segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7583: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (37): Na Kontra Ka Contra: 1.º episódio

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2011:

Caro Carlos:
Embora me esteja a dirigir a ti, o que tenho para dizer é mais para todos os outros camaradas, pois tu já conheces os antecedentes da possível publicação da estória NA KONTRA KA KONTRA.

Conforme o combinado, a saga que em princípio irá ser publicada por episódios, diariamente de segunda a sexta-feira, resultou da minha recente visita à Guiné-Bissau em Março de 2010. Logo no primeiro dia, quando se estava a almoçar em Bissau, tive conhecimento, por intermédio do nosso camarada António Pimentel, que um empresário guineense e antigo combatente, estava interessado em produzir a primeira telenovela guineense. Precisava pois de um argumento.

Passados uns dias, depois de amadurecer a ideia, noutro encontro com esse empresário tive a oportunidade de lhe dizer que já tinha congeminado uma estória, baseada em casos reais, que poderia muito bem, em meu entender, servir como argumento para uma telenovela.

Acrescentei, que independentemente da sua aceitação, logo que chegasse a Portugal começaria a escrever esse argumento. Foi o que aconteceu.

Dada a finalidade em questão, o enredo é dividido em episódios começando sempre cada um com a última parte do anterior. Pela mesma razão, por vezes há repetições de partes já descritas.

Embora se refira num preâmbulo, no 1.º Episódio, que por mais rocambolescos que pareçam os factos descritos, efectivamente foram vividos por personagens reais, salvaguardando duas passagens ficcionadas, que foram necessárias para “compor” o enredo.

Inicialmente a intenção da estória era servir de base a uma telenovela pelo que estive à espera da possível aprovação do produtor. No entanto, depois de a reler, tomei plena consciência que “NA KONTRA KA KONTRA” não seria uma novela adequada para passar na Guiné-Bissau. É neste contexto que, para já, avanço com a sua publicação no blogue.

Tem-se publicado muita coisa no blogue: Histórias da guerra e outras que nada têm a ver com ela e muito menos com a Guiné. Apesar de esta estória ter muito a ver com a guerra e com a Guiné, todos os camaradas podem, através de comentários, manifestar o seu agrado ou desagrado. É pois uma nova abordagem no Blogue Luís Graça, em moldes que considero diferentes.

A terminar direi que o final da estória não será da minha autoria mas será de acordo com cada leitor…

Um abraço a todos.
Fernando Gouveia


NA KONTRA
KA KONTRA

1.º EPISÓDIO:

1969, princípios de Agosto, em plena guerra colonial. Um forte rebentamento faz estremecer toda a picada bem como os corpos dos homens de uma coluna apeada, de tropas portuguesas, comandada pelo Alferes Miliciano Magalhães Faria. Uma nuvem em cogumelo, de fumo e pó avermelhado, eleva-se nos ares, e é vista também da tabanca de Madina Xaquili onde o Alferes Magalhães está sediado. Da mesma forma faz estremecer os corações de todos os habitantes da tabanca, em especial das mulheres dos milícias que integram a coluna.


Visão aterradora a partir de Madina Xaquili, especialmente para as mulheres dos milícias que integram a coluna.

INTRÓITO:
Por mais rocambolescos que pareçam os factos que fazem parte do seriado que agora tem início e que em grande parte é passado na actual Guiné-Bissau, foram realmente vividos pelas personagens, só que, para não haver quaisquer constrangimentos por parte de qualquer interveniente, se optou por ficcionar um pouco a saga, passando-se o mesmo com as fotografias. Se se trocarem devidamente alguns nomes de pessoas, de locais e fotografias a estória passa a ser 98% verdadeira. Embora nos primeiros episódios, pareça tratar-se de uma estória da guerra colonial, com o seu desenvolvimento vai tornar-se numa sucessão de encontros e desencontros (NA KONTRA KA KONTRA) amorosos, e não só. A abordagem do tema guerra tornava-se inevitável, por motivos óbvios.

PRINCIPAIS INTERVENIENTES:
Alferes Magalhães Faria … principal personagem e que vive a estória de princípio ao fim.
Asmau … personagem feminina que vive a estória desde o seu nascimento até ao fim, com eclipses temporais.
Dionildo … “ordenança” do Alferes Magalhães que vai aparecendo e desaparecendo esporadicamente ao longo da estória.
Adramane ... chefe da tabanca de Madina Xaquili e pai da Asmau.
Binta … mãe de Asmau.
Ibraim … porteiro do Cinema de Bafata que protagoniza, no final e a título póstumo, um episódio surpreendente.
João Sanhá … Alferes Comandante da Milícia da tabanca de Madina Xaquili.
Bobo … mulher do Milícia Sadjuma.
Sadjuma … Milícia que se ofereceu para ajudante de padeiro.
Braima … Milícia tocador de kora.
Kadidja … primeira mulher do Chefe da milícia João Sanhá.

Na noite anterior ao rebentamento da mina, o Alferes Magalhães de acordo com ordens superiores, tinha combinado com o comandante do pelotão de milícia, João Sanhá, a ida no dia seguinte a Cantacunda, tabanca em auto-defesa, em operação de reabastecimento de munições.

