sábado, 18 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7468: Os nossos camaradas guineenses (28): Sete mil antigos combatentes a necessitar de assistência social, segundo Baciro Djá, citado pela Lusa (Nelson Herbert)

1. Mensagem do Nelson Herbert:


Data: 18 de Dezembro de 2010 20:05

Assunto: Guineenses que lutaram ao lado de Portugal na guerra colonial

Finalmente uma ideia brilhante, ainda que para ser consubstanciada em proposta de lei, no parlamento guineense. Diga-se,  proposta que vem em linha de conta da tal problemática por mim levantada em tempos num poste e a propósito do impacto da africanização da guerra colonial... nas cíclicas crises de instabilidade vivida nas últimas três décadas, na Guiné Bissau...


Seria interessante que o texto em questão,  da Lusa, fosse publicado paralelamente ao texto final do acordo entre o governo da então província da Guiné e o PAIGC,  mais concretamente o capítulo referente ao "destino/enquadramento" a ser (ou que deveria ser)  dado aos guineenses que combateram nas fileiras da tropa portuguesa... 

Nunca é demais repescar a responsbailidade de um e outro lado nesse processo ! E a propósito da proposta do deputado guineense em questão, como será eventualmente encarada por Lisboa?

Deêm o destino que bem convier ao texto !

Mantenhas

Nelson Herbert

2. Notícia da Lusa,  de 7 do corrente [, reproduzida aqui com a devida vénia]:

Guiné-Bissau: Deputado defende assistência social para guineenses que lutaram ao lado de Portugal na guerra colonial


Bissau 07, dez (Lusa) – O deputado do PAIGC Baciro Djá  defendeu que o Estado da Guiné-Bissau devia incluir os guineenses que lutaram ao lado do exército português no pacote de assistência e reinserção social no âmbito da reforma da defesa.

Baciro Djá entende que "só desta forma se podia falar da justiça para todos os filhos da Guiné-Bissau".

"No fundo, o processo de reforma do setor de defesa e segurança é para criar um ambiente de paz e reconciliação na Guiné-Bissau. Naturalmente que as tropas que estiveram do lado de Portugal colonial, são guineenses", afirmou Baciro Djá.

O deputado diz ter esta posição pelo conhecimento que tem do programa de reforma do setor de defesa e segurança da Guiné-Bissau, dado ter sido o primeiro responsável pelo projeto, como anterior presidente do Instituto de Defesa Nacional.

"Se queremos na verdade viver em paz e fazer uma reconciliação e resolver problemas sociais na Guiné-Bissau, temos que ter em conta a situação desses cidadãos guineenses, porque hoje não se coloca a questão de índole político, coloca-se, isso sim, uma questão de natureza social, de justiça social", observou Baciro Djá.

Para o deputado, a questão dos guineenses que serviram no exército português, deve ser encarada como sendo da responsabilidade da Guiné-Bissau e de Portugal.

"É uma responsabilidade de Portugal, mas Portugal hoje é um parceiro e irmão da Guiné-Bissau, pelo que temos que buscar caminhos de entendimento para a resolução desta questão que nos diz respeito", sublinhou o parlamentar.

"Temos que buscar caminhos de convergência. Portugal tem sido solidário com a Guiné-Bissau e, nesta perspetiva, devemos colaborar, incluindo a questão dos ex-soldados guineenses do exército português no pacote da assistência social", frisou Baciro Djá, apontando que as pessoas a serem abrangidas não ultrapassam sete mil.
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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P7467: O Mural do Pai Natal da Tabanca Grande (2010) (8): Noite de Natal de 1969 em Bissau (Carlos Pinheiro)

O MURAL DO PAI NATAL DA TABANCA GRANDE 2010 (8)

1. Mensagem de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Boas Festas para toda a Tabanca e para todos os Tabanqueiros Camarigos.

Cá vai mais uma pequena "estória", verdadeira como as outras, que procura relatar a Noite de Natal de 1969 no Centro de Mensagens do STM no QG/Bissau.

Se achares por bem a sua publicação, claro que seria para mim muito agradável poder dar a recordar a alguns e a conhecer a muitos outros, um pormenor importante numa noite importante.

Se isto vier a ser publicado, agradeço o teu habitual aviso.

Um abraço
Carlos Pinheiro


Noite de Natal de 1969 em Bissau

Nesta época natalícia há recordações da Guerra que nos vêm mais à memória e o melhor, antes que seja tarde é passá-las para o papel.

Era véspera de Natal de 1969 e, se bem que a guerra por vezes abrandasse, nunca parava. Era talvez a noite do ano em que mais cautelas havia, em que quem estava de serviço estava mesmo operacional, bem desperto, com os olhos e os ouvidos bem abertos não fosse o diabo tecê-las. E havia sítios e posições que nunca podiam ser descuradas. Por exemplo, na minha guerra, no STM do QG de Bissau, que comunicava com o mato, com todos os COPs, todos os Agrupamentos, todos os Batalhões, todas as Companhias e até muita outras subunidades, através das quatro redes de rádio (grafia) existentes, que comunicava com a Metrópole, em grafia e em fonia e às vezes até por teleimpressor 1), com o Batalhão de Telegrafistas na Graça, onde era a Direcção Nacional do STM, que depois encaminhava as mensagens para os destinos, que comunicava com a Marinha e com a Força Aérea através de teleimpressor quando funcionava, ou, na sua falta, pelos estafetas de serviço que levavam as mensagens em mão, mediante protocolo, ao Oficial de Dia à Unidade destinatária, a nossa guerra nunca podia parar. E as antenas colocadas ali bem perto, na Antula, eram o suporte e a garantia de que as mensagens chegavam aos seus destinos.

Também tínhamos já nessa altura o fac-simile, equipamento arcaico e nada funcional mas, que mesmo assim, foi o precursor do fax que apareceu muitos anos depois, e que só servia para fazer explorações esporádicas com o BT em Lisboa. Chegámos a ter, só para vista, na altura da visita do Director da Arma de Transmissões à Guiné, um teleimpressor pretensamente “ligado” ao Batalhão de Mansoa. Mas isso são contas de outro rosário.

Com o nosso macaquito, companheiro de todas as noites.

Nessa noite de Natal, depois de um jantar mais que atribulado que chegou a meter uma marcha até à messe de oficiais e ao "palácio das confusões" (messe de sargentos) onde os senhores estavam numa grande janta e o pessoal de serviço sem direito a nada, (a CCS/QG, vá-se lá saber porquê, tinha-se esquecido de nós) depois deste pequeno incidente se ter resolvido, e sem que a nossa guerra tivesse alguma vez parado, nessa noite que devia ser de paz, recebemos uma mensagem zulu, (relâmpago), duma unidade do mato de que já não me recordo, e que tinha estado a ser flagelada, a pedir somente, vejam bem, um FRAPIL, porque no ataque tinham ficado sem gerador e dentro em pouco ficariam sem comunicações uma vez que as baterias de emergência não aguentariam muito.

Já era tarde, talvez mais de meia-noite, quando isto aconteceu. Eu era o Chefe de Turno do Centro de Mensagens, como fui tantas vezes. Foi só chamar-se o motorista, ainda me lembro, o Mamadu Djaló que mais tarde foi motorista de táxi na cidade, que estava encostado no Unimog e pormo-nos a caminho do Batalhão do Serviço de Material, ali à Bolola, e entregar a mensagem ao Oficial de Dia para providenciar no sentido do solicitado chegar ao seu destino logo de manhã cedo. E assim aconteceu. Lá foi um Allouette III, bem cedinho, cumprir esta missão importante, de que nós tivemos logo o reporte quando o FRAPIL foi instalado e começou a cumprir a sua missão recolocando o rádio no ar.

Situações idênticas à que acabo de relatar, e outras muitíssimo mais graves, eram frequentes, sempre em resultado duma Guerra em que dois lados estavam empenhados. Mas esta, pelo simbolismo do dia, pela solidão da noite, pela saudade de outros Natais, nunca foi esquecida.

Nessa noite, como era habitual, os rádios nunca pararam, mas este caso foi de facto o mais relevante que aqui recordo com nostalgia.

