sábado, 2 de outubro de 2010

Guiné 63/74 – P7070: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (22): A morte no final da comissão, Bissau, em 3 de Outubro de 1969


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Álbum fotográfico do Albano Gomes > Foto nº 10 > "O Obus 10.5, virado à fonte, que, conjuntamente com outro instalado do lado contrário do Aquartelamento, e quando manuseados pelo Pelotão de Artilharia ali instalado, faziam Manga de Ronco" (AG). 

Fotos (e legendas): © Albano Gomes (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os  direitos reservados.


1. Mensagem de Torcato Mendonça, de 28 de Setembro último:

Assunto: Destinos


Meu Caro Camarada e Amigo [Carlos Vinhal]: 


Antes que o mês acabe vou fazer paragem na sabática. Ou seja, envio um texto lamechas na leitura apressada. O 3 de Outubro está perto. Sabes,  aquele escrito e outros estão "aquietados". Mas li este e fiquei a pensar, a recordar. São coisas que só um homem sabe bem e, se for lido em linhas e entrelinhas ou se vai lá ou, em gente de certo passado como nós, estabelecemos analogias.

Tenho ultimamente lido mais ao correr do rato. Outros paro e consumo devagar. Concordo, discordo e,  como anteriormente disse,  não comento. É pior e fica-se a remoer. Há concepções...bem não adianto mais ou... delete. A pluralidade opinativa é um valor adquirido e tem toda a razão, Felismina, de existir. Mas será extensível a tudo o que aqui aparece. O "aqui" é o blogue.

Eu nem sei se estás ao serviço ou de serviço. Parto do princípio que sim e, como quase sempre peço,  diz se chegou...basta um Ok. Quanto ao anexo é vosso e dele fazem o que quiserem.

Ainda vou tratar de uns assuntos e já é 28 de Setembro

Abraço a ti e extensível aos Editores e a Todos claro está.
Torcato

PS- Esta Bolha pode ser a uma por semana. Serei capaz? Sem compromisso,  como sempre. 

 
2.  Estórias de Mansambo II > Logo Ali, o Vazio…
por Torcato Mendonça (**)

Alegre, sorriso fácil, normal gosto por festas e bailaricos. Cresceu na planície com horizonte largo, a cidade lá muito ao fundo, e, á noite, sentado no portal da casa, olhava as luzes da cidade a tremerem devido ao calor a sair lento, lentamente da terra quente.
Planície de terra negra, fértil, terra de barros e terra mãe a dar sustento a ranchos de homens e mulheres que nela trabalhavam.
Ele trabalhava-a com carinho, mesmo com jorna magra e quando o sol se começava a querer esconder no horizonte a casa voltava.
Recebeu, através da Junta de Freguesia, a carta a dizer que teria que ir para um quartel. Carta curta, simples e a partir daquele momento estava incorporado como militar. Assim, poucos dias depois beijou a mulher, tocou-lhe ao de leve na cara a desviar a lágrima que descia.
Partiu então e por lá andou, correu, saltou, aturou berros e gritos. Nada disse, quase nada sentia a não ser o desejo de voltar. Voltar para junto da mulher, da terra negra, afagar ambas e á tardinha olhar a planície sem fim.
Um dia disseram que teria que ir para África. Onde? África e Guiné.
Ficou triste. Voltou a casa por breves dias, olhava ternamente a planície, o horizonte e com a mulher ao lado sem nada dizerem. Sentia quanto aquela aproximação seria breve. Sentiam, ele e ela, de modo diferente tudo o que os rodeava. Guiné? África? Porquê?
Voltou a despedir-se da mulher, fez-lhe uma festa no ventre e sorriu. Sorriram ambos na angústia de um destino desconhecido.
Meteram-no num barco, barco enorme, barco prenhe de militares companheiros de viagem em porão mal cheiroso e, cada vez mais nauseabundo á medida que os dias passavam. Sulcavam mares como o seu povo há séculos fazia mas, ele e outros, certamente também de pronto dispensavam. Passaram os dias, lentos e numa manhã ouviram o grito de que estava terra á vista.
Olhou e ao longe viu a neblina a levantar-se da terra. Lembrou a sua planície e rápido desviou o pensamento.
Horas depois aí estava o barco parado, a azáfama do desembarque, o calor a encharcar o corpo, a humidade a fazer-se sentir. Olhava e sentia ser tudo diferente, tudo a nada lhe dizer, tudo a levar a questionar-se o que ali fazia.
Não o deixaram gastar muito tempo, em visitas, olhares ou pensamentos. Não tardou a ser metido num batelão de nome esquisito. Ele, viaturas, caixotes enormes e, claro, os seus e outros companheiros, que aqui eram camaradas, lá seguiram viagem. Desta vez, não por mar, mas por um rio enorme acima.
Foi parar a um quartel. Chamavam àquele amontoado de casas desgastadas, barracões e buracos enormes tapados por troncos e com valas, no chão abertas, quartel. Seria um quartel ou um aquartelamento. Tudo bem para ele.
Tudo diferente, tudo estranho, onde o horizonte era já ali baço e verde, com a floresta num verde-escuro a sobressair da terra vermelha e quente.
Os amigos eram os camaradas do grupo e da Companhia. Falavam, riam, tentavam adaptar-se e afugentar para longe as recordações do seu Pais.
O tempo passava lento, tão lento que, sem por isso dar, veio a carta e nela a nova de que era pai de uma menina.
Se até aí as saídas para o mato em operações, as colunas com muitas viaturas, os tiros e rebentamentos eram a normalidade daquele estúpido viver e até a vontade de rir ou sorrir iam desaparecendo, naquele momento ficou parado, quieto, olhar vazio. Não soube o tempo que assim passou. Despertou com o vozear dos camaradas e sentiu que as forças lhe fugiam corpo abaixo, a cara a ficar molhada, os cheiros a serem os da planície, da mulher, da terra negra. Sentiu-se só, demasiado só. Sentou-se e o corpo ali e ele lá, ele a lá voltar, não sabia quem já era, que fazia ali, que tinham feito dele, porque, em tão pouco tempo, vira tanta desgraça e tanta miséria. Sentiu medo, mais medo, medo de tudo e dele também.
A partir daquele dia sentiu-se outro, mais temeroso e a desgastar-se no tempo. Tempo a passar cada vez mais lento, tão lento.
Andava cabisbaixo, diferente e fazia contas ao tempo que faltava. Quanto? Um ano, seis meses, três?
Se saía para o mato sentia-se mais fraco, sentia mais o medo, os medos que todos sentem e mais os dele.
Recebeu a notícia com certa indiferença. Ia para Bissau para tratar e cuidar de teres e haveres dos seus Camaradas da Companhia. Tinha tantos meses de comissão e nunca vira Bissau, excepto, brevemente, ao desembarcar e nem dera para ver nada. Vida de soldado era difícil.
Passados dias aí estava Bissau. Habituou-se rapidamente e reaprendeu a sorrir. Os pensamentos continuavam caminhando para a sua planície, família e os seus camaradas no mato. Como a guerra ali era diferente. Guerra só de nome e gente com risos e vidas a correrem rápidas e alegres. Muito deles em passagem para voltarem ao mato, aos medos, á vida que dispensavam.

Naquela manhã saiu alegre. Entrou no jeep, o amigo a conduzir, Bissalanca logo ali. Estrada fora ele a dizer que teria o embarque daí a dois meses. Seria?

