terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7590: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (13): Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,
Peço encarecidamente a quem esteve na Ponta do Inglês que ajude a descodificar as imagens que se recolheram e que contribuam para se reconstituir as localizações dos quartéis da Ponta do Inglês.
Muito pouco resta, convinha zelar pelos últimos vestígios desta memória.
Permito-me recordar que pedi ajuda a quem no Xitole viveu (e não foram poucos) para explicar o que o Tangomau viu sem compreender, o Xitole que ainda está a tempo de uma intervenção para as gerações vindouras, ninguém acrescentou uma sílaba, incompreensivelmente.
O passeio foi paradisíaco, é uma beleza conflituante, contraditória: tanto deslumbramento numa autêntica estrada da morte.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (13)

Beja Santos

Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês

1. Toda a região do Xime exerceu e exerce fascínio no Tangomau. E por razões facilmente explicáveis: em Setembro de 1968, foi ali que fez a sua primeira operação, o objectivo era chegar a uma base bem pouco acessível denominada Buruntoni, tudo correu mal desde guia que se desorientou até um pesado bombardeamento sobre Mansambo, isto quando era o efectivo que ali se encontrava na operação; Ponta Varela, como já foi dito, soava, em questão de flagelações com RPG2 e RPG7 em Mato de Cão, e por diversas vezes; depois, a partir de Março, e com alguma regularidade, o Tangomau e os seus homens ali palmilharam a zona em várias direcções; e, por último, a última operação foi um patrulhamento que começou na região de Moricanhe, passou por Chicamiel, Gidamo e culminou numa emboscada entre Madina Colhido e Gundaguê Beafada, com resultados, uma mulher gravemente ferida e a plena convicção de que a população afecta ao PAIGC se abastecia no próprio Xime tabanca. Foi ali, de 1962 para 1963, que se abriu a segunda frente, Domingos Ramos vivia em Tubacutà, dentro da mata do Fiofioli; chegaram ao arrojo de colocar em Gundaguê Beafada um dístico “Aqui começa o território livre da República da Guiné, isto em 1963. A despeito do que era propalado pela propaganda, o controlo do Xime e Bissari, até ao Corubal, era exercido pelas forças comandadas por Domingos Ramos e pelos líderes que lhe sucederam. O Xime era um eixo estratégico e daí a tentativa, que se prolongou por alguns anos, de ter aberta a via até à Ponta do Inglês, na desembocadura do Corubal, em frente a Quinara. Esta estrada irá ser um calvário, entre minas e emboscadas, ali se verteu sangue e o destacamento da Ponta do Inglês tornou-se um inferno. O que o Tangomau conhecia era a região de Ponta Varela, o Poindom, até à Ponta do Inglês e respectivos acessos. A população cultivava as bolanhas, fundamentais para o aprovisionamento, era terras úberes; a navegação no Corubal fora tornada impraticável, de modo que qualquer saída do Xime e qualquer detecção significava confronto a prazo. O Tangomau, sempre que lhe coube decidir, resolveu as questões com protecção dos obuses e aproximações e retiradas em ziguezague, tudo dava trabalho mas tinha a compensação de não se chegar com mortos e feridos. É nesta estrada, junto ao porto, que Lânsana Sori inflecte para a esquerda, passa junto da tabanca, há acenos e depois o romrom dispara em direcção a Madina, a antiga Madina colhido, um pouco à direita começa a estrada que vai para Ponta Varela, segue-se em frente, é uma estrada enorme, descurada, com belas sombras, Lânsana vai concentrado nas lamas, nos riscos de se atascar nos lodos das poças, nas bermas irregulares.