Resta relembrar, quando havia noites calmas, e isso também acontecia por vezes, mesmo assim os rádios nunca paravam, porque de vez em quando, o Posto Director fazia os chamados QTRs, só para confirmar que os Postos estavam permanentemente em escuta. E a CHERET, estava sempre de ouvido bem aberto.

1) Teleimpressor – Equipamento de transmissão de mensagens escritas com teclado e rolo de papel acopulado, com gravador de fita, que foi o precursor do Telex que entretanto caiu em desuso.

Carlos Pinheiro
1º Cabo Op. Msgs.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7464: O Mural do Pai Natal da Tabanca Grande (2010) (7): (Joaquim Mexia Alves / José Martins / Mário Migueis da Silva / José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P7466: Memória dos lugares (118): Destruição do Mercado Central Bissau (2) (Nelson Herbert)


1. O nosso Amigo e Jornalista da Voz da América (VOA), Nelson Herbert (foto à esquerda), sempre atento ao evoluir do nosso blogue, enviou-nos a seguinte mensagem complementando a informação lançada em anteriores postes sobre a mesma matéria.

Amigos,
Envio em "Attached" duas fotografias do Mercado Municipal de Bissau... ou melhor do que restou daquele espaço, depois de alvejado por obuses disparados pela Junta Militar aquando do conflito civil de 1998/99 na Guiné-Bissau...
Se a memória não me falha... a foto foi por mim sacada uns dias depois do Mercado ter sido atingido... E claro, com o fim do conflito foi alvo de restauração... e nesse caso contrariando a probabilidade, o "raio" acabou por abater-se pela segunda vez, sobre o mesmo alvo... já que um incêndio na década de 2000, destruía por completo aquele edifício, no coração da cidade de Bissau!
Dêem-lhes a utilização que acharem conveniente!

Um Bom Natal... e um Novo Ano Cheio de Actividades... para o bem do Blogue!

Mantenhas
Nelson Herbert

Fotos: © Nelson Herbert (2010). Todos os direitos reservados

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

18 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7463: Memória dos lugares (117): Destruição do Mercado Central Bissau (Rui Fernandes)

Guiné 63/74 - P7465: (Ex)citações (121): A política dos povos é algo demasiadamente importante para ser entregue a militares (José Belo)

1. Mensagem de José Belo (*), ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia, com data de 17 de Dezembro de 2010:

Caros Camaradas e Amigos.
Alguém escreveu: "A política dos povos é algo demasiadamente importante para ser entregue a militares."

A ter-se em conta os exemplos nacionais dos últimos 80 e tal anos, muito de verdadeiro haverá na afirmação.
De todos os Ramos das Forcas Armadas e da maioria das Armas do Exército existem bons exemplos de Generais e Almirantes que melhor imagem teriam na História se não tivessem abandonado casernas vocacionais por grandiosas missões de salvação nacional nas ribaltas políticas mais variadas. Sem querer de modo algum ofender o Camarada da Guiné que neste blogue publicou o poste sob o título: "Será que o PAIGC queria ganhar a guerra?", colocando-o em companhia de alguns destes senhores-históricos, permito-me alguns comentários de "desbocado". E, "desbocado", por (hoje), não me identificar de modo algum com as outras classificações possíveis apresentadas pelo autor no início do poste.

Tendo em conta que as visões de vitórias nos horizontes das guerras coloniais são sempre mais evidentes quanto elevadas as perspectivas (e passe a ironia involuntária quanto ao elevado das perspectivas de aviadores lá nos altos azuis); é óbvio que em nada se poderão comparar com as "visöes" de um par de botas enterradas na lama das bolanhas, sejam estas de "tropa macaca" ou "especial".

É claro que nisto de... altitudes, seria injusto a referência única às geográficas.

Do alto de sedes de Batalhão, (onde as intelectualidades dos pobres dos combatentes nunca atingiam níveis analíticos de outras especialidades por lá existentes), a tal altitude visionária de certezas absolutas feita ainda hoje é evidente. Não sei se seria a água podre que tantos foram obrigados longos meses a beber, se a comida indigna de animais que chegava às marmitas dos destacamentos isolados, o dormir no chão de um alpendre de palhota (época das chuvas incluída!), que acabaram por criar péssimos campos de cultura para tais visões de vitórias evidentes junto destes... "mais desfavorecidos".

Aparentemente na sua busca de um... clarinho, clarinho, para militar entender... o autor do poste simplificou (talvez em demasia), uma muito vasta e complexa realidade política e militar, tanto aos níveis locais e nacional, como, não menos, internacional. Se no entanto, buscamos com estas nossas tão inocentes trocas de opiniões atingir um certo (e saudável!) humor, a frase posta em suposto pensamento de políticos nacionalistas guineenses: "Estávamos tão bem sem termos que ganhar a guerra", obterá talvez o mesmo sentido humorístico se colocada no pensamento de alguns dos Barões Galaico-Portugueses, antes de um tal príncipe A. Henriques se ter lembrado de criar todas as condições de base para a grave crise económica que hoje tanto atormenta o nosso querido Portugal.

Um grande abraço desde Estocolmo.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7295: (Ex)citações (109): Alguns considerandos muito intimistas (José Belo)

Vd. poste de 16 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 – P7452: FAP (57): Será que a cúpula do PAIGC queria ganhar a guerra? (António Martins de Matos)

Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7439: (Ex)citações (120): Destruição e incêndio do Mercado Central de Bissau (Francisco Henriques da Silva)

Guiné 63/74 - P7464: O Mural do Pai Natal da Tabanca Grande (2010) (7): (Joaquim Mexia Alves / José Martins / Mário Migueis da Silva / José Manuel Matos Dinis)

O MURAL DO PAI NATAL DA TABANCA GRANDE 2010 (7)

1. Em mensagem do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/Ranger da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 16 de Dezembro de 2010:


NOITE DE NATAL NA GUINÉ

Os olhos bem abertos tentam rasgar a noite escura que tem à sua frente.
Ouve o silêncio da mata da Guiné, e aqui e ali o rápido crioulo, que sai de cada tabanca, onde os soldados já recolhidos, põe em dia a conversa.
Tudo naquele ambiente lhe nega o Natal!

As gotas de suor que teimam em descer da sua testa até ao pescoço, fruto do calor e da humidade insuportáveis, que o fazem estar a milhas de distância do frio da sua terra, que tão bem convida à lareira!
O copo de whisky na mão, uma mão cheia de caju, coisas que nada têm a ver com o vinho tinto encorpado da ceia de Natal, a acompanhar o peru recheado, ou o “eterno” e fiel amigo!
O silêncio avassalador da mata que o rodeia, o receio entranhado de que esta noite de Natal seja aproveitada para fazer uma festa, festa que nada tem a ver com a vida, mas apenas com a morte!
E aqueles homens que o rodeiam, “família” agora presente e obrigatória, tão dentro do seu coração como a outra, a sua, (que tão distante está), mas diferente, bem diferente nos hábitos e nas atitudes!

Não, esta não é decididamente uma noite de Natal!

Revolvem-se-lhe as entranhas do pensamento e da memória!
É a primeira vez, nos seus curtos vinte e dois anos, que passa o Natal fora da família.
Um nó apertado toma-lhe a garganta, e uma lágrima teimosa aparece nos seus olhos.

Não, não pode ser!

Que raio de homem seria, que raio de testemunho daria a todos aqueles que com ele vieram e nele confiam, nele vêem a esperança de regressar à família, ou dos outros que agora estão consigo e querem continuar com as suas famílias, nas suas tabancas, nas suas vidas.

Há que encontrar ânimo, razões para festejar a noite de Natal, visto que a fé adormecida, o afasta da espiritualidade em tempos vivida.

E as razões, encontra-as na terra onde está!

Afinal na sua terra agora distante faz frio para lareira, mas verdade é que Jesus Cristo nasceu em Belém, que é um lugar quente e húmido!
E os presépios fazem-se com musgo, o que, se não está enganado, é coisa que não existe onde Jesus nasceu!
E ainda mais, pois Jesus nasceu num curral segundo uns, ou numa gruta segundo outros, o que é bastante parecido com o abrigo em que agora vive!

