quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7605: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (40): Na Kontra Ka Kontra: 4.º episódio




1. Quarto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 12 de Janeiro de 2011:



NA KONTRA
KA KONTRA


 4.º EPISÓDIO

Continuam a inspecção, tendo o Alferes Magalhães manifestado interesse em ver a zona da fonte, tanto mais que a água que tinham recolhido na passagem pela tabanca de Umaro Cossé, era branca, parecia leite ou cal de pintar paredes. Descem a pequena encosta desembocando numa zona ensombrada onde mulheres lavam roupa. Por se ter passado duma zona com muita luz para a obscuridade o nosso Alferes tem alguma dificuldade em distinguir todos os vultos presentes. Porém um sobressai de imediato pelo seu porte altivo. Rapidamente os olhos do Alferes, forçados pelo desejo incontido, se adaptaram àquela luz difusa não precisando de antes ter fechado um olho como tinha aprendido na instrução no Quartel do Convento de Mafra. O que tinha à frente dele reportou-o por momentos ao tempo em que, na Escola de Belas Artes do Porto, tinha estudado a história da Grécia antiga e a perfeição das suas mulheres representadas na profusa estatuária da época.

Uma visão que fez o Alferes Magalhães recordar as mulheres da Grécia antiga.

Bajuda, sim, esta tinha que ser bajuda. Tomava banho. Como era costume mantinha só os panos de baixo. Bastava a parte superior do corpo, qual sereia, para enfeitiçar um marinheiro, neste caso um guerreiro. Antes que fosse tarde e se desvanecesse aquela imagem surreal o Alferes Magalhães sacou da sua Fujica e sem sequer pedir permissão, como era seu costume, dispara não em todas as direcções mas numa só. O João aproveita o momento e vai dizendo:

- Esta é a Asmau, filha do Adramane, Chefe de Tabanca.

O Alferes, absorto continua a contemplação. Nova interrupção do João:

- Não queria ver a nascente de água?

Como que sonâmbulo inteirou-se das condições, verificando rapidamente que com uma pequena escavação se conseguiriam encher os garrafões de pé. Sobem à tabanca e o nosso Alferes desculpando-se com afazeres relacionados com a sua acomodação retira-se, altamente atarantado, para a morança que lhe tinha sido destinada. (Trinta anos mais tarde, com uma qualquer máquina digital teria a possibilidade de sozinho, na morança, rever aquele corpo esbelto mas atlético, de olhar altivo e sorriso algo enigmático, qual figura de Da Vinci).

Totalmente ausente, só deu por si quando o Dionildo, o soldado que passaria a fazer de seu ordenança, o veio chamar para o almoço, bem à sua maneira:

- F… meu Alferes, não quer vir comer o c… do almoço?

Como que acorda. Passa um pouco de água pela cara e junta-se aos seus sete camaradas para comerem a primeira refeição, sobre os joelhos, à sombra de uma morança. A fome já era muita mas só por um lapso de tempo deixou de pensar no que agora já lhe parecia ter sido uma simples miragem.


O primeiro almoço em Madina Xaquili. O Dionildo que se viria a revelar totalmente marado, é o único sentado no chão, ao sol.

A seguir à refeição, nesse dia de princípio da época das chuvas, o calor húmido é insuportável. Todos se retiram para as moranças que lhe haviam destinado, para dormir a sesta. O nosso Alferes vai para a sua. Deita-se nu no colchão de espuma que tinha trazido e que colocara sobre a cama de esteira existente na morança, deixada pela família que antes lá vivera. Como que passou pelas brasas, mas não passou. Não podia passar. O seu estado de excitação era tal que se lembrou da esposa do Major Saraiva, em Báfata, que por um dia ter mascado cola andou três dias sem dormir. Tem a maior erecção da sua vida. Tinha ouvido ao médico que o priapismo em forma aguda até pode ser perigoso. Não era hora de haver lavadeiras na fonte. Aproveita o facto e vai tomar um banho de água fria da nascente. Fica mais calmo, no entanto precisa agora de tornar a ver aquela deusa.

