sábado, 19 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7820: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (23): O "fefé" é um instrumento utilizado só pelos povos originariamente islamizados (Cherno Baldé)

1. Comentário do nosso tertuliano Cherno Baldé*, a quem aproveitamos para saudar, pelo seu regresso, deixada no Poste Guiné 63/74 - P7801: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (65): Na Kontra Ka Kontra: 29.º episódio:

Caros amigos,
Quero felicitar o Fernando Gouveia por esta interessante novela em terras Guineenses que, quanto a mim, dava para um belo filme.

Senti muita inveja do Alfero Magalhães pela bonita residência que lhe coube em Madina Xaquili. Na nossa língua (fula) chamam estas casas de "Náatu ka sudu" ou seja "faça o favor de entrar", s´il vous plait.

Sobre o "fefé" quero acrescentar que é um instrumento utilizado só pelos povos originariamente islamizados (Fula e mandinga).

E, ao falar do seu ar primitivo, opinião que eu também partilho, convém salientar outros aspectos não menos importantes:

Em primeiro lugar, trata-se de um instrumento resistente e leve, sendo fácil de manobrar para toda a gente e nas diferentes faixas etárias e, em segundo lugar, é facilmente adaptável aos diferentes tipos de solos. Os solos da região tropical são diferentes dos solos das regiões temperadas pois aqui a camada nutriente que alimenta as plantas não é muita profunda. Mas, sobretudo é um instrumento altamente social, pois ninguém o utilizava de forma isolada e já se falou aqui dos "Wampanhs" daquela época. Hoje em dia, praticamente não se usa, e também porque nessa era de telefones móveis acompanhada de crises móveis, já ninguém trabalha como outrora. E por falar de trabalho, entramos na análise de uma outra vertente mais cultural ou socio-antropológica aflorada por A. Branquinho e que diz respeito a gestão da vida familiar e/ou patrimonial em que os mais velhos controlam tudo e mais alguma coisa.

Nas nossas sociedades tradicionais, providas de meios de produção bastante precários, a gestão da força do trabalho era fundamental para garantir alguma sustentabilidade (dentro de um círculo de aparente miséria). A base fundamental para o equilíbrio de todo o sistema era o controlo do sexo e da sexualidade, isto é a gestão rigorosa e racional do mesmo de forma a garantir que só têm acesso a casa das mulheres (ao sexo) aqueles que já tinham cumprido as condições e regras tacitamente estabelecidas pela sociedade para esse efeito. Este esquema permitia a (re)produção social e económica das comunidades numa perfeita harmonia com o meio envolvente.

Este modelo sofreu uma gradual mas durável destruição, primeiro com as imposições da colonização e o advento do mundo novo (a globalização) mas acabou mesmo por sucumbir sobretudo com as nossas independências. Hoje, qualquer sapateiro da esquina tem direito... tudo está politizado, o sexo se liberalizou, tornando-se baratinho e fácil de obter, os mais novos já não querem vergar a espinha para nada deste mundo.

O nosso modelo social antigo perdeu-se antes de termos tempo de construir um outro que seja funcional e adaptado a nossa realidade e as nossas condições. As nossas cidades estão cheias de gente que ao acordar de manhã não sabe o que há-de fazer com a sua vida mas também não quer ser camponês, trabalhador do campo, está civilizado antes de garantir o seu sustento.

Um velho ditado fula diz: O lado para onde olha aquele que está perdido no mato, não há tabanca nenhuma.

Um grande abraço
Cherno Baldé
____________

Nota de CV:

(*) Vd. esta série de postes com as memórias de Cherno Baldé

18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7810: Memórias do Chico, menino e moço (22): Quando choviam... frangos em Fajonquito!

27 de Novembro de 2010 >Guiné 63/74 - P7350: Memórias do Chico, menino e moço (21): Cap Teixeira Pinto e as guerras de pacificação

18 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7003: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (20 ): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (II Parte)

17 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)

17 de Agosto de 2010 >  Guiné 63/74 - P6864: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (18): A (mu)dança das bandeiras em Fajonquito, em 1974

14 de Julho de 2010 >Guiné 63/74 - P6735: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (17): A desertificação da nossa terra: até os macacos pára-quedistas nos estão a deixar

30 de Junho de 2010 >Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã

18 de Maio de 2010 >Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!

24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6244: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (14): Cap Figueiredo: Capiton Lelö dahdè ou capitão cabeça inclinada

12 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6146: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (13): Fajonquito, o blogue, o meu silêncio... e as fotos do José Cortes

12 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4816: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (12): E se o Algássimo tivesse razão ?

10 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho

8 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

5 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

27 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

21 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

13 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

30 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

24 de Junho de 2009 >Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

10 comentários:

Anónimo disse...

Caros camarigos

Estas intervenções do Cherno Baldé são quase sempre interessantes, oportunas e preciosas.

Quanta informação não recolhemos delas? Quanto já não nos foi dado saber do modo como as 'coisas' eram vistas dos lados de fora dos quartéis? Quanto é que já aprendemos com aquilo que ele nos tem vindo a dar conhecimento?