Ah, afinal não está assim tão longe do Natal!

Um sorriso já lhe baila nos lábios! Já se sente mais feliz, mais em paz, mais em família, mais em Natal!

E depois… depois segundo se diz, “Natal é sempre que um homem quiser”, e ele decide entender isto como um convite a fazer a paz, a fazer o bem, a acolher e a dar-se, pois sempre que um homem assim faz, “faz-se Natal” também.

Sem pensar em mais nada, abraça com força e alegria os que estão ao seu lado, e depois vai de tabanca em tabanca, e grita bem alto lá para dentro:

- Feliz Natal, e paz aos homens de boa vontade!

Monte Real, 16 de Dezembro de 2010

Com esta história agora inspirada, (que não se passou, mas podia ter passado), desejo a todos os meus camarigos um Santo e Feliz Natal!
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2. Mensagem de José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 15 de Dezembro de 2010:

Desejo de boas festas para todos e um abraço
José Martins

Duarte Martins em inícios de Novembro de 2010.
© Foto e composição de Diogo Martins

O Natal, para a Família Martins, chegou em 5 de Novembro!

É o Natal do Futuro?

No presente, enviamos a todos um Fraterno Abraço, com votos de Bom Natal e, que 2011 ultrapasse as expectativas de todos, mas pela Positiva.

Ano de 2010
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3. Mensagem de Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 18 de Dezembro de 2010:

Caro amigo:
Uma vez mais fiz uma péssima gestão do tempo e agora, já com os meus filhos à minha volta para o Natal, não tenho disponibilidade para fazer, em tempo útil, a "brincadeira desenhada" que tinha nos meus planos. Vai ter que ficar para o Natal de 2011, esperemos que já sem crise.

À falta de melhor, envio-te meia dúzia de letras e um desenho original, tudo "confeccionado" em Bambadinca, quarenta anos atrás (Santa Maria!!!...), por alturas do meu primeiro Natal longe de casa. É o meu modesto contributo para o mural do nosso querido blogue, que, reconheço, merecia da minha parte um maior empenho.

Fico-me com um grande abraço e os meus votos de Boas Festas.
Mário MIgueis

Natal de 70
Foto: © Mário Migueis da Silva (2010). Direitos reservados.


O GATITO

Uma mesa. E na mesa, um brinquedinho de corda, em forma de gato, que anda e mexe o rabo. E diverte quatro camaradas meus, que se juntaram à sua volta. Riem, falam-lhe quase ao ouvido, tocam-lhe no rabito tremeliques, parecem crianças. E, no entanto, orgulham-se, e com razão, de pertencerem já ao rol da velhice, que dezassete meses de Guiné é muito. Ah, pois é, e então para quem, como eu, acabou de completar o primeiro mês!...
Mas, a verdade é que o gatinho de latão é mesmo giro. É giro e faz-me lembrar as palavras do velhinho Roda, no dia em que cheguei a Bambadinca. Tendo-me encontrado, sentado na cama, a olhar para o tecto, deu-me uma palmada nas costas e disse a sorrir:
- Ouve lá, ó pira, tu, aqui, ou arranjas com que te entreteres ou ficas apanhado num instantinho! Pensar é manga de aborrecido!...
E assim é na realidade. A velhice que o diga. Pensar?... Antes mexer no rabo do gato!...

Bambadinca, 15 de Dezembro de 1970
Mário Migueis
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4. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 16 de Dezembro de 2010:

Meus Amigos,
Acho que já aqui vos revelei que sou ateu, pelo que o Natal, para mim, devia ser uma prática contínua, de todos os dias, conforme o dito popular. Da maneira como se apresenta perante a sociedade onde vivo, faz-se anunciar como uma trégua nos desfavores da vida quotidiana. Qual trégua? As pessoas esfolam-se em correrias nervosas para comprar, comprar, festejar, festejar, desejarem ao tio, ao primo, ao padrinho, à madrinha, ao colega e à colega, num frémito alucinante do que se tornou um conjunto de obrigações obecessivas, e que nos deixam à mingua de tudo, e, ainda, com o sentimento de termos falhado aqui, ali, em toda a parte.

E tesos... quando não empenhados.

No entanto, agradeço verdadeiramente os vossos votos natalícios, porque, em alguma medida, o Natal faz parte da minha cultura, e tiveram o cuidado de me incluir no lote das vossas referências, além de que é sempre bom receber esse género de votos camarigos, de mensagens optimistas, de propósitos que concorram para a nossa felicidade.

Nesta medida, também gostaria de formular votos de Natal tranquilo, com muitas alegrias, e que o próximo ano nos reserve sorte para nos mantermos à margem dos problemas mundiais que, aqui em Portugal, como na Guiné e em toda a parte, vão acentuar a crise, as relações entre as oligarquias, e as consequências derivantes para os povos, a que talvez possamos fazer frente, se imbuídos de espírito coeso e fraterno.

Abraça-vos o
JD
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7460: O Mural do Pai Natal da Tabanca Grande (2010) (6): Uma história de Natal (José da Câmara)

Guiné 63/74 - P7462: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (6): Bambadinca, recordações da casa dos mortos

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2010:

Malta,
Foi na verdade um dia de emoções fortes.
Não mais entrara naquele quartel nem percorrera assim Bambadinca. Não me fora dado supor, nem ninguém me alertara para esta expectativa do direito a uma pensão militar, se nosso alfero nos vem cumprimentar certamente que nos traz a recompensa devida… o dia de amanhã terá igualmente o seu torvelinho de emoções, quando sair do Bairro Joli tenho o meu querido Mamadu Djao à espera, iremos ao porto de Bambadinca visitar o que dele resta.
Haverá mais surpresas à porta da casa do Fodé. Depois, iremos em excursão até Samba Juli, Lorde Torcato poderá estar atento com o que lhe será dado a conhecer. E depois Fá Mandinga, coutada do Jorge Cabral. Serei mal recebido, paciência, mas a missão será cumprida.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (6)

Beja Santos

Bambadinca, recordações da casa dos mortos

1. O Tangomau dormiu mal, não lhe falta discernimento para as dores que se avizinham, hoje chegam soldados, há perguntas inevitáveis, as respostas serão facadas que chegam ao osso. Negociou com o patrão de costa, Fodé Dahaba, que o dia deve ser reservado à primeira imersão em Bambadinca, o lugar entre os lugares. Em dois anos que foram vividos ininterruptamente na região, aqui descobriu as delícias da amizade, aqui se reforçaram os cânones da solidariedade, Bambadinca alimentava os estômagos, as armas, os transportes e as comunicações, desde o Cuor até ao Xitoli, de Udunduma às bolanhas do Poindon.

Levantou-se cedo, depois do banho de caneco foi fazer leituras em frente a Bambadinca e às bolanhas de Ponta Nova e de Finete. Mesmo antes das 8 horas, chegam Calilo e Iaguba, ingerido o pequeno-almoço seguimos para o mercado, o dono da casa está sem viatura, impõe-se andar com a lista das compras à procura do possível e do impossível. O possível pode dar pelo nome de margarina, açúcar, batata inglesa, carne, farinha, ovos. O impossível anda à volta dos legumes. Entregues as compras, mentalizado para os encontros e as visitas, a Renault Express entre no Bambadincazinho e pára à porta do homem grande que já anda aos gritos, chegaram soldados milícias. Depois de suplicar pela enésima vez ao Fodé que o deixe de tratar por Dr. Mário, os visitantes lançam-se nos seus braços. Quem são eles? Madjo Baldé, o n.º 18, anuncia ter 64 anos e recorda que acompanhou todas as andanças da operação “Anda Cá”; Djiné Baldé, o 21, surpreende pela dignidade, pelo porte, pela doçura da voz; apresenta-se um tenente de uma Companhia Africana, Aladji Jamanca, vem por curiosidade, sabia da visita através do seu primo Fodé. O Tangomau pergunta por Sadibi Camara, Sila Sabali e Tomani Sanhá, há hesitações, ninguém sabe onde vive mas pelo menos a resposta foi de que estão vivos. Trazem cumprimentos da família de Mamadu Baldé, que foi comandante das milícias de Amedalai e da família de Cherno Baldé, que foi comandante do pelotão de Demba Taco. Os presentes anunciam que ainda hoje vai chegar Arafan Dembó, o Zé Finete, maqueiro na dita povoação. O Tangomau pergunta-lhes se têm notícias de Ieró Djaló, o soldado milícia de Missirá que deixou fugir o prisioneiro durante a operação “Anda Cá” e Madjo Baldé esclarece que ele já foi informado mas vive longe, para cima de Sonaco; o outro Ieró Djaló, o primeiro guarda-costas do Tangomau, também conhecido por Nova Lamego, está também informado desta viagem, irá telefonar ao Fodé, espera vir à festa. Calilo vai levar Aidja a um choro na Bantajã mandinga, quem vai acompanhar o Tangomau e seus camaradas é Iaguba. E começa a excursão de Bambadincazinho para as memórias do quartel de Bambadinca.