A guerra não ia parar e o Alferes Magalhães a meio da tarde tem que reunir os homens, metropolitanos e africanos e, sempre de acordo com o Comandante da Milícia, João Sanhá, distribui as tarefas de cada grupo, para o dia seguinte. Prioritária é a abertura de dois abrigos, um para o morteiro, só o cano e 16 granadas (ah se o PAIGC soubesse disto…) e outro para a pouca população civil ainda existente na tabanca. Penduram-se as primeiras garrafas de cerveja vazias no arame farpado da vedação e ainda nesse fim de tarde se começam a destruir os enormes morros de baga-baga da zona desmatada, refúgio perfeito para os guerrilheiros durante um ataque. Aos metropolitanos são dadas instruções específicas, tal como: Nada de sexo, pois praticamente só havia mulheres grandes. Teriam que ser criativos, e foram, como mais tarde se veio a verificar. Como ainda não havia latrinas, quando fossem à mata teriam que levar um camarada armado, como segurança.

Chega a hora do jantar e a refeição já ia ser servida à mesa, então improvisada. Aqui, o Alferes Magalhães, devido ao seu estado de alma, a pairar nos ares como jagudi à procura de comida, comete uma imprudência que lhe podia ter ficado muito cara, no mínimo impedindo-o que à noite, no “bentem”, pudesse conduzir a conversa no sentido de obter informações sobre o fanado praticado na tabanca, sobre a idade de casar das bajudas, sobre cabaços e duma forma geral sobre tudo que o aproximasse da bajuda Asmau. Obsessão, efeitos do clima, ou muito simplesmente amor à primeira vista?

Fim deste episódio

Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7598: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (39): Na Kontra Ka Kontra: 3.º episódio

4 comentários:

Fernando Gouveia disse...

Conforme referido no 1º comentário do 1º Episódio:

Glossário do 4º episódio:

BAGA-BAGA: Formiga que faz morros de terra endurecida até 2/3 m de altura.
CABAÇO: Hímen.
FANADO: Festa, e também o acto, da ablação do clítoris às bajudas ou do perpúcio aos rapazes.
JAGUDI: Abutre muito comum na Guiné.

Um abraço a todos e até amanhã.
Fernando Gouveia.

Anónimo disse...

Caro Fernando Gouveia

Em finais de 1970 foi feita uma operação, a partir de Canjadude, da qual eu fiz parte. As viaturas transportaram-nos a cerca de 5km, até apearmos, na direcção de Cantacunda.
No segundo dia rumamos para Madina Xaquili, onde estivemos a descansar, a comer a ração de combate, eu apanhei lá e comi laranjas, e um outro fruto que não sei o nome, mas a ideia que tenho desse fruto é que era amarelado, do género da nêspera.

Portanto, eu até devo ter alguma foto de Madina Xaquili. Onde eu estive era uma tabanca abandonada e tudo destruído, só existiam alguns suportes, aqui e ali, daquilo que em tempos foi chão de tabancas!
Será que a acção da tua narrativa é muito mais pretérita do que a minha estadia lá?
Se me puderes elucidar fico agradecido.

Um abraço

Anónimo disse...

Desculpem.

O comentário anterior fui eu que o fiz.

José Corceiro

Fernando Gouveia disse...

José Corceiro:

Muito te poderia dizer sobre Madina Xaquili.

Lê com atenção a estória pois as datas são reais. O "Alferes Magalhães" foi para lá em Junho de 1969, quando a tabanca, como é dito na estória, ainda estava perfeita. Como é dito no PREÂMBULO no princípio da estória quase tudo é real. Na estória serâo descritas as fases de destruição da tabanca e tudo mais.

Um abraço

Fernando Gouveia