segunda-feira, 4 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8044: Episódios da Guerra na Guiné (Manuel Sousa) (2): Afinal, os Anjos acompanham-nos

1. Mais um dos Episódios da Guerra na Guiné, trabalho do nosso camarada e Manuel Sousa (ex-Soldado At da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74), enviado em mensagem do dia 15 de Março de 2011:


EPISÓDIOS DA GUERRA NA GUINÉ 1973/1974 (2)


AFINAL, OS ANJOS ACOMPANHAM-NOS

Enquanto o meu Pelotão esteve deslocado da sua Companhia, de Jumbembém, envolvido nos acontecimentos de Guidage que acabei de relatar, permanecemos no quartel de Binta.

Como já descrevi, ali ficámos mais de uma semana a ração de combate, sem tomar banho e mudar de roupa, a dormir no chão, o que, juntamente com todas aquelas emoções em teatro de guerra, no fim daquele período, nos deu o aspecto que a minha fotografia bem ilustra.

No meio daquele clima de guerra, algo de útil aprendi sobre generosidade e solidariedade humanas.
Travei conhecimento em Binta com um militar, o Soldado Pires, que tínhamos em comum sermos ambos transmontanos.
Pertencíamos ao mesmo batalhão, mas como ele estava em Binta e eu em Jumbembém não nos conhecíamos, muito embora a fisionomia dele não me fosse estranha, porque frequentou a recruta em Vila Real como eu e do facto de termos viajado juntos no paquete “Uíge” na ida para a Guiné.

Ele como “estava em casa” tinha a alimentação normal, confeccionada, e eu como estava deslocado tinha a minha ração de combate.
Um dia à hora do almoço, estava eu a comer uma lata de conserva e umas bolachas de água e sal, apareceu-me ele com um prato na mão com a refeição confeccionada que lhe tocava:

- Toma, é para ti, estás aqui há tanto tempo a ração de combate, dou-te a minha refeição que te vai fazer bem.

É indescritível a comoção que me assaltou. Aliás, o mesmo aperto de garganta que estou a sentir agora ao escrever estas palavras.
Aquele gesto de generosidade não se limitou só àquela vez, a ponto de eu algumas vezes recusar, não querendo abusar da nobreza do seu carácter.

Escusado será dizer a amizade que se criou entre nós, naquele tão curto espaço de tempo.
A partir dali nunca mais tive contacto com ele. Terminada a comissão, regressámos à Metrópole, em Agosto de 1974.

Volvido um ano, em Setembro de 1975, ingressei na Guarda Nacional Republicana e fui colocado em Lisboa no Quartel dos Lóios, junto ao castelo de S.Jorge.

Entretanto constituí família e aluguei uma casa em Casal de Cambra, na freguesia de Belas, Sintra.
Uma casa geminada com outra igual, cujo senhorio era o mesmo, que me disse que a outra casa tinha sido alugada também por um Guarda a prestar serviço no Quartel do Beato, também em Lisboa.

Decorreu um lapso considerável de tempo, talvez um mês, sem eu conhecer o outro inquilino: estávamos em quartéis diferentes, turnos diferentes, não se proporcionando por isso qualquer contacto de vizinhos.

Um dia ao sair de casa, olhei para a direita e imaginem quem estava encostado à ombreira da outra porta, da tal casa geminada! O soldado Pires em pessoa.

O que se passou depois, já todos vós estais a imaginar. Afinal os anjos acompanham-nos.

Não resisti a partilhar convosco esta lição de vida.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8035: Episódios da Guerra na Guiné (Manuel Sousa) (1): A crise de Guidage

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Manuel Sousa

Emocionante a sua história!

Imagino a vossa alegria!

Grande e feliz coincidência!

O destino juntou dois homens bons, cuja história comum é digna de ser conhecida.

Quero desejar a ambos uma vida longa e feliz, para recordarem o passado, vivendo o presente.

Um abraço fraterno

Felismina Costa

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Manuel Sousa

De facto há por vezes estranhas coincidências que nos deixam a pensar muito profundamente.
Mas também se assim não fosse as coisa não teriam a força que acabam por ganhar quando essas circunstâncias acontecem.
A generosidade com que o Pires te presenteou nos momentos difíceis é uma daquelas coisas que só podem ocorrer com maior força nos momentos de maior dificuldade. É isso que nos cala bem fundo e se torna inesquecível.
Calculo que o reencontro tenha sido mais um momento de grande emoção.
Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Manuel Sousa
É com agrado que leio as tuas histórias.Seria bom que mais ex-soldados escrevessem no blog,a perspectiva e pontos de vista dos que foram simples soldados só enriqueceria este.Compreendo as razões porque muitos não escrevem nem fazem comentários, mas julgo que seria importante incentivar todos.
Um "ex-alfereszeco" com um grande alfa bravo
C.Martins