Disse-se em comentário a um anterior álbum fotográfico que ainda existe o porto do Xime. É totalmente falso. Os vestígios do porto do Xime são estas estacas, as canoas pertencem a pescadores e do outro lado temos a bolanha do Enxalé. Ninguém entende a fúria depredadora que leva à perda de infra-estruturas com o significado que tinha o porto do Xime. O Tangomau não acreditava no que estava a ver. Nem previa que o porto de Bambadinca se encontrava numa desolação parecida.


2. No mercado de Bambadincazinho dá-se uma ligeira guinada para a direita e fica-se em frente dos restos da porta de armas que dava para os itinerários do Xime, à direita, e Mansambo e Xitole, à esquerda. Até se fica com a ilusão que se está a entrar no quartel, o equipamento que se avista não está desfigurado. Os amargos de boca vão aparecer mais adiante. A capela aparece recuperada, ao lado funciona uma escola das irmãs missionárias, o Tangomau pede autorização para visitar o templo. Alguém vem abrir a porta, foi pena terem-se perdido as imagens do seu interior. O Tangomau rezou pelos seus mortos, memorizou as diferenças e sensibilizou-se com as semelhanças entre o passado e o presente. Quase em delírio, até viu a imagem do António Ribeiro Teixeira (o Teixeira das Transmissões) que lhe por amor de Deus que o libertasse da incumbência em ajudar a vestir o morto, estava enojado com aquela carne fria. O Tangomau rasgou como pôde as costas da camisa e compôs o falecido enquanto o Teixeira olhava para o lado, a fugir da assombração.

Saiu da capela, passou ao largo do quartel, verificou que a enfermaria era uma ruina, menos ruina estava a secção automóvel (pelo menos o edifício estava telhado) e desceu a rampa. Aqui a tensão nervosa sobrepôs-se, a rampa perdeu a compostura, é um declive escalavrado, com as gretas das águas impiedosas da época das chuvas. Aquela é a rampa da vida do Tangomau, desce-a e sobe-a perante o olhar atónito de Iaguba. Madjo Baldé sossega-o: Mário, sufre, Mário tem paciência. Mas o Tangomau não tem paciência nenhuma, está indignado com a descompostura daqueles lugares fundamentais da sua existência; e brada para os céus: “isto não se faz!”, “Bambadinca não merecia este tratamento”. A estrada encurtou, é um simples caminho pedonal, das crianças, dos pescadores e dos moradores do que resta de Bambadinca. Até ao porto, sucedem-se os escombros, os da Casa Gouveia, da Ultramarina, há mesmo armazéns abandonados em plena agonia. Lamentavelmente, perderam-se as imagens da conversa com a D. Rosa, uma das professoras de Bambadinca, que queria à viva-força ficar com um dos livros destinados à população de Missirá e Finete; perdeu-se a imagem da Mariama gorda, toda enfeitada, era a outra lavadeira do alferes Machado, ele dera esta incumbência ao Tangomau; como se perderam as imagens do interior da casa do Sr. Rendeiro, felizmente habitada por família numerosa. Do que resta desta artéria outrora buliçosa segue imagem esclarecedora.


Ninguém explicou satisfatoriamente ao Tangomau de quem era este armazém, ele até pensou tratar-se do estanco de José Maria Tavares. São estes vestígios espectrais, estas ruinas de povoação fantasma que falam da Bambadinca dos anos 60 e 70, que os militares conheceram.


3. A excursão encaminha-se para o porto, ou para o que dele resta. Antes, porém, é tal o peso da nostalgia, o Tangomau vai perguntando nas moranças vizinhas do Geba estreito onde está o resto da estrada que levava ao ponto de cambança. E fala no nome de Mufali, o canoeiro. Alguém indica o caminho, também ele reduzido a um vestígio. Em frente, também o que resta da estrada que atravessava a bolanha de Finete. Olhando à esquerda, vêem-se canoas. O Tangomau volta-se, às arrecuas, foge dali espavorido. E será por ali que amanhã começará o dia. Volta a subir a rampa, pára em frente da antiga casa do chefe de posto, hoje residência do representante político. Vá lá, está compostinha, não lhe subtraíram a dignidade. A mãe de água apodreceu.


O poilão é imponente, lança tentáculos até ao fim dos tempos, não haverá fúria da natureza capaz de o desalojar. Aquela instalação vem do tempo da guerra e a mãe de água, ou o que dela resta ergue um olhar ufano, do alto da sua desdita. O que mais impressionou o Tangomau é que este é um recanto muito próximo da Bambadinca onde ele viveu.


4. Ganhou-se coragem, é a vez de entrar no quartel. À porta, quem acolhe o grupo é o Tenente-Coronel Seco Mané, o Comandante Militar da Unidade. Surpreende-se com a visita, o Tangomau mostra-lhe os livros com as imagens do interior e do exterior. Entra-se no corredor do edifício dos oficiais, o Tangomau apresenta as versões daquele tempo: aqui vivia o tenente da secretaria, lá ao fundo os oficiais superiores… segue-se em cortejo para messe. Aqui é o desabar de emoções, choro compulsivo, era inimaginável encontrar tal transfiguração. Aqui, era o lugar dos lugares, o verdadeiro ponto de chegada ou de partida, não só para comer ou desabafar, não só para escrever aerogramas ou para ler o jornal de seis semanas antes.

Aqui era a vida de relação, o seu epicentro. Por isso, como um boneco de palha, o Tangomau caiu por terra, magoado com a insensibilidade dos homens. O Tenente-Coronel pede-lhe para não chorar, só que a indignação do Tangomau é mais forte, percorre os espaços, ocorrem-lhe imagens, sente cheiros, pressente vultos, parece ter entrado em transe. Vai recuperando lentamente, estaca na velha estrada onde se formava a longa coluna de abastecimento ao Xitole, recorda que havia uma outra porta de armas junto à rampa, mas esta desapareceu. Há ainda uma deambulação em torno do refeitório das praças, por detrás da antiga escola. Aqui o abalo demolidor foi menor, há instalações aproveitadas, no meio construíram o novo equipamento escolar. O Tangomau sente o peso das emoções, pede para voltar. No regresso, uma nova emoção forte: Sadjo Seidi, o bondoso e valoroso Sadjo Seidi, mesmo contido, acolhe-o de braços abertos. Veio de bicicleta dos confins do Xime, mal lhe chegou a notícia de que o Tangomau arribara.

Sadjo Seidi está à esquerda, Madjo Baldé no centro e Djiné Baldé à direita, Fodé está cortado. Solucei abraçado a Sadjo Seidi, foi um dos feridos da operação “Tigre Vadio”, aliás o único ferido do Pel Caç Nat 52. Ele ia na coluna da frente quando entrámos, com total surpresa, no interior do acampamento de Belel. No desespero, a sentinela disparou a sua bazuca, Sadjo guarda no peito as marcas de alguns estilhaços. Mas o mais importante é que Sadjo veio dizer publicamente que nunca esquecera a dívida que tinha com o Tangomau, contas afectivas antigas que não vem ao caso aqui contar. Vai ser um dos momentos mais consoladores de todos estes encontros.


