas! Parabéns! Um grande abraco.

Torcato Mendonca disse...

è a terceira vez que tento a merda do comentário.

Já nem sei o que digo e isto não segue.

Meu caro Alberto Branquinho não é caso único...é o Teatro da Vida ou da bida...continua pois é um gosto ler!
Ab T

Anónimo disse...

Amigos de "interpretações maledicentes",qual é o espanto???

Não sabem que naquela época já tinhamos banco de esperma??!!

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Como o país necessita,mais que nunca,de um economista-messiânico (e näo só!),haveria bancos de esperma para os lados de Santa Comba Däo? Aquele abraco.

Anónimo disse...

Näo resisto aqui voltar pois,por coincidência(?)estranha, a palavra surgida no rectângulo de controlo dos comentários "verificacäo de palavras" foi,simplesmente,sem (A)depois do (I)....VIGRA.(Aparentemente,o Exmo.Senhor Professor Doutor continua a ter as suas influências,mesmo "lá por cima").

Torcato Mendonca disse...

Oh Joseph Bello
Porra haja Deus...

(podem retirar o porra e eliminar o comentário/palavra)
Ab T

Joaquim Mexia Alves disse...

Oh José Belo

Que raio de misturada numa história bem contada e infelizmente algumas vezes verdadeiras!!!

Parabéns Alberto Branquinho e julgo que me começa a aparecer na mente o esboço de um livro!!!

Um abraço camarigo para todos

Anónimo disse...

Caro Mexia Alves. Se reparares,o meu comentário ao poste (de que francamente gostei),é o primeiro de todos.Aqui,literalmente..."mais a baixo",será outra coisa.Creio que um pouco de humor inocente também ajuda a envelhecer com...harmonias várias. Ou? Mais um abraco.

Manuel Joaquim disse...

Mais uma vez, um bom "flash" da atmosfera social da época. O analfabetismo funcional era arrasador ( ainda hoje é preocupante) mas o analfabetismo social ( a fraca perceção do tipo de relações humanas e suas consequências, entenda-se) não lhe ficava muito atrás.

Continua, Branquinho! Estas cenas "batem"! E esclarecem quem aceita ser esclarecido.

Um abraço

Anónimo disse...

Camarigos
Eu tive uma situação parecida em Pitche.
Um dos soldados recebeu uma carta da mãe, noticiando que a nora "andava a portar-se mal" na Aldeia com outro indivíduo.
Acto contínuo o meu Camarada, dirigiu-se à Caserna, foi buscar a G3, encostou-a ao queixo e premiu o gatilho...
Alertados pelo tiro, eu e mais alguns corremos para lá e vimos um espectáculo...que nunca mais me esqueci.
A mãe perdeu o filho, pois não deveria dizer aquilo num clima de Guerra, que condiciona a pressão a que estavamos sujeitos.
De certeza que ficou com remorsos toda a vida, e nunca mais esqueceu...e nem eu.
Abraço
Luís Borrega

j. eduardo alves disse...

com o apreço que tenho pelo Alberto branquinho, acho que esta saiu ao lado, porque naquele tempo os que aínda não conhecião as letras, sabião mais de que alguns que forão cabos melicianos; á tantas anedotas, um dia uma berler não pegava a trabalhar e diz o major muda-lhe os palatinados,

j. eduardo alves disse...

eu quis dizer berlier que era uma viatura a diesel, mas um dia era eu soldado condutor no R I 8 EM BRAGA O SARGENTO DE DIA DISSE A UM SOLDADO VAIS LEVAR UM PIQUETE DE CASTIGO DIS NÃO, DIS O SARGENTO NÃO PORQUê, PORQUE SOU FILHO DO CABO MELICIANO

Hélder Valério disse...

Caro ABranquinho

Lá vamos então aguardar o 10º Acto deste 'livro de contos'.

Naquele tempo o analfabetismo existia e estava em regressão. Hoje, parece-me que não se progrediu muito mais, pelo menos em termos de 'alfabetismo funcional'.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Meu caro Branquinho,

Ao ler este teu trabalho artístico fiquei a pernsar...

Na minha companhia tinhamos um soldado que também não sabia ler e escrever, as era esperto.

Tinha dois secretários: um que escrveia as cartas que ditava e outro que lia as respostas.

Com esse estratagema sabia que não era enganado pelos secretários.

Um abraço amigo,
José Câmara

José Marcelino Martins disse...

Mais uma boa história do Branquinho!
É natural, para quem o conhece.Tudo isto é natural, para quem viveu a realidade duma guerra e dum país que "primava" pelo obscurantismo, mas que hoje "ainda prima" por certa ignorância.
Ainda temos muita didáctica a aplicar!

Anónimo disse...

Fico agradecido a todos os que se incomodaram não só a ler mas, também, em comentar este post.
Venho aqui, principalmente, para esclarecer o J.Eduardo Alves, para lhe dizer:

1- Referir alguém como "analfabeto" não é o mesmo que chamar-lhe "estúpido". Há e houve analfabetos bem mais espertos que muitos letrados. Conheci, pelo menos, dois homens analfabetos que geriam o seu negócio melhor que outros que sabiam ler. E isso é mais de louvar, porque não podiam passar ao papel as ideias e as notas que tinham que tratar só "de cabeça".

2 - Esta situação que procurei retratar é, afinal, semelhante a outras que aconteceram durante as grandes ausências - no período dos Descobrimentos, nas Cruzadas, etc..(Quem não conhece pelo menos uma anedota sobre o "cinto de castidade?)

3 - No caso da nossa experiência de guerra durante cerca de dois anos, graças ao SPM, que nos acompanhava nas andanças e cambanças por terras de África (porque nem todos estiveram sempre no mesmo aquartelamento), essas situações podiam/puderam ser conhecidas antes do regresso a casa. E foi aí que, quem não soubesse ler e escrever, se via obrigado a ter que "divulgar" a sua vida privada, porque esse "negócio" não podia ser governado com base na memória das coisas e com a cabeça (aquela que tem miolos...).

4 - O facto de o "Elias" deste post não assumir/não querer assumir a realidaade deve-se a uma "nuance" desse complexo de sentimentos a que, de uma forma geral, se convencionou chamar "amor".
Os extremos dele são tais, que, por amor, se morre e, por amor, se mata.

Alberto Branquinho

j. eduardo alves disse...

caro amigo Alberto Branquinho, em prova do crontrário somos amigos, um dia avemos de nos encontrar, dar um abraço, e trocarmos, ideias, mas fui mal entrepetado, é que sou um bom contador de anedotas, mas sobre a guerra que vivemos, no ultramar, e preocupo-me em contar anedotas dos que forão previgiados em estudar até serem incorporados nas forças armadas potuguesas, e só conseguirão ser ( cabos melicianos ) porque abia falta de gente cualificada e depois do 25 de abril vierão para portugal inscreverão-se na univercidade e com esames AD-que HOJE SÃO DOUTORES NÃO SE DEVEM MELINDRAR OS QUE NÃO TIVERÃO OPORTUNIDADE DE NEM SE QUER PUDER CONHECER AS LETRAS PORQUE HOJE Á MAIS ANALFABETOS DO QUE NAQUEL TEMPO. APROVEITO ESTE ESPAÇO DETES COMENTÁRIOS, PORQUE SEI QUE É VISTO E REVISTO E GRAÇAS AO MEU PAI CONSIGO JUNTAR AS LETRAS MAS EU PEGUEI O BOI DA VIDA PELA CABEÇA, ATÉ UM DIA DESTES, O MEU MAIL E CONHECIDO NO BLOGUE STOU AO SEU DISPOR ATÉ SEMPRE