A hiena apareceu, o jeep guinou, saiu célere da estrada, o baga-baga parou-o. Da testa escorria-lhe um ligeiro fio de sangue. Talvez o seu último pensamento tivesse chegado á planície, á terra mãe, á mulher e a sua filha…talvez…

Nenhures ou entre o Alentejo e Bissau aos 3 de Outubro de 1969
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Nota de L.G.:

18 de Maio de 2010

Guiné 63/74 – P6423: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (21): Zumbidos em noite de Verão


(**) 

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/05/guine-6374-p6423-estorias-de-mansambo.html

(***) Na lista dos Mortos do Ultramar, organizada pelo portal Guerra do Ultramar, consta, no concelho de Beja, o nome de  José Francisco Gaié Casadinho, natural da freguesia de São Matias, sold da CART 2339, vítima de acidente de viação em 2 (e não 3) de Outubro de 1969. 

Guiné 63/74 - P7069: Recortes de imprensa (32): A guerra do José Casimiro Carvalho, CCAV8350 e CCAÇ 11, 1972/74 (Correio da Manhã)


1. O nosso Camarada José Casimiro Carvalho (ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAV 8350 - 1972/74 -, e dos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11) - Gadamael, Guileje, Nhacra, Paúnca, enviou-nos a história da sua guerra, tal e qual foi publicada no jornal “Correio da Manhã” (edição do dia 14 de Dezembro de 2008):









Um abraço,
José Carvalho
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAV 8350 e CCAÇ 11
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
27 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7042: Recortes de imprensa (31): A guerra do José Martins, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70 (Correio da Manhã)

Guiné 63/74 - P7068: In Memoriam (56): Cap Art Victor Manuel Ponte da Silva Marques (CART 3494, Xime, Agosto/Novembro de 1969) (Sousa de Castro)




O Cap Art Victor Manuel da Ponte da Silva Marques, em Quicua.Angola 1967/69, preparando-se para um jogo de futebol supostamente, vendo-se atrás o Tozé Santos.

Foto: Tozé Santos (2010) (Cortesia de Sousa de Castro)


1. Mensagem do Sousa de Castro, o nosso tertuliano mais antigo, a seguir ao Luís Graça, daí ter como  registo de matrícula, na Tabanca Grande, o nº 2...


Prezados editores,

Recebi de um nosso camarada d'armas,  Tozé Santos, que cumpriu serviço em Angola entre 1967/69,  fazendo parte da CART 1770, uma foto reproduzida em cima,  com a devida vénia, do primeiro Cmdt  (foram três) da CART 3494.

O Victor Manuel da Ponte S. Marques, que infelizmente já não se encontra no mundo dos vivos, usava muito a expressão "salta-me a cabeça"...

O Cap Art N Mº 51322811, Victor Manuel Ponte da Silva Marques, para além de ter sido o primeiro de três comandantes que passaram pela Cart 3494,  no Xime, Guiné, entre Dezembro 1971 a Agosto de 1972 tinha sido também Cmdt da CART 1770 do BART 1926 em 1967/69 em Quicua - Angola (Este batalhão, para além da CART 1770,  era composto pela CCS, CART 1769 e CART 1771).

Os outros Cmdt da Cart 3494 foram: de Agosto de 1972 a Novembro de 1972, o  Cap Art 04309164 - António José Pereira da Costa  [, nosso camarada na Tabanca ]; de Novembro de 1972 até ao final, Abril de 1974,  Cap Mil N mº 06383765 - Luciano Carvalho da Costa.


Ver aqui mais detalhes do BART 1926 (Batalhão de Artilharia 1926).

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Nota de L.G.:

(*)  Último poste desta série: 

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7067: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (34): Em Teixeira Pinto, círculo quase fatal

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 29 de Setembro de 2010:

Caro Amigo Carlos
Mais uma passagem de “Viagem…” que por certo não aconteceu a muitos.
Hoje, quando recordada dá vontade de rir… mas à época, foi um susto do “caraças”!!
Aqui vai e quem ler, se se imaginar no contexto, também talvez consiga pelo menos sorrir, que é do que quase todos andamos a precisar.

Um abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (34)

Teixeira Pinto - Círculo quase fatal

Nas bastantes operações que fazíamos na zona Oeste da estrada Teixeira Pinto - Cacheu (que denomino por inclusão, Balanguerês), as coisas nunca eram fáceis e por vezes tornavam-se bastante complicadas, desde logo pelo tipo de matas onde a dada altura éramos forçados a nos embrenhar, na tentativa de atingirmos os objectivos que nos tinham sido determinados e depois, por ser território de constantes movimentações inimigas.

Numa dessas ocasiões, o nosso objectivo era uma bolanha, onde o Comando supunha (sabia?) haver cultivo IN e como tal presença de população, guardada por elementos armados e nas proximidades eventualmente um acampamento.

Em Teixeira Pinto, como normalmente acontecia nessas ocasiões consideradas mais problemáticas, estavam meios aéreos de prevenção e Comando.

Depois de apeados, avançamos, os 1.º e 2.º GRCOMB, embrenhando-nos nas matas com os cuidados usuais, na esperança de não sermos detectados precocemente e emboscados.

Segundo dizíamos, caso não acontecesse nada, tínhamos que trazer ao menos uma mão cheia de vianda especial daquela área como prova de que lá tínhamos ido, não se desse o caso de termos que repetir a proeza logo de seguida, como já tinha acontecido por uma vez!!

O objectivo era na certa importante para o Comando já que o DO começou a breve trecho a dar sinal de si e... de nós, sobrevoando a zona intervaladamente em círculos, o que obrigou os banana a ficarem com perda de sinal ou tal interferência que não permitiam comunicação perceptível.

Pela tarde começou a dança e que dança, ao som de graves, agudos e secos.

O DO que por aquelas bandas esvoaçava, aparece e começa os círculos de águia apertados e a baixa altitude.

Ao meu lado, como de outras vezes, calha estar o Cancelo com o 60. Peço-lho e sigo com o olhar a granada que lhe meti pelas goelas e que ele vomitou na perfeição e trajectória prevista, próxima da vertical. Entra-me a águia no campo direccionado de visão, fazendo o seu círculo de observação alado e projéctil vomitado, aproximam-se em rota de colisão. Os meus olhos aguçam-se e ficam em bico, fixos no projéctil, todo o corpo me fica tenso, não posso fazer nada, ou por outra, posso fechar os olhos e por as mãos na cabeça para a proteger de destroços. Não o quero fazer e não o faço. Deus queira que não, rezo. Os sons da guerra parecem ter desaparecido. O olhar continua fixo. O zénite da trajectória do projéctil ocorre a dois, no máximo três metros da barriga do Dornier que continua o seu voo, indiferente, felizmente.

Nos meus ouvidos o barulho da guerra recomeça.

Se o piloto ou algum dos ocupantes se aperceberam do que se passou, devem ter apanhado um cagaço daqueles… pior do que o meu !

Esta cena, aconteceu pela tarde de 23 de Setembro 1971, na Península do Balanguerês (OP Açaimo 65).
Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7032: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (33): Teixeira Pinto - Perdidos (2)

Guiné 63/74 - P7066: Blogues da nossa blogosfera (38): Breve História da Tabanca dos Melros (Carlos Silva)



Com a devida vénia à Tabanca dos Melros, transcrevemos o seu poste 45 de 28 de Setembro de 2010, de autoria do nosso camarada Carlos Silva, que dá a conhecer a História desta Tabanca do Concelho de Gondomar.


45 - Breve História da Tabanca dos Melros*

Autoria de Carlos Silva

Penso que é tempo de fazer uma breve história da Tabanca dos Melros, explicando como surgiu e quais os seus objectivos a fim de os camaradas compreenderem melhor como se tem desenvolvido e consolidado a nossa camaradagem.