5. O Tangomau cai em si, começa-se a fazer luz sobre um ritual até agora indecifrável. Na verdade, cada vez que chega alguém, retira cuidadosamente de um bolso do interior da camisa a sua documentação militar, umas vezes cuidadosamente resguardado com plástico, outras vezes um papel amarelecido e esquartejado pelo uso. Dado o caso de Fodé o ter chamado à parte, amanhã é o dia de Samba Juli e de Fá, ele propõe mesmo um dia de visita a Finete e Malandim, é, no decurso desta conversa que ele pergunta a Fodé porque é que lhe mostram invariavelmente a documentação militar. Sibilino, este adianta: “Eles já sabem que não tens os poderes do presidente da República, mas acreditam que tu vais resolver o problema da pensão de reforma, não lhes passa pela cabeça que não vieste para os ajudar, vê o que podes fazer”. O Tangomau disparata com Fodé, escrevera-lhe dando-lhe conta dos seus intentos, era impossível que Fodé pudesse invocar ignorância sobre a impossibilidade de prometer pensões ou de encontrar uma solução justa para estes militares que, em tantos casos, tinham combatido mais dez anos sob a égide da bandeira portuguesa.

Irado, o Tangomau procurou esclarecer os presentes do que o trouxera à Guiné. Fez questão de que Fodé passasse tudo para crioulo. Tudo foi ouvido em silêncio e depois ouviu-se o comentário resignado: faça-se a vontade de Deus. O dia caminha para o zénite, foram emoções a mais, o Tangomau ainda dá dois dedos de conversa a todos os presentes, pede para regressar a pé e só, até ao Bairro Joli. Tem assim mais uma oportunidade de disfrutar a descida da rampa, inflectir pela bolanha, pejada de lírios brancos, formam um tapete deslumbrante. Quando chega a casa, a bola de fogo do sol caminha para o acaso. É o instantâneo da hora mais procurada, pois a luz despede-se triunfal, como se dissesse: até amanhã, eu sou o segredo da vida, faça-se noite para amanhã se fazer dia. Há que meditar sobre tudo o que aconteceu, ganhar coragem para o dia que irá nascer.


Dentro de segundos, extinguir-se-á o dia. Este é o ocaso dos trópicos, o refulgente astro-rei lança a derradeira radiação solar. É a imagem perene que o Tangomau guarda das travessias da bolanha de Finete. A última luz a anunciar o manto da noite. E a prenunciar que amanhã há um novo dia, o eterno recomeço.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7456: Notas de leitura (178): Breves Considerações Sobre Plâncton - Copépodes da Guiné, de Dr.ª Emerita Marques (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7440: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (5): Do Bambadincazinho para Ponta Varela

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7461: Tabanca Grande (254): António Rodrigues Pereira, ex-Fur Mil At Inf da 1ª CCAÇ do BCAÇ4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá,1974)

1. Mais um Camarada nosso se perfila na formatura virtual desta Tabanca Grande, o António Rodrigues Pereira (ex-Fur Mil At Inf da 1ª CCAÇ do BCAÇ4612/74, Cumeré, Jabadá e Brá - 1974), tendo-nos enviado um texto humorístico e algumas fotos da praxe.
Camaradas,
A convite do meu Amigo Magalhães Ribeiro, que como sabeis foi furriel miliciano na CCS do meu batalhão, aqui estou a responder ao desafio de me juntar a esta grande tertúlia de camaradas da Guiné.
Assim, cumprindo as regras do blogue, envio uma curta e divertida estória da minha estadia no confortável e airoso ressort de Jabadá e algumas das fotos do meu álbum de memórias.
Matar mosquitos a… tiro de G3
Quando chegamos ao Cumeré, fomos informados que estava estabelecido um cessar-fogo com o PAIGC e, que, devido a esse facto, estávamos proibidíssimos de dar qualquer tiro.
Um belo dia, finda a nossa comissão em Jabadá e aguardávamos o nosso regresso a Bissau, para o nosso embarque de regresso à Metrópole, mais ou menos pelas 21h00, ouviu-se um tiro para os lados da coberta da nossa companhia.
Nesse momento, estavam comigo em amena cavaqueira o Fur Mil OpEsp José Martins Olo e mais alguns camaradas, e, é claro, que desatamos de imediato a correr em direcção ao local de onde tinha surgido o som da detonação.
Uma vez lá chegados, deparamo-nos com alguns camaradas a beber e a rirem-se alarvemente, “encharcados” em álcool, de tal modo que nem o tradicional 4 conseguiam fazer.
Perguntamos o que tinha acontecido e logo um deles se prontificou, dizendo: “Há bidões de vinho aqui perto e nós encontramo-los!”
Eles e não só, pois, pelo menos, um terço da companhia também tinha encontrado e não esteve pelos ajustes.
É caso para dizer que foi tudo corrido à “mangueirada” (sim à letra), pois eles estavam a tirar o vinho dos bidões c/ uma mangueira.
Quanto ao tiro, o nosso camarada Santos, cuja alcunha era Leão (ver a origem no fim), acabou por confessar ter sido o autor do disparo, dizendo: - Eu estava a ser todo mordido pelos mosquitos e dei um tiro para eles fugirem.
P.S.: A alcunha de “Leão” com que foi baptizado o nosso camarada Santos, natural de Rio Maior, deveu-se ao facto que, na altura, ter constado na sua terra, por afirmações de diversas pessoas que tinham visto um animal a monte, parecido com um… leão.
Isto passou a história, e esta a notícia com direito a televisão e tudo, que mandou vários jornalistas entrevistar as testemunhas do acontecimento.
Um deles era o saudoso Fernando Peça.
Daí surgiu a ideia de alcunhar o nosso amigo e camarada Santos, carinhosamente, de “Leão”.

Aquartelamento de Jabadá
Aquartelamento de Jabadá > Edifício das transmissões, camarata do Comandante de Companhia, bar de sargentos e oficiais, cozinha e refeitório, e secretaria
Emfermaria, central eléctrica, bar dos praças e depósito de géneros

Depósito de água, padaria e cozinha
Willis carregado com o Alf Mil Araújo e uma cambada de furriéis milicianos da companhia Cumeré > Furriéis Martins, Olo e Eu
Um abraço para todos,
António Pereira
Fur Mil At Inf da 1ª CCAÇ do BCAÇ 4612/74

Emblemas de colecção: © Carlos Coutinho (2010). Todos os direitos reservados

Fotos: © António Pereira (2010). Todos os direitos reservados
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Nota de M.R.:

Guiné 63/74 - P7460: O Mural do Pai Natal da Tabanca Grande (2010) (6): Uma história de Natal (José da Câmara)

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 17 de Dezembro de 2010:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás uma História de Natal. Para ti, para os nossos amigos da Tabanca, para os vossos familiares.

Um abraço do tamanho do oceano que nos une,
José Câmara




O MURAL DO PAI NATAL DA TABANCA GRANDE 2010 (6)

Uma história de Natal

Em 1971, o Destacamento de São João foi o palco da meu primeiro Natal passado na Guiné, o terceiro passado fora do aconchego familiar sanguíneo e o segundo entre uma família diferente, uma família militar.

Preparei-me a preceito para aquela noite. Vesti o meu melhor facto multicolorido, adornei a cintura com as melhores jóias que possuía, umas que faziam Pum e outras faziam Pam quando devidamente utilizadas. Acabei por dar o braço à minha companheira de todos os dias que, em abono da verdade, nunca se fazia rogada em me acompanhar e estava sempre preparada para qualquer cerimónia eventual. Foi esse espírito de colaboração que me fez apaixonar por ela.

Quando cheguei à messe de oficiais e sargentos já lá se encontravam alguns graduados. Os outros chegariam logo a seguir. Reparei, com alguma mágoa, que a única praça presente era o militar de serviço. Porque éramos poucos nunca cheguei a perceber os porquês dessas decisões, que não eram minhas.