2. Curiosamente, a região não é muito povoada, o que interessa é que os palmeirais são frondosos, amistosas as sombras dos cajueiros, entrelaçados pelo caminho, daí os viajantes usufruírem uma sombra temporária. E depois de muito viajar chega-se a Gã Garneis, ou coisa que o valha, terá vivido ali um ponteiro de nome Ernesto, daí a corruptela. Há bifurcações, cumprimenta-se o chefe de tabanca, promete-se no regresso apresentar cumprimentos. A partir daqui a paisagem desafoga-se, sente-se a bolanha enorme e depois avista-se o mercúrio líquido do Corubal. Fazem-se perguntas, os viajantes são encaminhados para o termo da estrada. Agora não há que enganar, avista-se uma casa em ruínas e construções recentes, desfruta-se a magia da Península de Quinara, uma mancha de verde azeitona, desta orla do rio. O Tangomau emudeceu, é tudo muito belo, quem vê imagens não pode percepcionar os horrores que aqui se viveram, o sangue derramado, o trabalho sem esperança.



3. Pouco resta da casa de Inglês Lopes, ao que parece era este o dono da Ponta. Convirá que aqui se esclareça, entre os interessados (combatentes que aqui moraram) qual era exactamente a localização deste quartel cuja existência se poderá situar entre 1964 e 1966. Aqui esteve um pelotão destacado da companhia do Xime, mais um pelotão de milícias. Aqui iniciaram a vida militar amigos como Fodé Dahaba e Mamadu Djau, eram quase crianças. Manda a curiosidade que se vá primeiro junto da casa que precedeu o quartel, como é o caso em apreço. O descalabro salta à vista, não precisa de legendas. Ali perto celebra-se uma cerimónia, o Tangomau aproxima-se e apresenta-se, um ébrio declarado pretende insultá-lo, mostrando mesmo o seu cartão de alferes. Outras pessoas fazem sinais, pedem condescendência, e alguém vem mesmo propor os seus serviços, vai guiar os viajantes e mostrar-lhes o primitivo quartel, ali à beira rio.



4. O destacamento vinha até junto à água, havia um pontão para receber as embarcações, tudo desapareceu. Para quem já viu as magras estacas dos portos do Xime e Bambadinca, deplora-se e até se acredita que é verdade. A vista é extasiante, o que mais perturba o Tangomau é imaginar que se viveu naquele inferno e com aquele panorama edénico, pelo menos o que se avista em direcção a Quinara, a escassos quilómetros.



5. Os guias não se cansam de reafirmar que desapareceram abrigos, há ainda ali umas estacas à frente e que são visíveis no pontão que existiu do outro lado do quartel, já com vista para o Geba, lá ao longe. O quartel teve de ser abandonado e transferido para o que é hoje Gã Garneis, ir-se-á mais tarde visitar uma árvore de copa frondosa, ali mesmo ao pé havia um abrigo. Mamadu Djau irá confirmar as flagelações sistemáticas, o abandono da estrada depois do calvário das colunas, a quase operação que era ir buscar os abastecimentos ao rio, com protecção das lanchas da armada. O passeio prossegue, aceita-se que estejam ali alguns restos do antigo pontão, o mais importante é o esplendor do que aqui se avista, pois, algumas centenas de metros mais abaixo o Corubal enfia-se no Geba. Só para ter esta panorâmica, pisando o solo onde tanta gente sofreu anos a fio, valeu a pena confirmar o que se vira em marcha acelerada, durante as operações.



6. É por estas e por outras que se tem tudo a perder quando não se domina completamente o crioulo. Os guias chamavam a atenção para dois poilões que pareciam tatuados, ao princípio o Tangomau até pensou que os antigos militares deixaram inscrições, uma memória perpetuada. É nisto que se faz a aproximação e se vêem as marcas das balas, sabe-se lá se de rajadas ou de tiro-a-tiro. O que interessa é que ficaram lá, entre esculturas. É impressionante, os próprios guias dizem que a população aqui vem regularmente relembrar o que faz uma guerra, ver as marcas que a natureza não pode absorver, as árvores não gritam, tornam-se esculturas vivas, memoriais de sofrimentos ignorados. Se os habitantes de cá respeitam estes pavores da guerra, o que é que nos falta para iludirmos que devemos alguma homenagem a quem tanto aqui penou, mesmo por escassos anos?