1 – Homenagem aos nossos mortos inscritos no Memorial em Fânzeres
A Tabanca nasceu em 2009 a partir de uma ideia que me atormentava há muito.
Pois todos tinham Tabancas e os gondomarenses não tinham porquê?
Isto porque sentia que neste aspecto os gondomarenses estavam/estão apáticos, embora presentemente estejam menos, como se vem sentindo, na medida em que, estão a aderir bem aos convívios.
Daí eu já ter lançado a ideia ao Albano Silva, que anda sempre atarefado e por isso em certo dia que estive em casa dele falei-lhe no assunto e do Carvalho das Medas.
Como ambos são autarcas, logo estabelecemos contacto e como coincidiu com uma 4ª feira, combinamos falar sobre fazer uma homenagem em Fânzeres aos nossos camaradas mortos no Ultramar.
Encontrámo-nos no “Milho Rei” os dois com o Barbosa e conversa puxa conversa e em dias posteriores pelo telefone e mails, lá se marcou a data 5-10-2009 para a realização do evento com a concentração e deposição de uma coroa de flores no Memorial de Fânzeres, seguindo o convívio na freguesia das Medas com porco no aspecto oferecido pelo nosso camarada Carvalho, que coincidiu com a grande procissão da Romaria da Nª Sª do Rosário em S Cosme, mas deu tempo para assistir a todos os eventos.
Para tal fizemos a respectiva mobilização com a publicação do evento no Site da Câmara Municipal de Gondomar e Juntas de Freguesia, bem como foram colocados cartazes por todo o lado incluindo cafés e através de passa-palavra.

Nesse dia ficou logo estabelecido que as freguesias de Gondomar organizariam no ùltimo fim-de-semana de Setembro de cada ano eventos semelhantes e os nossos camaradas de Jovim, Agostino Reboredo e Albano Silva assumiram de imediato esse compromisso para a realização em 2010 e Valbom seria em 2011, entretanto, posteriormente ficou a freguesia de S Cosme de através do Joaquim Martins realizar o evento e assim está combinado.

2 – Criação da Tabanca dos Melros

Em 31-10-2009, fui almoçar ao Choupal dos Melros com 2 colegas da Esc Ind e Com de Gondomar que não via há 40 anos, sendo um deles um “Melro” assíduo, o António Silva de Valbom.
Nesse almoço, como gostei do espaço, em conversa com o nosso amável amigo /camarada Gil lancei o repto de criarmos uma Tabanca dos Gondomarenses e realizar naquele local maravilhoso os convívios, o que ele aceitou de imediato.
Daí lancei o repto a outros camaradas, incluindo o nosso amigo/camarada Jorge Teixeira e outros que sempre me apoiaram na iniciativa.
Em 5-12-2009 face a toda essa movimentação e efectuados os primeiros contactos, realizámos o 1º convívio e a partir daí até hoje.
Neste excelente convívio, aliás como têm sido todos, consagramos o nome da Tabanca e a periodicidade da realização dos almoços/convívios para o 2º sábado de cada mês excepto em Março e Setembro.
O nosso objectivo foi única e exclusivamente aglutinar/aproximar principalmente os camaradas gondomarenses e claro por arrasto, todos os outros nossos camaradas que queiram conviver connosco.
Não existem outros objectivos.
No entanto, com o andar da carruagem num dos convívios em que esteve presente entre outros o Cor Coutinho e Lima, lançámos a ideia da criação de um Museu do Combatente que está a dar os seus primeiros passos e a colher os seus frutos, tendo nosso amigo/camarada Gil de imediato correspondido ao nosso pedido, disponibilizando para o efeito um espaço.
Assim tem decorrido e espero e lutarei nesse sentido para que assim continue, pois não nos move outros objectivos.
Aliás, estas ideias base foram muito bem esclarecidas e precisas neste último convívio.

Daqui resulta claro que os nossos objectivos/princípios enquadram-se ou são semelhantes em parte aos de outras Tabancas que também prosseguem outros objectivos.
Nós temos o nosso rumo traçado, tal como outras Tabancas e não há concorrência entre as mesmas, como tenho referido muitas vezes em vários fóruns.
Daí cada uma segue o seu caminho e estabelece os seus eventos como bem entender e quando entender, mesmo que aconteça em datas coincidentes com o de outras Tabancas.
Só cabe aos camaradas tomarem as suas opções quanto a estar presente num lado ou noutro.
Nenhuma das Tabancas está subordinada a outra ou ter de conciliar ou marcar eventos para alturas diferentes.
Faço esta breve História da nossa Tabanca para que comece ser mais conhecida e os seus objectivos, apelando à aderência dos meus camaradas conterrâneos, bem como, a todos os nossos outros camaradas e amigos que connosco queiram conviver trazendo a sua alegria.
Apelo também, como tenho feito até aqui, que contribuam com o seu espólio militar e de guerra para o crescimento do nosso Museu.
Com saudações amigas
Carlos Silva

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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7013: Blogues da nossa blogosfera (37): Os Abutres de Cabuca, 2ª CART / BART 6253, 1973/74

(*) Enviado por Jorge Teixeira (Portojo)

Guiné 63/74 - P7065: Contraponto (Alberto Branquinho) (15): Chegada à Guiné (Planeta África)

1. Mensagem de Alberto Branquihno (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 28 de Setembro de 2010:

Caríssimo Carlos
Estou a enviar, junto a este, o texto do CONTRAPONTO (15) - Chegada à Guiné (Planeta "África"), no qual tentei reverter minudências que me vieram à memória quando escrevi o anterior.

Um abraço
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (15)

CHEGADA À GUINÉ (Planeta “África”)

Que informação era dada às tropas sobre os territórios africanos onde, dentro de pouco tempo, iriam atracar? – Nenhuma!
Nem sobre as gentes nem sobre o clima nem sobre a insurreição militar e política existente nessas terras.

Só a bordo do navio e no dia anterior à entrada no porto de Bissau, os capitães chamavam os alferes e os furriéis milicianos para dizer umas generalidades sobre a realidade local que os esperava dentro de algumas horas. (E recordo: - Você pode ir embora, porque sabe mais disto do que eu).
Para a tropa, África era uma terra habitada por pretos e onde fazia “um calor do caraças”. E era tudo.

Foto: © Paulo Salgado (2010). Todos os direitos reservados.


A chegada

Imaginemos, então, a rapaziada, acabada de atracar ao planeta “África”, com pouco mais que 20 anos, a chegar a terra e a olhar em volta. (Não existiam na Guiné – nem existem – as grandes metrópoles de outras colónias Portuguesas ou de outros países africanos, nas quais constatamos estar em África somente porque há muitas pessoas de raça negra nas ruas). No nosso caso nem por Bissau passámos. Desembarcámos do Uíge para barcaças que nos levaram, Geba acima, directamente para o interior. A imediata observação da realidade local foi: o contacto “agressivo” com os “velhinhos”, a população próxima, o calor, os cheiros, a sensação de sede africana. Depois veio a diferente fauna, flora, os costumes, a religião… Aquela África rural, interior, quase primitiva foi um espanto. Os peitos nus das raparigas e das mulheres grandes, homens que tinham várias mulheres (e que viviam juntas!). Raças que conviviam com dificuldade.

Foi a observação de tudo o que era exterior ao quartel durante as primeiras saídas para o mato… enquanto não houve tiroteios. A beleza das paisagens, a exuberância e variedade da vegetação, a primeira observação dos babuínos (macaco-cão).

- Aqueles filhos da puta até parecem gente.

Os saguis, “macaco-gato”, macaco de tarrafo… A macacada toda. Os répteis – cobrinhas, cobras médias, cobras grandes, finas, grossas, amarelas, amarelas-esverdeadas, etc. E os lagartos.

– Olha este cabrão a fazer flexões! Paga dez!

E o lagarto, ansioso, lá fazia não dez flexões, mas quatro ou cinco. Dava uma corridinha e – mais duas ou três. Gargalhadas. Mais tarde aprenderam que, se não fizessem gestos bruscos, eles vinham comer os pedaços de pão que lhes atirassem para o chão. Como os gatos e os cães na “Metrópole”.

