terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7589: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (38): Na Kontra Ka Kontra: 2.º episódio




1. Segundo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2011:



NA KONTRA
KA KONTRA


 2.º EPISÓDIO

Sensivelmente a meio do percurso, já com a descontracção do regresso, um elemento da coluna acciona um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provoca ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros é o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.

Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães, com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco, pergunta ao João Sanhá:

- Quem foi atingido?

1953, Recuam-se 16 anos. Finais da época seca. Madina Xaquili, uma tabanca recôndita nas profundezas do Cossé, cheia de beleza e poesia, sobretudo quando à noite no “bentem” debaixo do mangueiro no centro da tabanca o jovem futa-fula Braima tangia a sua guitarra feita com metade de uma cabacinha, pele de macaco e três cordas de fio de pesca. A tabanca era constituída por umas vinte moranças, implantadas num terreno um pouco inclinado. Ao fundo um pequeno carreiro conduzia à fonte onde brotava, mesmo na época seca, uma água cristalina.


A tabanca de Madina Xaquili em 1953. No centro debaixo de um grande mangueiro situava-se o “bentem”.

Era também aí que as mulheres lavavam a roupa enquanto os seus homens preparavam, junto da parte alta da tabanca, as lavras de mancarra, milho da terra, mandioca ou fundo, conforme as épocas. Seguindo a linha de água que se formava no local da nascente, ia-se ter a uma pequena bolanha para o cultivo de arroz que tinha que dar para o ano inteiro, pois na época das chuvas ficava isolada de Galomaro, a tabanca mais importante, a meio caminho de Bafata. O arroz era guardado numa espécie de pequenas palhotas sobrelevadas do chão, principalmente por causa dos ratos. Ladeando a bolanha, um palmeiral onde os que não eram muçulmanos podiam obter vinho de palma. Junto das lavadeiras, miúdos baloiçavam-se em lianas pendentes de grandes árvores em redor, bissilões, pau sangue, embondeiros com os seus frutos que mais parecem ratos pendurados pelo rabo e que os miúdos apanham quando os primeiros vendavais da época das chuvas os deitam abaixo, chupando a parte que envolve as sementes.

Era um fim de tarde igual a todos os outros e eis senão quando, a correr encosta abaixo, chega à zona das lavadeiras uma bajuda dos seus onze anos, seios a despontar, chamando por duas mulheres grandes.

– Vão depressa que a Binta, mulher do Adramane, está a parir.

Agora encosta acima as duas mulheres, feitas parteiras, lá foram assistir no parto, de que nasceria uma menina de pele mais branca que o habitual. Todas as crianças africanas nascem quase brancas e só escurecem depois com exposição à luz solar, com a intervenção da melamina, mas algumas crianças fulas nascem ainda mais brancas.

À nené viria a ser dado o nome de Asmau


A Binta e sua filha Asmau.

1969, Novamente. Mês de Junho. Nos princípios deste mês, na sequência do abandono de Madina do Boé pelas tropas portuguesas em 5/6 de Fevereiro e da ineficácia da operação “Lança Afiada” que durante 10 dias bateu toda a zona de implantação do PAIGC a norte do rio Corubal, o Comandante Chefe das tropas portuguesas, General António de Spínola, num acto de algum desespero e para que as populações da periferia da zona habitada do Cossé não se aproximassem de Bafata abandonando as tabancas, ordena ao Comando de Agrupamento da Zona Leste, sediado em Bafata, o envio de grupos de militares, enquadrados por oficiais que se considerem disponíveis. Pretendia-se assim impedir que as populações civis das tabancas em autodefesa dessa periferia do Cossé, as abandonassem. É neste contexto que o Alferes Magalhães segue para a tabanca de Madina Xaquili.

O Alferes Magalhães tem nesta altura cerca de um ano de comissão, metade do tempo total previsto. Bafata é nesse tempo o centro de uma zona de paz. A vida decorre calma mas um tanto ou quanto monótona. Grande parte do tempo livre é passado no quartel onde o nosso Alferes se isolava no seu quarto, a ler e ouvir música, saindo para jogar às cartas a dinheiro, perdendo invariavelmente. Sempre que isso acontece, pensa no ditado: Azar ao jogo, sorte no amor. Só que esse amor tardava em aparecer. Havia porém umas saídas obrigatórias: Ir ao cinema quando havia.

Sempre que ia ver um filme trocava algumas impressões com o porteiro Ibraim. Ibraim como o filho do profeta. Este, em determinada altura, diz-lhe que tornando-se sócio do Sporting Club de Bafata os bilhetes para o cinema lhe ficam mais baratos, pois as sessões tinham lugar no ringue de patinagem do Sporting Club. Passam a conviver com mais assiduidade. Muitas vezes se vê o Alferes com o Ibraim na esplanada do Restaurante Transmontana, o Alferes bebendo uma “meia cerveja” enquanto o Ibraim, muçulmano, toma uma “fanta”. Tornam-se verdadeiros amigos. Muita coisa o Alferes fica a saber sobre os hábitos dos africanos, que duma maneira geral são bastante fechados. O Ibraim conta-lhe episódios passados com as suas namoradas e o Alferes imagina o dia em que “sairá” com uma bajuda. Chega a levá-lo a um baile nativo na tabanca da Ponte Nova, onde o nosso Alferes, jogador como é, se sente como uma carta fora do baralho. A casa de “bajudas” existente na tabanca da Rocha, perto do início da estrada para Bambadinca também não o motiva, pelo que os seus estados depressivos se sucedem. A “lerpa” é o seu refúgio.

A ordem para seguir para Madina Xaquili foi entendida pelo Alferes Magalhães como um bom presságio. Ia mudar de ares. Contrariamente às bajudas da cidade, talvez as das tabancas fossem mais “acessíveis”.

Fim deste episódio

Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P7583: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (37): Na Kontra Ka Contra: 1.º episódio

1 comentário:

Fernando Gouveia disse...

Conforme referido no 1º comentário do 1º Episódio:

Glossário do 2º episódio:

BAJUDA: – Rapariga, mulher antes de casar.
MULHER GRANDE: – Mulher casada ou que já o foi.
MEIA CERVEJA: – Garrafa de cerveja do tamanho das actuais.
LERPA: – Jogo de cartas a dinheiro onde se pode ganhar ou perder muito.

Um abraço a todos e até amanhã.
Fernando Gouveia.