sábado, 12 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7934: Notas de leitura (217): Jardim Botânico, de Luís Naves (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Março de 2011:

Queridos amigos,
Não posso esconder o orgulho de vos ter trazido esta obra que merece constar nas vossas estantes. É um belo romance* em torno daqueles acontecimentos fatídicos que ainda hoje afectam o viver de um povo que nesses momentos terríveis voltou a pegar nas armas quando viu chegar tropas estrangeiras. E orgulho de um português que vê um compatriota escrever para dois países, duas culturas num só apelo à paz, denunciando as formas embrutecidas por onde a guerra se manifesta.

Um abraço do
Mário


Jardim Botânico (3):
Um belo romance português sobre o conflito guineense de 1998-1999

Beja Santos

“Acordaram cedo e gastaram algum tempo nos preparativos da última etapa da viagem, sem grande esperança de poderem passar para Bissau”. Mas tiveram uma surpresa quando regressaram à barricada ou posto de controlo montado pelos homens da Junta. Ali, havia sorrisos de triunfo, deixaram-nos passar a caminho do aeroporto. É uma descrição de grande recorte: “O jipe passou por uma estação de serviço, absurda e espatifada, saída de uma cena de filme apocalíptico. Não se vislumbrava vivalma, apena lixo amontoado. Alguns carros sem rodas jaziam nas traseiras, à toa, um deles capotara de pernas para o ar ou fora virado de propósito. E, no chão, havia grotescos objectos inanimados, como se fosse o espólio de um saque: a panela que alguém largara no chão, por não se aguentar mais transportar o seu peso; roupas rasgadas e sujas; e um cobertor a tapar a terra endurecida; um carro de bebés sem rodas; e, afastado, entre ervas altas, um pequeno tapete de pêlo, o cadáver de um cão, que um jagudi inexperiente já rondava, saltitando desajeitado no asfalto quente de acesso à gasolineira”. Os viajantes entraram na guerra ou no seu limiar, pois o aeroporto está altamente defendido, à barreiras móveis de arame farpado e, surpresa das surpresas, ali dentro pairava um espécie de paz adormecida. O jornalista bem tenta meter conversa com os militares, o que parecia impossível resultou numa excitação dos insurrectos que prontamente começaram a contar as peripécias dos últimos dias.

O jornalista procura o comandante mítico, acabou por conversar com o comandante Capacete de Ferro, o general estava na frente. À volta, há soldados a falarem russo, Ana descodificou que alguém estava a gabar-se de ter estrangulado um senegalês com as próprias mãos. Assim que se descobre que há uma médica no grupo, Ana é compelida a avançar para a enfermaria, uma miserável barraca com um cheiro insuportável. A carência de medicamentos é quase total. Ana apela para que os feridos sejam transferidos para o hospital de Canchungo. Nisto, os mísseis começam a silvar. Reaparece o doutor Fonseca, o secretário de Estado é um sério apoiante da Junta, é ele quem responde pelos contactos externos, redige comunicados, está ufano do papel que desempenha. Como num comício, vai descrevendo os seus grandes planos para o futuro da Nação: escolas, tribunais e fábricas, espalhar a felicidade por todos. E leva-os até à rádio Bombolom, a antena que liga os insurrectos a todo o país. Segue-se uma descrição alucinante de um território apocalíptico com material de guerra calcinado, corpos mumificados. A estação de rádio ficava a um quilómetro da frente de combate, perto do Poilão de Brá. Na rádio Bombolom a Junta lia os comunicados militares e exortava os antigos combatentes a juntarem-se à revolta. Os acontecimentos precipitam-se, reaparece Lila, a bajuda pela qual suspira Ferreira Gomes, aderiu à revolta, já nada a prende ao antigo amante. Os viajantes permanecem na base militar, Daniel está impaciente, quer ir ao interior de Bissau, está ali o seu tesouro escondido.