Com a proximidade dos rios conheceram o risco dos crocodilos ou jacarés, que nadavam mansamente, mas atacavam sem avisar.
A progressão nas matas, mais ou menos densas, trouxe os primeiros sustos causados por porcos-de-mato ou veados em fuga.
Tudo tão diferente!


No reino das aves e dos insectos

Mas África é, em grande parte, o reino das aves e dos insectos.
A variedade de aves ocupava os olhos pela diversidade, diferentes tamanhos, cores e cantos.
Os periquitos, a que havia que ensinar tudo (como à tropa nova, com fardas verdinhas, novas), eram relativamente fáceis de capturar e muito apreciados. Muitos soldados adoptaram um, que era, a assim dizer, a família… de cada adoptante. Eram apaparicados e protegidos até à irracionalidade.

Falando de insectos

Quanto aos insectos, a diversidade era tanta que estonteava um homem. Estavam, de certo modo, mais próximos que as aves, mas, devido à pequena dimensão, eram menos notórios. E a diversidade dos insectos existia mesmo dentro da mesma espécie. Gafanhotos, por exemplo. Uns eram pretos, outros pretos com manchas amarelas. Havia, também, verdes, verdes com manchas rosa, amarelos com manchas verdes, verdes com manchas pretas…

Pedi ao furriel enfermeiro um frasco com formol, onde fui colocando um exemplar dessa diversidade de gafanhotos, que pretendia trazer nas férias. Com o começo da guerra a sério e com tantas andanças e mudanças, o frasco ficou esquecido em qualquer lugar.

E a variedade de formigas?

Desde uma formiga anã, insignificante, à construtora da baga-baga, ao tamanho intermédio, até àquelas grandes, pretas, com grandes cabeçorras e grandes pinças na cabeça. Subiam pelas pernas tão sub-repticiamente que ninguém as sentia, até que, já em número considerável, atacavam selvaticamente o escroto com as tenazes, como se ele fosse um animal suculento, capaz de fornecer proteínas a um formigueiro de milhões. O homem assim atacado, largava a arma, despia-se (da cintura para baixo) em menos de um décimo de segundo, berrando furiosamente das dores, ao mesmo tempo que esfregava, violentamente, virilhas, testículos e toda a zona púbica, desfazendo em pedaços as formigas agressoras.

A primeira vez que testemunhei uma coisa destas foi quando gritos quebraram o silêncio de muitas horas em emboscada. Ficámos apatetados a olhar na direcção dos gritos, sem possibilidade de vermos devido à vegetação, sem saber se devíamos abrir fogo, pensando que o rapaz estava a ser “agarrado à mão”. Um soldado milícia tentou esclarecer-nos com um sorriso irónico:

- Formica, noss’alfero.

- Quê?!

- Formica…

Os soldados olharam-me. Fiz-me de entendido, mas não entendi nada. Certo é que depois de tanta gritaria, não era aconselhável continuarmos ali. Levantámos a emboscada.

Só mais tarde (e por experiência própria) compreendi o sofrimento. Se nunca experimentaram, não o desejem. (Parêntesis – mesmo sendo mulheres, porque, pelo que me informaram, como as mulheres não têm… escroto, as formigas também mordem, mas nos… arredores… onde ele estaria, se fossem homens). A solução para evitar esses ataques é simples – meter as calças por dentro das meias.

E as abelhas, senhoras e senhores?

Abelhas, vespas, abelhas doudas, abelhas bravas ou o que lhes queiram chamar.
Inquietá-las é um risco. Quer dizer: praticar qualquer acto do qual resulte que elas “possam pensar” que estão a ser atacadas. Da fila, em progressão
na mata, os trinta a quarenta mais próximos ficavam com “direito” a vinte ou trinta abelhas cada um. Acabávamos picados e bem picados, apesar da rede mosquiteira à volta do pescoço, mangas puxadas abaixo, golas levantadas e quicos enterrados na cabeça. Tudo isto minimizava mas não evitava ser picado, as dores e algumas partes do corpo inchadas. Por causa das alergias ou excesso de picadas por vezes verificaram-se mortes. Pior que tudo era tentar afastá-las com qualquer objecto ou correr de um lado para o outro (com o risco acrescido de pisar ou tropeçar em minas). Era aconselhado deitar no chão e permanecer imóvel… apesar de picado.

Imagine-se um ataque de abelhas debaixo de fogo (p. ex. caindo em emboscada), situação criada pelo IN, que disparava sobre os ninhos construídos nos troncos das árvores.

Depois de um ataque de abelhas, regressei ao quartel no dia seguinte, no final da operação, com o pescoço e cara de tal modo inchados que não conseguia abrir os olhos. Tive que caminhar com a arma em bandoleira no ombro direito e, com a mão esquerda, manter puxada para baixo a pálpebra inferior do olho esquerdo, espreitando por uma fresta.

O terror que as abelhas causavam aos soldados nativos era tal que, mal as pressentiam, fugiam aterrorizados para a frente da coluna aos gritos:

- Baguera!!! Baguera!!!

Continuando a falar de insectos, pergunto: Será que, alguma vez, observaram a “residência” da matacanha?

Todos viram a infecção causada pela matacanha alojada nas unhas dos pés, nas dobras dos dedos dos pés e nas nádegas das crianças (que brincavam sentadas no chão). E todos viram a mestria com que os nativos extraíam a matacanha ou a “maternidade” que ela tinha instalado nos locais acima referidos. Mas onde vive a matacanha fora desses locais do corpo humano?

Observando o chão durante a época seca, vêem-se de onde em onde uns pequenos buracos de meio centímetro de diâmetro na parte superior e que para baixo, com uma profundidade de alguns milímetros, toma forma cónica. Pois é no bico desse cone invertido que a matacanha vive, aguardando as presas, que serão de dimensões mínimas, pois ela tem o tamanho de um milímetro, mais ou menos.

Se agarrarmos uma formiga pequena e a colocarmos dentro do cone, a matacanha agarra-a e sacode-a, demonstrando uma força que não se imaginava possível para o seu tamanho.

Se lhe taparmos o habitáculo com terra, ela sacode os pequenos grãos de terra para cima, para um lado e para o outro, reconstituindo o cone e, se estivermos atentos, notamos o movimento das partículas quando ela se realoja no bico do cone, voltando TUDO ao sossego anterior.

Experiência - identificação da matacanha: Com um pedaço de papel branco, com mais ou menos, dois centímetros de largura, passemo-lo mesmo por baixo do habitáculo de uma matacanha, puxando, depois, cuidadosamente o papel com a terra para cima. Afastando, cuidadosamente, a terra ao longo do pedaço de papel, é possível identificar a matacanha a movimentar-se (desesperada) a céu aberto.

Destas experiências ficou-me uma “dúvida existencial”: não sei como a matacanha sobrevive no chão lodoso durante a época das chuvas.

Continuando a falar de insectos, deixei para o fim um exemplar que todos os que passaram e passam por aquela terras sofreram e sofrem:

– Sª.Exª., o MOSQUITO !

Mesmo aqui, na nossa terra, é melga, teimoso, persistente, chato e perigoso. E tornou-se mais comum devido ao aumento das temperaturas durante o Verão.

Na Guiné, no sul mais a sul, abundava, por vezes, em nuvens. E, como dizia um soldado nos nossos primeiros dias de Guiné:

- Estes gajos não aguentam uma cachaporra, mas mordem p’ra carago!

O mosquito era omnipresente como Deus, pelo menos nas terras do sul mais a sul – estava em todo o lado e ao mesmo tempo. Era impossível fugir-lhes. A quantidade era tal que nem mosquiteiro nem LION BRAND nem repelente nos livravam absolutamente deles.