E ainda bem que o Vinhal colocou a informação/listagem de uns quantos 'post' onde mais facilmente podemos recolher e visitar essas comunicações.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Cherno:
As observações (correcções) que fazes às nossas (europeias) leituras das culturas da Guiné são um contributo precioso para a riqueza deste blog e preenchem uma carência de quase todos os combatentes, quanto à compreensão histórica e sociológica das comunidades com quem partilhámos as nossas vidas durante 2anos.
Muito obrigado, pela parte que me toca.
Um grande abraço.
Carvalho de Mampatá.

Fernando Gouveia disse...

Camaradas:

Já quando o amigo Cherno Baldé fez este mesmo comentário ao 29º episódio da minha estória, tive a oportunidade de lhe dizer que no Poste 4429 podem ser vistas fotos de dois féfés, de um que trouxe de Madina Xaquili e de outro esistente no Museu Britânico em Londres.

Um abraço a todos.
Fernando Gouveia

Fernando Gouveia disse...

Desculpem mas no comentário anterior esqueci de referir que o féfé do Museu Britânico está datado de há 1500 anos antes de Cristo.

Fernando Gouveia

Cherno disse...

Caro amigo Fernando Gouveia,

Gostaria de saber a origem do féfé de há 1500 anos antes de Cristo a que se referiu, certamente não será dos Fulas nem dos Mandingas da região ocidental de África.

É muito provável que tenhamos nesse instrumento uma pista que nos pode conduzir ao Egipto antigo, região a que quase todos os povos do antigo sudão ocidental se reclamam. Todavia, há 1500 a.C. poucos seriam os povos que praticavam a agricultura ao sul do Sáhara, pelo menos tal como a conhecemos hoje.

Este facto não deixa de ser bastante curioso do ponto de vista histórico e cultural. Tenho constatado que na maior parte das linguas da nossa zona, as terras
baixas (bolanhas)onde se produz o arroz são designadas por Farôh, (não seria Faraó?) que na origem (mitologia mandinga, soninqué, bambara, etc.) designava o Deus da água e da fertilidade.
Bem, acho que já estou a especular demais...

Um grande abraço para todos,


Cherno Baldé

Cherno disse...

Em complemento ao meu comentário agora publicado, pelos editores, em forma de Post, quero acrescentar que este modelo social tradicional que descrevi e que caracteriza na generalidade todos os povos africanos tem os seus detractores na figura de muitos africanistas, pesquisadores sociais eurocentristas.
Dentre os aspectos pouco convenientes (males) que lhe são imputados (criticados) em muitas obras que encontrei, destaco os seguintes:
- O monopolio absoluto dos mais velhos sobre os bens produzidos pela colectividade;
- e, o facto de que os mais velhos aproveitavam-se da sua posição social para ficar com as bajudas mais bonitas da tabanca.

A proposito, gostaria de saber da opinião dos camaradas sobre a questão seguinte:
Se, porventura, fossem vocês a ocupar aquela posição privilegiada na tabanca, como é que procederiam? Deixavam as bajudas de mama firme para os mais novos?

ÉHÉHÉHÉ!!!!!!!!!!!!!!!!

Cherno Baldé

Fernando Gouveia disse...

Caro Cherno:

Não lhe posso adiantar mais nada sobre o "féfé" do Museu Britânico. Concordo que, provavelmente, terá sido encontrado no Egipto ou no Sudão. Quando há trinta e muitos anos fui a Londres, ainda não tinha preocupações destas. Só tirei a foto porque tinha trazido um semelhante da Guiné.

Um abraço.
Fernando Gouveia

Anónimo disse...

Caro Cherno,

As ferramentas que se encontram no museu Britânico são de Tebas (Egito).

Aqui está o link:

http://www.britishmuseum.org/explore/highlights/highlight_objects/aes/w/wooden_hoe.aspx

João Almeida

Anónimo disse...

Caro Cherno:
Á pergunta que formulas sobre quem escolheria se estivesse no lugar do idoso, a resposta, por tão óbvia, é prescindível. Mas essa não é a questão ( no meu ponto de vista), mas sim o facto de às jovens ( tanto quanto julgo saber) não lhes ser permitido igual direito. Ora, na Europa, também foi assim ou muito parecido. Podemos percorrer caminhos diferentes a diferentes velocidades mas, julgo saber, que a meta é a igualdade de direitos.
Sem eurocentrismo que repudio.

Um abraço.
Carvalho de Mampatá.

Cherno disse...

Caros amigos,

Obrigado pela informação e pelo site do museu.
Se existir de facto alguma relação entre os dois instrumentos no tempo histórico, poderá ser mais uma pequena mas importante pista que vai no sentido da confirmação das teses do ciêntista Senegalés Cheik Anta Diop (1923-1986) que dedicou toda a sua vida e seu talento intelectual na pesquisa para demonstrar as raizes africanas (negritude) do Egipto antigo, que durante muito tempo tentaram escamotear apresentando a Africa como um continente sem passado histórico.

Abraços,

Cherno Baldé