O autor dá-nos um inesquecível retrato do campo de batalha, a linha da frente é alucinante para ambos os contendores. Ferreira Gomes apresenta Daniel a Moreira, um antigo sócio. Numa atmosfera de completa depressão todos sonham à deriva. Os vínculos afectivos (imaginados ou não) vão-se deteriorando, sobretudo entre Daniel e Ana. Daniel afoita-se ao caminho para entrar na cidade cercada. No meio daquele atoleiro todo, fere-se numa queda, começa a arrastar-se com uma extensa ferida na perna direita. É um calvário que se irá agravando, mas consegue chegar a casa, graças à ajuda de João Leonardo, outro ex-combatente português. A tropeçar, febril, Daniel entra em Bissau: “A cidade era uma ruina disparatada. A artilharia não tinha destruído muitos edifícios. Havia um o outro telhado esventrado, uma casa incendiada, tinham tombado duas árvores numa rua, dispostas como se fossem uma barricada. Tudo mudara por causa da falta de gente, era como se Bissau, sem habitantes, fosse um cadáver abandonado numa vala. Um corpo apodrecido, sem danos de mutilações, mas mesmo assim inerte e despreocupado, morto por choque interno. No ar, pairava um cheiro difícil de definir. Os edifícios no centro mantinham-se quase intactos em relação ao que vira no dia da sua saída… E não se via uma alma de ser vivo. Como se na terra tivessem restado fantasmas de emboscada. Vagas de poeiras dançavam entre as esquinas. E as nuvens, em cima, que agoiravam chuva, densas e acasteladas, pareciam preparar-se para lavar de uma vez por todas os múltiplos pecados vagabundos.

A descrição do hospital de Bissau é dantesca, é um verdadeiro campo de morte. Sem possibilidade de se tratar, com a ferida coberta de pus, Daniel ruma até casa de Leonardo. E depois parte à procura do seu tesouro. Surpreendido, é recebido pelo velho Moleza, guarda e amigo. Não partiu, não tem para onde ir e exclama: “Ferida má, patrão!”. Retirado o seu tesouro, procuram, Daniel e Moleza, abandonar a cidade. É um caminhar delirante, Daniel vai perdendo a consciência. Chegaram a um braço do rio. É aí que Daniel, completamente desalentado, desiste dos papéis que o trouxeram até uma cidade abandonada onde as tropas governamentais resistem. Tudo parece perdido para Daniel, há aqui uma descrição que parece um de profundis: “Ficou ali estendido, sentia uma paz tranquila. As margens da clareira formavam um ciclo assimétrico de árvores, uma parede verde, que parecia um pomar abandonado. Havia palmares de dendém e cibe, as copas altivas de cabaceiras e uma arrogante tagarra que olhava a pequenez humana lá do alto, e ainda um poilão com sinais de amuletos. No miolo do descampado, erva alta, capim amarelado, que a brisa penteava. E canaviais e flores. Parecia-lhe flutuar no rio… Seria a febre? Uma orquídea, à distância da mão, um ventre encarnado, fulgurante, e pintas de tons à volta das pétalas vibrantes, como se alguém tivesse experimentado uma paleta infinita. Seria mesmo uma orquídea ou a explosão de uma nebulosa?”. No fantástico da guerra, naquele vórtice de brutalidade e destruição, aquele doente sofre mas contempla a natureza com um intenso lirismo. É nisto que surge Ferreira Gomes e o velho Moleza. A salvação está muito próxima, vieram soldados da Junta, tudo leva a crer que naquele naufrágio a vida renasce à luz de outros valores. Sim, nada há mais importante que poder recomeçar. Mesmo naquele exótico ponto do globo: “A estrada estava vazia. O calor tombava como fogo de morteiro. O céu ameaçava trovoada. E o barulho inesperado do barulho da carrinha, ao elevar-se na quietude da tarde, quebrou a magia e o tranquilo mistério daquele pedaço de jardim botânico”.

Não hesito em reafirmar que se trata de um belo romance, a primeira grande surpresa da literatura luso-guineense deste ano. Todo o absurdo daquela guerra que marcou o povo guineense como um ferrete está, em síntese, nestas pessoas, nestes ambientes, nesta correria vertiginosa, à revelia de um belo jardim botânico que merecia melhor sorte.

Este romance de Luís Naves passa a pertencer à biblioteca do blogue.
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Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

5 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7902: Notas de leitura (213): Jardim Botânico, de Luís Naves (1) (Mário Beja Santos)
e
10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7920: Notas de leitura (215): Jardim Botânico, de Luís Naves (2) (Mário Beja Santos)

Vd último poste da série de 11 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7929: Notas de leitura (216): Grande Reportagem, nº de Dezembro de 1993: Desaparecidos em combate, os portugueses que não voltaram da guerra: o caso do Victor Capítulo, da CART 1743, Tite, 3 de Fevereiro de 1968 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

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