À noite ou ao anoitecer, em operações militares, principalmente em emboscadas nocturnas, tentava-se evitar as picadas com rede mosquiteira à volta da cabeça, mas a rede não era tão apertada com seria necessário, porque diminuía a visibilidade. Por outro lado, o repelente, colocado na cara, só actuava durante algum tempo e cheirava muito mal para… os repelir. Na manhã seguinte o pessoal regressava com a testa, orelhas e faces cheias de pequenos relevos esbranquiçados e comichosos.

Conheci um capitão miliciano que se “alimentava” de whisky e que dizia que todos os mosquitos que o picassem já não voavam, pois, de imediato, cairiam bêbados no chão.

Do paludismo (ou malária) todos ouvimos já falar, mas só quem o experimentou entende como é aquela noção de “apocalipse”, de fim de mundo, os picos de febre e os tremores, que fazem tremer a cama do doente como se fosse um terramoto.

Muitas histórias se contam de pessoal “apanhado pelo clima” naqueles tempos de guerra, mas a mais surrealista que conheço é de um alferes que, tendo as paredes e o tecto do “quarto” pejadas de mosquitos, cheio de sono e não conseguindo dormir, puxou da G3 e atacou-os às rajadas.

Acabadas estas minudências, muito mais diminuídas por serem acerca desses seres menores chamados insectos, é tempo de regressar.

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Não fosse a guerra, as dificuldades de mobilidade que ela provocava e as preocupações que causava (ocupando tempo e mente), para muitos e naquela idade, a descoberta daquela terra teria sido uma vivência extraordinária.

Na Guiné (Planeta “África”) nos fizemos homens como consequência de tudo o que vivemos. Teria sido bem melhor termos “crescido” num ambiente de paz.
Pena foi não terem sobrevivido todos e outros terem regressado afectados no corpo e na alma.

Alberto Branquinho
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6944: Contraponto (Alberto Branquinho) (14): Discorrendo sobre a(s) água(s) na Guiné

- Fotos retiradas da internete, com a devida vénia aos seus autores

Guiné 63/74 - P7064: Notas de leitura (152): Memórias e Reflexões, de Juvenal Cabral (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2010:

Queridos amigos,
Li Juvenal Cabral com imensa surpresa. As autoridades de Cabo Verde dizem estar a prestar homenagem ao pai daquele que foi o fundador de duas nacionalidades.
Lendo esta colectânea de memórias, ficamos com o quadro do intelectual cabo-verdiano do seu tempo, um “civilizado” que se orgulhava de Cabo Verde e Portugal.

Um abraço do
Mário


Juvenal Cabral, o pai de Amílcar Cabral

Beja Santos

O escritor Juvenal Cabral nasceu em Cabo Verde, foi ainda criança para Portugal, regressou depois à sua terra natal, onde frequentou o Seminário-Liceu de S. Nicolau e aos 22 anos embarcou para a Guiné, onde fez um périplo entre Bolama e Bafatá. Mais tarde, regressou a Cabo Verde onde se revelou muito activo na defesa dos interesses cabo-verdianos. O Instituto da Biblioteca Nacional, de Cabo Verde, editou em 2002 as suas impressivas “Memórias e Reflexões”, inicialmente publicado em 1947, na Cidade da Praia. Falando da Guiné, Juvenal Cabral mostra como procurou servir a nação portuguesa e, diz ele, “transformar em cidadãos prestáveis puros gentios da tribo” e mostrar a sua admiração pelos encantos naturais deste coração da Senegâmbia, recordando até a peregrina formosura de uma adolescente fula. Apresenta-se como um simples recruta entre os escritores que, garbosamente, enfileiram na ala dos profissionais da pena.

São memórias e reflexões onde ele nos fala de Rufina Lopes Cabral, que pertencia a uma família de lavradores da Ribeira do Engenho, na ilha de Santiago. Uma senhora rica e sua madrinha, D. Simoa dos Reis Borges Correia, mandou-a estudar em S. Tiago de Cassurães, perto de Mangualde, tinha ele oito anos. Recorda mestres e amizades feitas no seminário de Viseu. Nostálgico, diz que passou aqui os melhores anos da sua vida. Descreve Viseu como a rainha da Beira. De regresso à ilha de Santiago, vai para o Seminário de S. Nicolau, a experiência corre mal. Em Abril de 1911, segue para a Guiné, com destino a Bolama. Transforma-se num funcionário público, amanuense da Câmara com um ordenado de 15 000 Reis. Aqui esteve 45 dias e depois passou para a Fazenda, colocado como aspirante provisório. Outra experiência que não correu lá muito bem. Seguiu para alfândega. É então que Juvenal Cabral se tornou professor primário. Foi nomeado professor da Escola de Cacine em 1913. Ele escreve: “Cacine, a circunscrição civil ao tempo menos movimentada, não tinha, como nunca teve, fauna escolar apreciável. Dedicando-me, pois, ao ensino da meia dúzia de alunos que compunham a frequência, não deixava de ocupar-me no cultivo de um quintal, cuja produção – mandioca e batata-doce – constituía precioso reforço à minguada verba do meu vencimento oficial. Monótona, aborrecida por vezes, era a vida em Cacine. Se contássemos – administrador, amanuense, telegrafista, chefe do posto aduaneiro, professor, enfermeiro e um comerciante – teríamos concluído o recenseamento da população que, com a reduzida família, habitava as cinco existentes na sede da circunscrição. A presença do Capitão Teixeira Pinto, que ali fora, a fim de meter na ordem uns chefes desobedientes, foi o acontecimento mais notável que se verificou em Cacine, durante a minha permanência ali como funcionário”. Foi depois transferido para Buba, antigo presídio, que ele descreve assim: “O que resta da sua antiga magnificência não é hoje mais do que a carcaça de um velho gigante que, nos primeiros séculos da colonização portuguesa, proporcionou riqueza e renome a todos os obreiros do seu desenvolvimento e grandeza. A nova escola que eu ia dirigir não tinha, mau grado, frequência superior à da que eu acabava de deixar. À excepção de quatro ou cinco civilizados, apenas dois gentios, filhos de régulos, se matricularam. Do facto, nasceu, arreigando-se, a minha convicção de que uma escola entre gentios – excepção feita de Missões devidamente organizadas – somente poderia produzir frutos apreciáveis, se a obrigatoriedade de ensino, assegurada por um meio de severas sanções, fosse uma realidade da Guiné”. Descreve alguns episódios picarescos de dois alunos filhos dos régulos de Forreá e do Corubal. A seguir é colocado na escola de Bambadinca e mais tarde em Bafatá, onde vai nascer Amílcar Cabral. É um capítulo riquíssimo, vale a pena desenvolvê-lo no post seguinte.

Juvenal Cabral, depois desta experiência como professor na Guiné, como se disse, regressa a Cabo Verde. É uma experiência de grande importância, mas o que escreveu e como participou na vida cívica e literária não cabe neste blogue. Leopoldo Amado já tinha chamado a atenção para o vulto cultural que foi Juvenal Cabral, cabo-verdiano fervoroso, que deixou este testemunho, como ele escreveu, a enaltecer a pátria portuguesa.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7058: (De) Caras (3): A emboscada em Malandim e a descontrolada reacção do 1º Cabo Costa, na noite de 3 de Agosto de 1969: Branco assassino, mataste uma mulher (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 27 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7045: Notas de leitura (151): Manual Político do PAIGC (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7063: José Corceiro na CCAÇ 5 (17): Coincidências no dia 3 de Agosto de 1970

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 28 de Setembro de 2010:

Caros amigos, Luís Graça, Carlos Vinhal, E. Magalhães.

Tinha este artigo já redigido de forma a poder ser editado, no dia 3 de Agosto de 2010. O objectivo, com a provável edição, era prestar uma singela homenagem aos camaradas envolvidos nos acontecimentos aqui narrados, e concomitantemente recordar a data em que fez 40 anos que ocorreram esses factos. Quero particularizar, que foi o dia 3 de Agosto de 1970, o dia mais trágico que eu vivi no Teatro Operacional de Guerra na Guiné.