7. Do primitivo quartel da Ponta do Inglês nada mais há a ver, aqui se tem construído depois da independência com alguma profusão, há escola e instalações que dão suporte às fainas agrícolas. Não se vêem sinais de embarcações. E não fossem já mais de 4 horas e o Tangomau ali ficaria à conversa, a apurar a culturas e as condições de vida. Fazem-se alguns escassos quilómetros de regresso até Gã Garneis, fixa-se a legenda, estamos no centro de um antigo quartel, apresentam-se pessoas, o Tangomau conversa com Jubalo Jau, que fora prisioneiro na luta, capturado numa operação entre o Buruntoni e a Ponta do Inglês. Não há rancores no que se declara e como se declara. É verdade que há muitos silêncios e medos, há temores de parte a parte mas é bom conversar com alguém que soube perdoar e continuar.



8. Quis-se saber mais sobre Gã Garneis, indicaram o professor, ao que parece ele até tem um livro com todo o historial anotado. Infelizmente não estava, indicaram Bambadinca e até deram morada. No regresso, houve a preocupação de o procurar. Mas não se conseguiu desencantar esse explicador da história de Gã Garneis, antes e depois da guerra. Conversou-se, explicou-se ao que se vinha, aqui o acolhimento foi mais do que amistoso. E foi exactamente aqui que ficou um travo amargo com as informações prestadas: de motocicleta pode-se ir até ao Baio e ao Buruntoni, ou, na direcção oposta, até Tubacutá ou o Fiofioli. Tudo questão para se vaguear entre 4 a 6 horas. Que pena, é irremediavelmente tarde. Ainda há uma tentação, de ficar mais um dia, mas é uma aritmética tão enovelada que o Tangomau liminarmente abandona tais devaneios. Conversa um pouco mais, capta a imagem de Gã Garneis, ala morena que se faz tarde, ao menos que se percorra aquela estrada que tantas vidas custaram sentindo a luz dourada, o Poindom sempre tão prazenteiro do lado esquerdo e o temível arvoredo quase sem capim na berma direita. Coisa estranha, o Tangomau até sentiu calafrios, tudo tão belo e tão ameno nessa antiga estrada da morte.



9. Regressados ao Xime, Lânsana Sori reivindica uma pausa. Do acervo fotográfico desta viagem, sem dúvida alguma que este instantâneo enche de satisfação quem o captou, parece inventado ou forjado, parece que se pediu a Lânsana Sori que fizesse um número de circo, isto é, é totalmente inimaginável dormitar, fazer uma soneca esticado ao comprido em cima de duas rodas. Acreditem ou não, foi o que aconteceu. Mais uma razão para se guardar admiração por um motociclista prodigioso e equilibrista.