A minha companheira ao aperceber-se da presença de algumas amigas alinhadas e encostadas à parede entendeu fazer o mesmo. Para que não se sentisse envergonhada perante as amigas, eu coloquei-lhe nos braços os meus adornos. No dizer dela, sentia-se bem e envaidecida com eles junto ao peito.

Entre os convivas do momento, as conversas foram rolando pelas picadas das recordações familiares, de histórias de outros natais na Guiné e não só e das diferentes experiências pessoais de cada um. Tudo em nome de uma sã camaradagem.

Entre o calar de cada história éramos entretidos com o striptease masculino, muito em voga no tempo, providenciado pelo John Walker. As puras donzelas que ajudavam a alegrar a noite, as loirinhas Cuca e Sagres, invejosas do John, não paravam de dar o seu pézinho de dança e retorciam-se sensualmente com as carícias e os beijos que lhes dávamos. Também não faltou quem pedisse um ar de graça ao velho Vinho a Granel que todos os dias se deliciava com banhos de sol ao fundo na parada, sem estragar a pele. Certamente que invejávamos a capacidade do velho amigo, fosse ele Tinto ou Branco, para aguentar, sem queixas, as carícias do astro rei dos trópicos.

A noite já ia um pouco avançada e alegrada de prazeres, ofertas dos deuses bacos, quando soou a hora do jantar.

A ementa especial dessa noite tinha como entrada uma sopa de legumes, à moda da cidade, uma raridade por aquelas bandas e a primeira vez que acontecia desde que eu chegara ao Destacamento, havia várias semanas, e javali assado no forno, à moda do nosso cozinheiro. Para sobremesa tínhamos aquilo que tinha sido um grande chocolate americano, lembrança da minha madrinha de guerra, que chegou feito em papas, obra de sua majestade o calor africano, que ninguém ousou tocar.

Em boa verdade, foi uma delícia de jantar!

A besta suína que nos servia de repasto tivera a infelicidade de perder um ajuste de contas com um militar nativo. Os dentes grandes da fera, sua única defesa, foram insuficientes perante a heroicidade do nosso camarada, gentio da Guiné. Este acto de bravura, bem merecedor do reconhecimento público dos camaradas, foi pago em folhas de serviço apropriadas e medalhas ultramarinas, tantas quanto nos pediu, às quais acrescentamos mais algumas e os nossos agradecimentos.

Destacamento de São João - Militares nativos preparando o Javali que foi servido na Noite de Natal de 1971

O jantar já ia adiantado, quando alguém se lembrou que não tínhamos agradecido as iguarias que devorávamos com apetite e regávamos ainda melhor. Natal não é Natal se não rezarmos ao Menino e agradecermos a Deus as iguarias presenteadas.

A primazia da reza coube ao Furriel Miliciano Teixeira, do Pel Caç Nat 66 que, por ironia das voltas que demos pelo território guineense, eu fui substituir no Palácio do Governador.

O Teixeira era um homem casado e já sabia o que era ser pai. Calmamente, pegou num pedaço de pão e partiu-o em dois bocados sensivelmente iguais. Após este primeiro gesto, próprio de quem está habituado às grandes ribaltas, que espicaçou a curiosidade dos presentes, botou oratória que não ficou muito longe destas palavras:

- Hoje, se em minha casa apenas houvesse este pão para a consoada, era assim que o partia. Dava esta metade à minha filhinha. A outra metade (juntando a palavra ao gesto) partia-a em dois bocados diferentes e dava a parte maior à minha esposa. Nessa altura, como a minha filhinha já tinha acabado de comer o seu pão, eu dava-lhe o bocadinho que era para mim!

O prato do Teixeira não mingava. Pelo contrário enchia-se tal era o caudal das ribeiras que lhe desciam em cascata pela cara. Por simpatia, o Fur Mil João Fevereiro, homem de grande arcaboiço, do mesmo pelotão, também tinha dado o seu nome a uma jovem que o aguardava nas províncias alentejanas, também fazia o mesmo.

Os alferes Cavaqueira (? - a memória falha-me na certeza do nome) e Ribeiro, e os furriéis Carvalho, André e eu eram as outras testemunhas daquela extremosa manifestação de amor.

Ninguém ficou insensível àquela manifestação. Um pouco por todas aquelas caras de meninos, feitos homens à pressa, se viam lagoas, à altura dos olhos, prestes a transbordar.

Levantei-me, dirigi-me à minha companheira e aos meus adornos, peguei-lhes com sensibilidade desusada, dei as boas noites aos meus camaradas e dirigi-me ao encontro da escuridão que pairava sobre o Destacamento de São João. Não fui o único maricas dessa noite!

Com o coração apertado pelas saudades, procurei no firmamento pela estrela Alva.

Naquela noite de Natal de 1971, ela foi a testemunha silenciosa das minhas lágrimas e da minha prece. Pelos meus familiares e pela minha madrinha de guerra. Pelos meus amigos e camaradas. Pela CCaç 3327 e pela minha secção que não conseguia arrancar do coração.

Dei uma volta pelos postos de vigia. Para uma pequena conversa com os sentinelas, todos eles gentios da Guiné. Também eram gente. O Natal pouco ou nada lhes dizia, mas eles já me diziam muito. Senti-me melhor!

Hoje, passados todos estes anos sobre aquele inesquecível Natal de 1971, continuo a olhar para o firmamento e a procurar a estrela que foi minha companheira cúmplice daquela noite e de muitas outras.

Ainda continuo a ouvir aquele sussurrar cálido e suave como a brisa da noite guineense, quando nos despedimos antes de me retirar para o reino de Morpheus:

- O Menino é um presente de amor e carinho, de amizade e compreensão, que se dá com alegria. Mantem-no bem perto do coração como companheiro de todos os dias!

Hoje, com vossa licença, vou parar o meu trenó às vossas portas. Deixem que o meu companheiro, o Menino, entre nas vossas casas e se sente às vossas mesas. Ele precisa de descansar um pouco e nenhum lugar melhor para o fazer, que no seio das vossas famílias.

Dos States, do fundo do coração, para todos vós e famílias Boas Festas e Bons Anos!
José Câmara
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7149: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (22): Aventuras em terras manjacas

Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7457: O Mural do Pai Natal da Tabanca Grande (2010) (5): Boas-Festas da Tertúlia

Guiné 63/74 - P7459: Memória dos lugares (117): De Mansambo (que não vinha no mapa) até à ponte do Rio Udunduma (Carlos Marques Santos)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Localização da Ponte sobre o Rio Udunduma, afluente do Rio Geba (ou Xaianga), a meio caminho entre Bambadinca  e Xime... A ponte foi dinamitada e parcialmente destruída por acção do PAIGC, na noite de 28/29 de Maio de 1969, por ocasião do ataque a Bambadinca (quatro/cinco km a nordeste), levado  a cabo por 2 bigrupos (cerca de 100 homens)...  A partir desse ataque, passou a ser destacado um grupo de combate para defender este ponto nevrálgico...


Durante anos, até à construção da nova estrada  (alcatroada) Xime-Bambadinca, milhares e milhares de homens e viaturas, desembarcados em LDG no Xime passaram por aqui a caminho do leste (e vice-versa)... 


Pormenor da carta de Bambadinca (1955), 1/50000.




1. Comentário do CMS [, Carlos Marques Santos, ex-Fur Mil, CART 2339, Fá e  Mansambo, 1968/69) ao poste P7458:


Começo como o Torcato, Combatente,  Amigo, Camarada e Camarigo:

Companheiros e famílias,

ABRAÇÃO, primeiro de NATAL e segundo de BOM 2011.

Ponte dos  Fulas, Jagarajá, Udunduma... é tudo é parte da minha vida, vivida e partilhada.

MINAS... ???
ARMADILHAS... ???
EMBOSCADAS... ???
Etc.., Etc..., !!!

A história responderá!!!

Udunduma, a 29 de Maio 1969, de madrugada, eu estava lá... Ataque a Bambadinca ??? Pergunto...

Triângulo - Xime - Xitole - Bambadinca. Um epicentro... Mansambo, 1968/69.Um Aquartelamento, fortificado, anti, não sabemos a quê...