Não enviei o artigo para edição, porque não consegui, atempadamente, encontrar no meu espólio da Guiné, uma única foto do Furriel João Purrinhas Martins Cecílio, um dos infortunados homens que infelizmente perdeu a vida no rebentamento da mina anti-carro que deflagrou nesse dia. Visto já ter ultrapassado essa contrariedade, aqui estou eu a endereçar o artigo para publicação, caso entendam que merece.

Um abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (17)

COINCIDÊNCIAS NO DIA 03 DE AGOSTO DE 1970

São coincidências… ou é o preço a pagar pelo privilégio de se pertencer ao Reino dos Seres Vivos!? É a Vida… e nada acontece fortuitamente, provavelmente muitos o afirmarão! Outros, não sei se mais convincentes ou não, atribuirão o ocorrido ao destino que está marcado, à sina que está escrita, ao acaso, ao inevitável, ou por se estar à hora certa no lugar errado! Pese ainda, que alguns mais assertivos defenderão que é a lei natural da Vida! E dirão: Que tudo se destrói, tudo perece, tudo passa, tudo se transforma, nada se perde!

A Natureza é dinâmica!
A seu tempo todos temos a nossa hora…
O tempo não pára e diz tudo à posteridade! O Tempo dura sempre…!

Há acontecimentos marcantes, muito especiais no quotidiano da Vida de cada um de nós, que em determinados momentos nos levam a cogitar e questionarmo-nos, se realmente na nossa vida nada acontece aleatoriamente? Será que por vezes o ser humano comete o erro de tentar tirar da cabeça aquilo que lhe não sai livremente do coração? Para o ser humano atento, comum mortal, é intuitivo que fé e demonstrações matemáticas são matérias inconciliáveis..! Acreditar nos fenómenos que são possíveis e susceptíveis de análise, é objecto de estudo da Filosofia.

Foto 1 > A alegria esfusiante, do Fur Gonçalves a vibrar com o seu violão improvisado. Da esquerda para a direita a seguir ao Gonçalves: Furs. Adelino, Gil, Laminhas, Borges e Rito.

Foto 2 > A tentar gravar em suporte magnético, melodias do Cancioneiro de Canjadude. A expressão eufórica e incontida, do Alf. Sousa, a braços com a sua inseparável viola. (Ainda hoje, não só em terras Algarvias, onde reside, mas por todo o País e estrangeiro, continua ligado á arte da música e a dar espectáculos). A seguir ao Alf. Sousa, o Cap. Arnaldo Costeira (hoje Coronel na reserva) a entregar uma garrafa ao sempre discreto Fur. Perestrelo, a seguir Alf. Varela e no canto direito sentado o Fur. Vieira da Silva.

Estamos no Aquartelamento da CCAÇ 5, em Canjadude, no dia 1 de Agosto de 1970, Sábado. Logo pela manhã, depois do pequeno-almoço, veio ter comigo o meu estimado amigo 1.º cabo Enfermeiro, Carlos Alberto Leitão Dinis, e perguntou-me se tinha a máquina fotográfica carregada com o filme, e se fazia o favor de durante o dia lhe tirar uma série de fotos. Respondi afirmativamente à questão, sem nunca ter pensado que ele desejasse tantas e tão variadas poses para ser fotografado. Eu, por cautela, estou sempre prevenido com três ou quatro rolos de películas negativas virgens, de reserva, para imprevistos fotográficos. O Dinis é raríssimo tirar uma foto, muito poucos, ou talvez nenhum camarada em Canjadude terá a regalia de ter uma foto dele, que não tenha sido disponibilizada por mim. Acertámos que nos próximos dias, (tirei-lhe fotos nos dias 1 e 2 de Agosto) logo que houvesse disponibilidade, de forma a não interferir com as nossas tarefas de obrigação militar, ficava ao inteiro dispor do amigo Dinis para retratar o que ele achasse conveniente, de forma que tinha ali, praticamente um fotógrafo privado. Ele próprio começou por ir seleccionando os locais mais diversos que serviam de cenários para o enquadramento das fotos, entre os quais: aquartelamento, abrigos, refeitório, matraquilhos, enfermaria, rochas, bolanha, lavadeiras, tabanca, pilar arroz, crianças nativas, pista aérea, picada do Cheche, picada Nova Lamego, ponte do rio de Canjadude, rio, bananeiras, etc.. Mudou 4 ou 5 vezes de vestuário enquanto durou a sessão de fotos, duas vezes com roupa civil mudas diferentes, e 3 com uniforme militar distinto. Ele escolheu diferentes lugares e variadas posições para ser fotografado, e algumas vezes em condições menos propícias para a qualidade da imagem, porque as radiações solares estavam a incidir praticamente na vertical, concentrando grande densidade de raios ultra-violetas que prejudicam as reacções químicas nos negativos quando expostos à luz, ainda que eu utilizasse um filtro UV na objectiva, mas mesmo assim os contrastes e as sombras ficam muito acentuados.

Influa embora, que eu o tenha alertado para este inconveniente, pois nunca gostei de tirar fotos com Sol na vertical, (entre as 11h00 e as 14h00/15h00) que torna as tonalidades menos suaves, mas ele não se preocupou com a minúcia. Até fotos ele virado de costas para a câmara me pediu para lhe tirar. No período de tempo que andei a tirar fotos, nunca nas feições do Dinis se vislumbrou o mais ténue esboço para sorrir, ainda que aparentasse tranquilidade e paz de espírito. Eu em tom de gozo, para criar ambiente e ver se lhe arrancava um suave gracejo que fosse, para tornar o momento mais distenso, reacção que nunca consegui, dizia-lhe mangando que ele devia ter muitas namoradas para enviar fotos para todas, porque estava a obter tantas, tão consecutivamente e com tal pressa. Eu insistia e provocava-o galhofando dizendo-lhe, que era natural que ele não tivesse “pedalada” para todas as miúdas, e que me podia dispensar alguma porque eu andava carenciado. Ele determinado e impassível, algo melancólico, ainda que ostentasse um semblante sereno, embora se adivinhasse nele um pensamento distante, expôs-se para ser fotografado sempre só, sem pretender enquadrar nas fotos, outros camaradas militares, excepto uma vez nas mais de 70 fotografias tiradas durante os dois dias, praticamente gastou-se um filme de negativo de 36 exposições.

Foto 3 > Cabo Carlos Alberto Leitão Dinis

Foto 4 > Única foto que tirei ao Dinis, enquadrado com outros camaradas de Canjadude. Da direita para a esquerda: Cabos, Viriato, José Carlos Freitas (jogador do V. de Guimarães), Montóia (jogador do Leixões, de etnia Cigana, que ainda hoje faz as feiras de Matosinhos), Cóias, Dinis, Dias, não me recordo do nome do camarada que está ligeiramente atrasado entre o Dias e o Dinis, assim como não recordo o nome, do condutor, que tem a G3 na mão. O nosso atrevimento e irresponsabilidade, ao irmos para o rio junto à ponte, como se fôssemos para a praia, só com uma G3.

A máquina utilizada foi uma Olympus Pen FT, que tem a particularidade de duplicar os fotogramas negativos do filme de 35mm, nela usado, uma vez que a superfície do filme que é exposta à luz que sensibiliza os sais de nitrato de prata da película, têm o formato de 18mmX24mm enquanto o formato vulgar é 35mmX24mm. Quando se faz o disparo que abre a cortina da máquina, (o obturador) a superfície do negativo, (o fotograma) que é exposto e sensibilizado pela entrada da luz que passa pela abertura, variável do diafragma, é metade da superfície que é habitual nas tradicionais máquinas de filme de 35mm, esta minudência tem vantagens e desvantagens.