10. Ninguém ignora que há elefantes brancos na Guiné, construções grandiosas e sem préstimo, projectos faraónicos que serviram para sacar financiamentos e que não trouxeram um grama de desenvolvimento. O que se está a ver, e segundo informaram o Tangomau, é um majestoso silo da mancarra que seria descascada no Cumeré onde o Tangomau em 1991 viu uma construção gigantesca que depois terá sido vendida para a Índia, a preço de saldo. São muitos os autores que se interrogam sobre os projectos que não levam a ponto nenhum. Em Bissau, o Tangomau comprou no INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa um livro sobre a intervenção rural onde uma autoridade, Flavien Fafali Koudawo, escreve coisas como esta: “Ao tomarem as rédeas da Guiné-Bissau independente, as novas autoridades assumiram-se portadoras de um modelo de desenvolvimento. Na ausência de uma visão clara deste modelo, e dado a inexistência de um quadro de articulação coerente das vias e meios para alcançar metas bem planeadas, o referido modelo ficou apenas um objectivo vislumbrado. Nem as orientações do terceiro congresso do PAIGC que pretenderam traçar em 1977 o quadro da reconstrução nacional, nem o primeiro plano quadrienal de desenvolvimento económico e social (1983 – 1986) conseguiram consubstanciar um verdadeiro projecto nacional, no sentido de uma projecção num futuro desejado, conscientemente escolhido e claramente delineado. Na ausência deste projecto, o modelo afogou-se na ineficaz heterogeneidade duma miríade de projectos que ilustraram sobejamente que de boas intenções o inferno está cheio”. Não é nada agradável terminar assim o dia depois de percorrer este território onde os guerrilheiros do PAIGC se impuseram do princípio ao fim, como se estivesses absolutamente conscientes do vigor da sua causa. Aqui, no Xime, avista-se esta construção faraónica que nunca foi usada, à sua volta há trabalhadores a cultivarem como há milhares de anos, no delta do Nilo. É uma visão da ficção científica ou de como em África há que repensar o desenvolvimento e o bem comum. E fiquemo-nos por aqui, foi um dia a valer, já nem haverá tempo de ver o pôr-do-sol no Bairro Joli. E, no regresso, ainda há uma paragem comovente em Amedalai que se contará no relato de domingo de manhã, antes do Tangomau ir às compras para a grande festa, o grande reencontro com todos quantos puderam vir.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7584: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (12): De Maná até Madina de Gambiel, depois Ponta do Inglês

2 comentários:

CORREIA NUNES disse...

Camarigo Mario,o aquartelamento da Ponta do Ingles,estava operacional em Abril de 1968,quando ai nos deslocamos pra montar o grupo gerador,ficava junto ao rio e nao havia cais,o unimogue avancou rio dentro ate da LDP de onde se desca-
rregou o gerados a pulso,
A iluminacao era feita com garrafa
de cerveja com uma mexa,cheia de combustivel,e as havia a servir de
alarme,havia muitos macacos na zona
que causavam problemas,ao agarrar
o arame farpado da zona de proteccao,foi uma permanencia de horas por causa das mares.
Jose Nunes
BENG 447
BRA 68/70

Torcato Mendonca disse...

###...1. Toda a região do Xime exerceu e exerce fascínio no Tangomau. E por razões facilmente explicáveis: em Setembro de 1968, foi ali que fez a sua primeira operação, o objectivo era chegar a uma base bem pouco acessível denominada Buruntoni, tudo correu mal desde guia que se desorientou até um pesado bombardeamento sobre Mansambo, isto quando era o efectivo que ali se encontrava na operação; Ponta Varela...##

Mário há um erro de datas. Parece-me.
Não é Setembro.
A 13 de OUTUBRO a 2339 com 3 Grupos saiu de Mansambo, recebeu o Pel.Caç52, 1 Gr da 2401 e seguiu, em viaturas até Amedalai.A partir daí vai só para Taibatá. Os Grupos recebidos em Bambadinca seguem para o Xime e formam outro Agrupamento, com o Pel.Caç53, Cart 1746 e o 4ºPel Art do Xime.
Parte dos militares ficam no Xime e outra segue para a operação. Dois Agrupamentos o Vosso a norte; o Nosso a Sul.Foi a operação "Meia Onça". Houve problemas, más comunicações, maus guias e de Norte nada se sabia...o PCV mandou-nos regressar a Taibatá e depois a Bambadinca.Abortou. Briefing e, como Mansambo fora atacacado ás 12H30, seguimos, coluna auto, para lá rápido.
De relevante só a data - 13 de Outubro de 68. O resto foi aborrecido e em Mansambo podia ter sido mau. Eles sabiam que o quartel estava a "meio-gás".Quando passamos por Amedalai o estafeta IN foi célere até Baio/Burontoni...Malhas que o Império teceu. Abraço T.