8 Mortos, 43 feridos, 35 evacuados para Lisboa,  4 Comandantes de Companhia...

Eu,  no dia 29 de Maio inaugurava, horas depois do suposto ataque a Bambadica aquilo a que posteriormente se chamou  o Destacamento da Ponte do Rio Udunduma (*).



Nota saí com o "meu" pelotão, o 3.º, de madrugada.

Existiu? Ou é ficção ????

CMSANTOS
CART 2339



Mansambo ( que não existia no mapa) (**)... E hoje também... destruído completamente.



_____________


Notas de L.G.:


(*) Vd.poste de 4 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIX: Os Solitários da CART 2339 na Ponte do Rio Undunduma e em Fá 

(...) Li no Blogue (...) uma referência ao pontão do Rio Udunduma. 


Eu e os meus camaradas da CART 2339 estivemos lá. Em 28 de Maio de 1969 ouvimos rebentamentos para aqueles lados e pensámos ser na tabanca Moricanhe. Afinal, para nosso espanto, era mesmo em Bambadinca, sede do Batalhão [, BCAÇ 2852, 1968/70].

Dia 29, pela 5.30 da manhã, seguimos para reforço da sede de Batalhão. 15 dias. Salvo erro com o Pel Caç Nat 63, estivemos em tendas (panos de tenda com botões), em vigília constante, àquela que era uma passagem importante [, a ponte sobre o Rio Udunduma, na estrada Xime-Bambadinca]. Depois disso, outros, e até da nossa CART 2339, estiveram lá. Nós, CART 2339, abandonámos [a ponte] em 12 de Julho de 1969.
Entretanto dali, e depois de uma série de ataques, em Amedalai, Mansambo e Xime, Bambadinca e outra vez Bambadinca, fomos para reforço a Fá (Mandinga), nosso aquartelamento de acolhimento, pois havia indicações de que poderia ser atacado.

O meu pelotão - e eu era o furriel mais velho e por ausência quase sistemática do Alferes, competia-me o comando - intitulou-se de Os Solitários, pois por norma estava em diligência. Que palavra tão bonita. (...) 

Reproduzido no poste de 29 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1130: A CART 2339, em socorro de Bambadinca, e na defesa da ponte do Rio Udunduma (Carlos Marques dos Santos)

(**) Vd. postes da I Série do nosso blogue:


28 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCIX: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (1): a água da vida

29 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CD: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (2): as CART 2339, 2714, 3493 e 3494

30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339



(***) Último poste desta série > 

10 de Dezembro de 2010 A> Guiné 63/74 - P7418: Memória dos lugares (115): As colunas logísticas ao Xitole e Saltinho no tempo do Paulo Santiago (1970/72) e do Joaquim Mexia Alves (1971/73)

Guiné 63/74 - P7458: Blogpoesia (97): Roteiro poético-sentimental para o viajante do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, com um Oscar Bravo ao camarigo Joaquim Mexia Alves (Luís Graça)







Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 3 de Março de 2008 > O antigo quartel das NT (CCS/BCAÇ 2852, 1968/70; CCAÇ 12, 1969/71; CCS/BART 2917, 1970/72...) e a antiga bolanha > No regresso a Bissau, depois de uma visita ao sul, à região do Cantanhez, no ãmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2008), eu e o Nuno Rubim, fizemos um pequeno desvio para visitar Bambadinca...

As instalações de sargentos (à esquerda) e oficiais (à direita) eram agora ocupadas pelo exército guineense... Chegámos a uma hora inconveniente, a da sesta... Trocámos cumprimentos com os oficiais presentes (incluindo o comandante, à civil,  de camisola interior, bem como um coronel inspector da artilharia que estava ali, de máquina fotográfica e óculos escuros, em serviço, vindo de Bissau...). Fotos que falam por si... Estupidamente, não quis ver o meu antigo quarto (*)...


Fotos: © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados


1. Texto de L.G., a partir do poste de 13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2633: Memórias dos lugares (4): Mato Cão (Joaquim Mexia Alves, Pel Caç Nat 52, 1972/73)


Com um agradecimento, muito emocionado, ao Joaquim pela ternura do roteiro que ele fez para mim, em 27 de Fevereiro de 2008, antes de eu partir para a Guiné, e de que só no regresso, infelizmente, tomei conhecimento...  LG


(i) Recado para uma ida à Guiné

por Joaquim Mexia Alves


Vai, Luís,
Para essa terra quente
Que viveu dor e sofrimento
Para se fazer País.
Vai e leva o meu abraço
Porque num dia,
Num momento,
Também aí fui feliz.


Passa por Mansoa
E sobe para Mansabá
E ao carreiro da morte
Pára e contempla
Das árvores do Morés
O seu porte.
Deixa uma lágrima
E um voto
Por todos os que aí ficaram.
Depois desce a Jugudul
E segue a estrada nova
Que tanto sacrifício me deu.
Passa por Portogole
E mais à frente um bocado
Sobe ao Mato Cão,
E fica ali sentado
Com uma cerveja na mão
A assistir ao Pôr-do-Sol.


Agora que vês Bambadinca,
Depois de parares um pouco,
Segue em frente
Pela estrada do meu suor
A caminho do Mansambo,
Que fica à tua direita.


Na Ponte dos Fulas
Vai a pé,
Ali para a tua esquerda,
Sim, dentro da mata,
Vá, anda,
Porque vais encontrar,
Se agora não me engano,
Uma mata de caju
Onde o macaco cão
Faz barulho que ensurdece.


Volta à estrada
Para o Xitole
E, quando lá chegares,
Senta-te naquela varanda,
Mesmo que destruída,
(reconheci-a entre mil),
E bebe por mim um uísque
Em memória do Jamil.


Segue para o Saltinho,
Banha-te naquelas águas
E não pares,
Arranja um barco
E sobe o Corubal.


Quando chegares ao Xime,
Desembarca na lama preta
E sobe por um bocado,
Apenas para ver a vista.
Regressa ao Geba.
Lá está a Nau Catrineta
Que tem muito que contar,
Embarca agora nela,
Deixa a maré te levar,
Porque assim à noite
Estarás em Bissau, a varar.


Já é tarde,
Estás cansado,
No físico, no coração,
Então senta-te no Pelicano,
E come…
Um ninho de camarão.


Vai, Luís,
Leva-me contigo,
Mata feridas, mata mágoas,
Mata saudades até,
E abraça por mim
A Guiné…

Joaquim Mexia Alves


Monte Real, 27 de Fevereiro de 2008



(ii)  Roteiro poético-sentimental

por Luís Graça


Passei por alguns dos sítios 
que tu me sugeriste,
a alta velocidade,
com enormes ganas de parar...
Quis controlar as minhas emoções,
quando a vontade era de chorar;
segui em frente,
mesmo querendo ficar;
não tirei fotografias,
com muita raiva minha,
por que me estava a armar em forte...
Tinha apenas em mente o sul,
nunca o leste,
nunca o norte...
Queria apenas mostrar a mim mesmo
que estava a passar o teste 
da catarse...
Que eu, de facto, 
já tinha esquecido a Guiné
e o seu cheiro a morte...

Não esqueci, claro está...
E a Guiné, para mim, era apenas o Corubal,
a perigosa margem direita do Corubal,
o Geba,
a Ponta Varela,
a maldita Ponta do Inglês,
o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole,
a tristeza
das  tabancas fulas em autodefesa,
o cerco ao regulado de Badora,
o estrangulamento do regulado Corubal,
o deserto do  regulado do Cuor...
A Guiné era o Geba,
o Xaianga,
o Geba Estreito,
Finete,
Mato Cão,
Missirá,
a Missirá do Tigre,
Santa Helena,
Mero,
Fá Mandinga,
a Fá do Alfero Cabral...


Ah!, e os Nhabijões,
de triste memória.
Era também Contuboel,
a do Renato Monteiro,
o homem da piroga.
Era também Bafatá...
Os tocadores de kora
e os ourives
e os ferreiros,
mandingas.
Ah!, o Bataclã,
e a sacana 
da amorosa Helena de Bafatá,
mais o bife com ovo a cavalo 
na Transmontana.
Era isto e pouco mais.