O Capitão Arnaldo Costeira, Comandante da Companhia, está de férias, estando a desempenhar interinamente as suas funções o Alferes Deodato dos Santos Gomes, que é o Alferes mais antigo da CCAÇ 5.

A actividade operacional militar em Canjadude tem sido muito intensa, havendo saídas para o mato ininterruptas, que têm provocado muito desgaste físico nos operacionais, atendendo ao estado de alagamento em que se encontram as Bolanhas que dificultam o caminhar, exigindo um esforço suplementar para se poder progredir.

Vestígios da presença do IN na nossa área não têm sido praticamente detectados, o que para alguns já é gratificante, pois já desde o dia 12 de Setembro de 1969, dentro dum mês e pouco faz um ano, que não tem havido na zona de patrulhamento da CCAÇ 5 nenhuma actividade IN.

Já praticamente há 3 meses que se mantém em rotatividade um pelotão da CCAÇ 5, quase permanentemente, a reforçar a segurança a Nova Lamego. A actividade do IN nos Quartéis das redondezas de Canjadude têm-se manifestado com flagelações aos Aquartelamentos, e nas picadas tem havido alguns rebentamentos de minas anti-carro.

Tenho acompanhado com assiduidade as diversas actividades operacionais para o mato, por toda a nossa área, que é muito abrangente e vasta, pois somos um Destacamento periférico e temos uma superfície territorial de patrulhamento, da nossa responsabilidade, cuja extensão é limitada pela linha do perímetro, cujo raio é quase constante, com 20 ou 25km, com centro em Canjadude. Confinamos a Sul com o rio Corubal, para lá do qual só forças heli-transportadas conseguem penetrar, que é a região de Madina de Boé. Surpreende-me com toda esta persistente operacionalidade nas zonas do Bormeleu, Siai, Cheche, não haver alguns contactos físicos com o IN, mesmo que esporádicos, é estranho esta tranquilidade neste amplo espaço com esta densa mata. É minha convicção, quase certeza, que o IN deve ter arraiais alojados por aqui bem perto, pois por vezes no nosso equipamento de transmissões são captadas mensagens, supostamente do IN, ouvindo-se um só interlocutor com fonia tão audível e sem ruído, que abafa outra qualquer recepção, por vezes mais parece que estão a emitir aqui ao virar da esquina.

Dia 2 de Agosto de 1970, logo de manhã cedo saiu de Canjadude uma coluna para Nova Lamego, com o pelotão do Alferes Alexandre Rodrigues Martins, com o objectivo de ir render o GCOMB do Alferes Anibal Afonso de Sousa, que já quase quinze dias que está a reforçar a segurança de Nova Lamego. É de salientar que os militares nativos destes pelotões que ficam em Nova Lamego revezadamente, têm as suas famílias e mulheres em Canjadude, e nestas circunstâncias, com os maridos ausentes, o respeito por parte das mulheres e dos homens também, fica um pouco distante e ausenta-se, todos estão conscientes disso, pois somos jovens e as gónadas funcionam, produzindo as hormonas que estimulam e desencadeiam desejos impúdicos, e há quem se desforre, fria e “cavalheirescamente”, aproveitando esta oportunidade e situação. Uns abusam por carência ou afirmação e satisfação pessoal, ou porque é uma necessidade natural que se conforta mutuamente. Outros ousam abusar, alternando com o mesmo comportamento do semelhante, para apaziguar a vingança, por terem sido também eles traídos. Além desta insegurança e tensão psicológica, acentua-se o desgaste físico, ao estar em Nova Lamego, mais nas tropas nativas, não só com a intensa actividade operacional, que é diária, mas também porque todos os militares nativos são desarranchados, e é lógico que sem a família e amigos por perto, a alimentação praticada é bem mais desajustada, ainda que alguns se agrupem e a confeccionem.

Foto 5 > Na messe de oficiaus e sargentos. Da esquerda para a direita: Furs. Mário, Antunes, Sarg. Cipriano, Furs. Rito, Silva, Alf. Gomes, Cap. Costeira, Alf. Martins, ?, e Fur. Moreira.

A coluna regressou a Canjadude ao princípio da tarde com o pelotão já substituído e integravam-na mais 3 Furriéis “periquitos”, para render outros 3 “uns felizardos”.

O Alberto Pereira Caetano, veio para render o José Fernando Silva, o João da Silva Alves, para render o Manuel Vieira da Silva e o Augusto Soares de Moura rendeu o Nuno António Pereira Rito. Coincidência, os rendidos vieram para a Guiné no mesmo barco sem se conhecerem, conheceram-se em Canjadude e foram rendidos ao fim de dois anos no mesmo dia, regressando à Metrópole no mesmo transporte. Estou a falar de rendição individual.

Foto 6 > Da direita para a esquerda: Furs. Albino, Caetano e Alves

Foto 7 > Sargentos a descontrair na Parada Augusto Gamboa, morto numa emboscada em Uelingará. Da esquerda para a direita: Furs. Perestrelo, Augusto Moura, de pé, que chegou a Canjadude a 02-08-70 e no dia seguinte teve acidente com uma mina, 1.º Paulino (já faleceu), Furs. Albino, Antunes, Germano Silva (já faleceu), Sargs. Cipriano (já faleceu), Farinha e Fur. Ramos (já faleceu).

Dia 3 de Agosto de 1970, pouco passava das 07h00 quando saiu mais uma coluna de Canjadude para Nova Lamego, embora tivesse havido ontem uma, não deu para compreender o porquê de haver hoje outra?! (Terá sido a “força oculta” para que se concretizasse a coincidência de serem rendidos os três furriéis em simultâneo, porque um deles estava integrado no pelotão que estava em Nova Lamego e era necessário ir resgatá-lo!?) Eu estou de serviço no Posto de Rádio. Os dois rolos de negativos fotográficos que já tinham sido expostos, confiei-os ao Dinis, que acompanha a coluna, pedi-lhe que os entregasse na Casa Caeiro para serem revelados e fazer fotos, assim como o incumbi que levantasse algum trabalho meu de fotografia que estivesse concluído, pois o Sr. Caeiro ou a filha fiam-me a mercadoria entregando-a sem necessidade de pagamento, que eu oportunamente farei contas.

Foto 8 > Cabo Dinis na tabanca de Canjadude, com criança ao colo.

A decisão para definir qual o pelotão que devia integrar a coluna, foi tudo menos pacífica. Por escala ordenada, devia ir o pelotão “X” e apresentaram-se os militares desse grupo prontos para cumprir essa missão, mas já próximo da acção de partida da coluna, tomou-se outra deliberação e foi outro pelotão que se preparou apressadamente para integrar a coluna. Contrário ao que é habitual e sempre desejosos de ir, ao ponto de por vezes não haver lugar para todos os civis da Tabanca, que vão por necessidades pessoais a Nova Lamego, hoje não compareceram como é frequente, para ir na coluna. O Sargento Enfermeiro, Cipriano, nativo, que tem o agregado familiar em Nova Lamego, é assíduo em acompanhar as colunas, hoje desistiu de subir para a viatura na hora da partida. No meio desta confusão toda, o Furriel Antunes, de Transmissões, que por afazeres pessoais precisava ir a Nova Lamego e como tal apresentou-se devidamente preparado e pronto para ir na coluna, eis senão, quando em cima do acto da partida surgiu um imprevisto de última hora, que o levou a desistir da viagem.