Como sempre, esta conversa teve lugar no local habitual, com ambos sentados no “bentem”, grande estrado de entrançado de bambus, debaixo de um mangueiro bem no centro da tabanca. Não fossem as combinações guerreiras, o local de onde se vê o relampejar ao longe e se ouvem os pios de som metálico dos morcegos frutívoros nos mangueiros, pareceria o centro do paraíso.

Neste dia, bem cedo, porque se pretendia regressar a Madina Xaquili para o almoço, segue a coluna. Os cerca de oito quilómetros até Cantacunda são percorridos sem percalços. O itinerário é considerado seguro pois os guerrilheiros do PAIGC só tinham mostrado actividade para Sul, ou seja, para os lados da tabanca abandonada de Padada, do rio Corubal e de Madina do Boé, entretanto abandonada pelas tropas portuguesas e agora “santuário” do PAIGC.


A coluna de reabastecimento à tabanca em auto defesa de Cantacunda.

Está-se em plena época das chuvas. Embora manhã cedo, o calor húmido já se faz sentir. O que vale é a picada desenvolver-se em zona arborizada, ensombrando quase todo o percurso. Vêem-se os morros de baga-baga com os acrescentos que as formigas tinham construído durante a noite, de cor mais escura como que molhados. Grupos de pequenos macacos, em altas árvores, fazem um enorme alarido. Rolas e pássaros azuis esvoaçam à passagem da coluna. Um ambiente bem contrastante com o que se está a viver em Madina Xaquili.

Há cerca de dois meses ainda era uma tabanca, embora pequena, idêntica a tantas outras do Cossé. Tinha cerca de vinte e cinco moranças, com os seus “quartos de banho” exteriores delineados em “querintim”, esteiras de bambus entrançados. Como as coberturas dos abrigos se estavam a esboroar com as chuvas diárias, resolveu-se cobri-los com as coberturas de capim de muitas moranças, até porque já pouca população civil havia em Madina Xaquili. A tabanca apresentava-se agora esventrada e nada idílica.

Em Cantacunda entregam-se os cunhetes de munições, tiram-se as fotografias da praxe com o chefe da tabanca, iniciando-se de seguida o regresso a Madina Xaquili.

Na tabanca de Cantacunda a entregar os cunhetes de munições. O Alferes Magalhães sentado no “bentem” entre o Comandante da Milícia João Sanhá e o Chefe da tabanca.

Sensivelmente a meio do percurso, já com a descontracção do regresso, um elemento da coluna acciona um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provoca ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros é o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.

Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães, com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco, pergunta ao João Sanhá:

- Quem foi atingido?

Fim deste episódio

Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7091: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (36): Desastre de viação de um T6

7 comentários:

Fernando Gouveia disse...

Caros camaradas:

Fazia parte do final da estória que agora começou a ser postada, um glossário tendo por destinatários principalmente as pessoas não familiarizadas com a Guiné.

Como a estória é contada por episódios, isso não faz sentido pelo que em cada episódio colocarei um comentário com o glossário correspondente.

Glossário do 1º episódio:

NA: - Expressão afirmativa; sim (crioulo).
KA: - Expressão negativa; Não (crioulo).
KONTRA: - Encontro (crioulo).
NA KONTRA KA KONTRA: - Encontros e desencontros.
BENTEM: - Estrado de entrançado de bambus, lugar de reunião da tabanca:
MORANÇA: - Casa africana, normalmente palhota.
QUERINTM: - Entrançado de bambus.

Um abraço a todos e até amanhã.
Fernando Gouveia.

Anónimo disse...

Bom começo. Vale a pena continuares. Vai ter leitores assiduos. Força.
Carlos Pinheiro

Torcato Mendonca disse...

Olá Fernando Gouveia

Sê bem-vindo, num regresso que promete.
Agora é que a Guiné está mesmo entranhada.
Espero pela continuação dos escritos, do enredo e das belas fotos
Um forte abraço camarada do T

Anónimo disse...

Caro Gouveia:
Desde já me confesso muito grato pela prestimosa oferta que fazes a toda a nossa tabanca e, por aquilo que conhecemos de ti, tenho a certeza que vamos ter um trabalho de grande valor.

Carvalho de Mampatá

F Chapouto disse...

Amigo e camarada Fernando, tambem sou Fernando mas nao Gouveia quero dar-te os parabens pelos teus comentários sobre Bafatá mas este toca-me pois estive em Cantacunda em Março/Abril de 67, onde as picadas estreitas e o arvoredo de alto porte e a dificil bolanha para passar, pois estive muitas vezes sentado debaixo da alvore onde estao a entregar as muniçoes ao lado direito a camarata e ao lado esquerdo a tabanca
um grande abraço
Fernando Chapouto
Fur.Mili O E CCaç 1426 Guine 65/67

Luís Graça disse...

Mas que coragem, que determinação, que audácia, que talento!...

Parabéns, Fernando, vou acompanhar o teu guião... E por que não a versão paralela em "crioulo" ? Os guineenses melhoram o seu português e nós o nosso crioulo... Luís Graça

Anónimo disse...

Caro Fernando Gouveia

Já estava com saudades dos teus escritos e belas fotos, mas agora ser brindado com uma estória destas, a surpresa foi grande.

Cá estarei, religiosamente sentado no meu virtual bentem, aguardando os episódios seguintes.

Parabéns e grande abraço

Jorge Picado