Joaquim, 
desta vez fui a Mansoa,
a Mansoa da tua CCAÇ 15,
onde nunca tinha ido...
À procura de bianda para o almoço,
imagina!...
Mas não segui para Mansabá
e muito menos para o carreiro
da morte no Morés...
Acabei por ir almoçar
ao restaurante 
do Hotel Rural de Uaque...


Tive depois um convite,
do camarigo Zé Teixeira
e do seu grupo de beduínos,
comilões,
para ir comer leitão a Jugudul…
Leitão em Jugudul, imagina!,
como antigamente,
o leitão dos balantas de Nhabijões,
atropelado pelo burrinho da tropa
(no relatório, alguém escrevia:
animal subversivo e suicidário)


Mas outros deveres,
os trabalhos do Simpósio Internacional de Guileje,
me retiveram em Bissau, 
num hotel todo chique, 
de muitas estrelas
num céu esburacado de papel de cenário...

Passei pelo teu/nosso Mato Cão,
pelos cerrados palmeirais do Mato Cão,
como cão 
em vinha vindimada,
vi o cotovelo do Geba Estreito,
onde nos emboscávamos,
para montar segurança às embarcações,
admirei a extensa bolanha de Finete,
passei por Bambadinca,
vi vacas,  magricelas,  a pastar
na imensão da sua bolanha,
triste bolanha outrora verdejante,
parei em Bambadinca no regresso,
revisitei as ruínas do meu quartel,
não ousei sequer entrar no meu antigo quarto,
não tive estômago 
ou sangue
ou fel
ou coragem 
ou sequer desejo...


Tomei a seguir  a estrada, 
alcatroada
(que não havia no nosso tempo)
de Mansambo - Xitole - Saltinho...
Não parei em Mansambo, 
por falta de dístico,
nem no teu Xitole.
Apenas no Saltinho, 
porque estava no programa turístico...
Mas lembrei-te de ti,
que me encomendaste
este roteiro poético-sentimental,
pedestre,
p'ra fazer ao pé coxinho...
Lembrei-me de ti 
e do David, o  Guimarães,
do Torcato, o Mendonça
do CMS,
o nosso Carlos Marques dos Santos,
do Mário, do Beja, do Tigre,
do Jorge,
do Bilocas, 
do Humberto, o Reis,
do Tony, o  Levezinho,
do cripto GG, 
o nosso arcanjo São Gabriel,
do Fernando Marques,
do Jaquim Fernandes,
do Tê Roda,
e de tantos outros,
sem esquecer o puto Umaré Baldé,
que a morte já levou, 
em Portugal,
nem muito menos o portuguesíssimo José Carlos,
de seu apelido Suleimane Baldé,
1º cabo, de 1ª classe,
um coração de ouro,
um homem doce,
enfim, todos os camarigos 
da minha CCAÇ 12,
e de outras unidades com quem convivi,
em Bambadinca,
e arredores,
entre Julho de 1969 
e Março de 1971...


Desculpa-me,
mas não bebi um uísque,
por ti e por mim,
à memória do Jamil.
Só bebi um uisquinho no avião 
de regresso a Lisboa,
que as bactérias e os vírus na Guiné-Bissau
é quem mais ordenam...
E eu que gostava tanto, como tu,
do nosso uísquinho,
(coisa boa, não é ?!),
com uma ou duas pedras de gelo 
e água de Perrier.


Não subi o Corubal, confesso,
mas fui a Cussilinta,
ver os rápidos,
a Cussilinta onde nunca tinha ido
nem poderia,
e foi com contida emoção
que revi os palmeirais
que bordejam o rio,
e o que resta da floresta-galeria...


Não, também não passei
pelo Xime,
nem pela Ponte Coli,
muito menos pela triste Ponte do Udunduma,
porque não é esse agora o caminho 
de quem agora vem de Bissau,
e estrada só há uma.
Não tomei o velho barco, 
ronceiro,
da outrora soberana e imperial Casa Gouveia
nem me sentei na esplanada do Pelicano,
como sugeria o teu roteiro.
E das ostras, só provei a sopa, 
uma colher,
na casa do Pepito,
no bairro do Quelélé...
Agora, vais a Quinhamel para comer ostras,
que a cólera é endémica na capital da Guiné!...


Como vês, fui frugal,
espartano,
sanitarista...
Fui mau.
Mas um dia prometo
seguir à risca
o teu plano, 
voltar ao Mato Cão,
e à bolanha de Finete,
e à Ponta do Inglês,
e à margem direita do Corubal...


Camarigo, 
já foram demasiadas emoções
para uma semana só...
Em todo o caso,
sempre gostei mais daquela terra
no tempo das chuvas
e do capim alto
e das miríades de insectos
à volta dos candeeiros 
na noite espessa e húmida...
Mas adorei,
confesso que adorei,
a tua sugestão,
o teu projecto,
o teu roteiro poético-sentimental...
Quem sabe, talvez o faremos
pelo nosso próprio pé...
Um dia destes,
nesta ou noutra encarnação, 
Tu, eu e a malta 
de Bambadinca,
da Zona Leste,
que é muita,
e que esteve no sítio tal e tal
e que faz parte da nossa Tabanca Grande...


Obrigado, Joaquim,
até pela ideia 
que aos 20 anos se poderia ser feliz.
Ou que a Guiné foi para ti, foi para nós, fado,
fatum,
destino,
destino que o Destino quis.
Vemo-nos em Maio,
no nosso III Encontro Nacional.



13 de Março de 2008 / Revisto hoje

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Notas de L.G.:

Último poste desta série > 16 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7447: Blogpoesia (96): Contrato com o Exército (Manuel Maia)

(*) Vd. poste de 9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez

 
(...) No percurso entre Bissau e Saltinho, não tomei grandes notas. Nem tirei fotos. A caravana seguia a boa velocidade. Fui em estrada alcatroada, ao longo do Geba, por sítios que não conhecia, com belíssimas bolanhas, sobretudo na região de Mansoa. No meu tempo, esta estrada, a norte do Geba, estava interdita. Para a Zona Leste ia-se de barco, até ao Xime, até Bambadinca, até mesmo a Bafatá...

Noto que as estradas modernas, como em toda a parte, atraiem as populações... Há mais tabancas, com maior risco de acidentes, à beira do caminho. Uma das nossas viaturas passou por cima de um cabrito. Ninguém porém parou. Há um membro do governo na caravana e leva escolta policial. Há também uma deputada, antiga combatente da liberdade da pátria...


Passo pela bolanha de Finete, agora com direito a tabuleta. Passo em Mato Cão e o Rio Geba Estreito ali tão perto... Imagino um comboio de barcos da Casa Gouveia a aparecer na curva do rio... E nós ou o PAIGC, emboscados. Passo ao largo de Bambadinca, sem aparente emoção. Mas tenho um pensamento positivo ao lembrar os velhos camaradas que andaram por aqui comigo... Cortamos para o sul, mais à frente, perto de Santa Helena, se não me engano...

Não dou conta de passar por Mansambo: do Xitole, retive apenas a fachada de uma mesquita que não existia no meu tempo... Entrevejo as ruínas do Xitole... Passo pelo Rio (seco) de Jagarajá e por Cambesse onde, em 15 de Maio de 1974, teriam morrido os portugueses em combate, segundo o José Zeferino ... A estrada antiga passava ao lado...

A viagem vale pelo Saltinho, o Rio Corubal, as lavadeiras do Corubal... Mas já não há a tensão dramática que percorria a fiada de palmeirais ao longo do Rio, no tempo da guerra... Há também maior desflorestação nesta zona. Os cajueiros são uma praga, na Guiné-Bissau. As bolanhas tendem a ser abandonadas ou a transformar-se em campos de cajueiros... Uma armadilha mortal para os guineenses, para a sua economia, para o seu futuro... O arroz continua a ser a base da alimentação do guineense, de Bissau a Bafatá... Arroz que é importado, em grande parte. (...)