Eram sensivelmente 07h45, quando se ouviu uma violeta explosão seca e abafada, na direcção da picada de Nova Lamego. Eu era o operador de serviço de transmissões e estava sentado no exterior do Posto de Rádio, na pedra que estava junto à porta do abrigo, onde era frequente a malta sentar-se. Ao ouvir o estrondo fiquei praticamente com a certeza que tinha sido o rebentamento duma mina anti-carro, pois no dia 12 de Setembro do ano passado, ia a fazer um ano, fui testemunha “in loco” de detonação idêntica. Entro imediatamente no Posto de Rádio e tento no AN-GRC-9 e no AN-PRC-10, entrar em contacto com a coluna, que não responde às minhas insistentes solicitações. Logo de seguida aparece o Furriel Antunes e o Alferes Gomes, que substituía o Capitão Costeira que estava de férias, para saberem o que tinha acontecido. Continuo com os meios disponíveis a tentar contactar a coluna, mas todas as tentativas de comunicação se revelaram infrutíferas. Peço ajuda aos Postos de Rádio de Nova Lamego e Cabuca, (poderiam estar mais próximo da coluna, ou em condições mais favoráveis para transmissões) para tentarem captar mensagem da coluna, pois também eles tinham ouvido o rebentamento, mas todas as tentativas de contacto se tornaram vãs. Dá-se início aos preparativos para que um grupo de combate vá ao encontro da coluna... que não chegou a sair. Ainda não eram 08h30, alguém disse que se estavam a ouvir os motores de viaturas já próximo do Aquartelamento. Passados, um minuto ou dois, surgem duas viaturas da coluna, transportando uma, 9 feridos, alguns dos quais com muitíssima gravidade, e dois mortos, entre os quais o 1.º Cabo Enfermeiro, Carlos Alberto Leitão Dinis, que ainda não tinha 4 meses de Guiné e o Furriel Atirador, João Purrinhas Martins Cecílio, colocado em Canjadude em 28 de Maio de 1970 depois de ter regressado ao Teatro Operacional da Guiné, para completar a comissão de serviço, após uma ausência operacional, motivada por uma evacuação devido a doença contraída na CCAÇ 2464, Companhia da qual fez parte e que foi mobilizada para a Guiné, em Fevereiro de 1969. Deixou 4 filhos órfãos, ainda crianças.

Foto 9 > Esta foto foi-me amavelmente cedida pelo nosso tertuliano António Nobre, tirada na CCAÇ 2464, onde o Fur. Cecílio iniciou a comissão na Guiné até ser evacuado por doença. Só no regresso da evacuação se apresentou na CCAÇ 5. Da esquerda para a direita: Padeiro(?), Furs. António Nobre, João Purrinhas Martins Cecílio (já falecido), Moura (já falecido) e Peixoto.

Foto 10 > Cabo Dinis junto ao filão das rochas de Canjadude.

Foto 11 > Confaternização no abrigo de transmissões. Chegada do Carlos Augusto dos Santos Pereira, que veste camuflado. Da esquerda para a direita: Fur. Antunes, Cabos, Alex, Pereira, José Carlos Freitas, Cóias e Lúcio.

Foto 12 > Da esquerda para a direita: Cabos TRMS Silva, Pereira e Lúcio.

A viatura que accionou a mina, em Uelingará, foi a viatura de transmissões, ficando a parte da frente toda destruída, assim como os aparelhos de comunicação. O AN-GRC-9 libertou-se das amarras e foi projectado a dezenas de metros, assim como as baterias que ficaram todas desfeitas, foi essa a razão porque não se pôde comunicar com a coluna. Por norma a viatura de transmissões ocupa quase sempre a terceira posição, a contar da frente, o mesmo acontece quando se leva ou recupera pessoal das operações do mato. Neste dia, vá lá o diabo saber porquê, a viatura ia em segundo lugar e accionou a mina. Atendendo ao estado em que a viatura ficou, parte da frente toda inutilizada e às projecções de corpos provocadas pelo impulso do rebentamento, foi um autêntico milagre não ter havido mais mortos e feridos. O Furriel Cecílio, que tinha dois meses de CCAÇ 5, foi um dos mortos e ocupava o lugar na viatura ao lado do condutor, tendo a mina rebentado no rodado direito da frente, ou seja por baixo da posição por ele ocupada. Sempre que ia, esse lugar era destinado ao Furriel de Transmissões, Antunes, mas neste dia, que precisava de ir a Nova Lamego e só não foi, como era seu desejo, devido a imprevisto de última hora.

Estranha coincidência, foi também a rapidez, nem meia hora tinha passado após a chegada das viaturas com os acidentados, quando chegou o “Homem Grande” da Tabanca de Uelingará, a apresentar os pêsames das mortes havidas ao Alferes Gomes! Como foi tão célere a vir, a caminhar com o peso da idade, 8 a 9km de distância e tinha já conhecimento do acontecido, quando a Tabanca de Uelingará não ficava junto à picada onde se deu a tragédia?!

Foto 13 > Viatura acidentada na mina no dia 03-08-70.

Foto 14 > Corceiro junto da viatura acidentada.

Um dos feridos graves, com múltiplos traumatismos, alguns cranianos, é o 1.º Cabo de Transmissões Carlos Augusto Santos Pereira, com mês e meio de Guiné; outro ferido, é o Furriel Augusto Soares de Moura, com poucos dias de Guiné, que não tem ainda vinte e quatro horas de permanência em Canjadude, pois chegou ontem na parte de tarde para render o Furriel Nuno António Pereira Rito, que por coincidência também este sofreu traumas provocados pelo rebentamento duma mina, no dia 12 de Setembro de 1969, onde eu estava presente, na mesma localidade de Uelingará, terra que se está a transformar em lugar fatídico para a CCAÇ 5, pois também neste sítio perderam a vida numa emboscada à coluna onde seguiam, dois militares, em 14 de Dezembro de 1967, o Alferes Augusto Manuel Casimiro Gamboa (no sítio onde pereceu está o nome e data da morte do Gamboa, gravado em sulcado, no tronco de uma árvore, desconheço o autor, assim como está também gravado, noutro tronco, na parada que tem o seu nome, em Canjadude) e o 1.º Cabo (salvo erro o nome é) José Ferreira Alves.

Os feridos foram evacuados. Comoveu-me intensamente toda a tragédia deste fatídico dia, mas particularmente a morte do Dinis, assim como o estado politraumático, do Carlos Augusto dos Santos Pereira, de Transmissões, que estava bem consciente da gravidade do seu estado, com ferimentos diversos. Nunca mais soube como foi o evoluir da sua saúde e o percurso da sua vida. O Augusto Moura, que foi um dos acidentados evacuados, além dos traumatismos somáticos, tem sintomatologia de trauma psíquico, pois está com amnésia parcial, não expressa no diálogo memória recente. Esteve cerca de seis meses em tratamento para recuperar e normalizar o conhecimento e a memória dos factos que aconteceram neste dia. Durante cinco meses, circulou entre Bissau para consultas e tratamentos médicos e Canjadude. Acabou por ser evacuado para a Metrópole passados quase seis meses após o acidente. Foi operado no HMP em Fevereiro de 71 e permaneceu na Metrópole durante nove meses, em consultas e tratamentos médicos. Acabou por regressar à Guiné e foi colocado em Bolama a dar Instrução Militar. Por coincidência, também o Furriel Nuno Rito, que o Augusto Moura rendeu, perdeu a memória que nunca mais recuperou, relativa aos acontecimentos do dia em que rebentou a mina na viatura na qual ele esteve envolvido. Quer um quer o outro ficaram com sequelas permanentes para toda a sua vida devido aos ferimentos e aos efeitos no organismo provocados pelo impacto do rebentamento que projectou a massa dos seus corpos, provocando uma acção de compressão e descompressão que afectou alguns órgãos do seu corpo. O Rito, sobretudo, ficou com graves problemas ao nível da coluna vertebral, que se têm agravado progressivamente, temendo ele que possa acabar o resto dos seus dias numa cadeira de rodas. Quer o Rito quer o Moura, felizmente, tiveram um percurso profissional razoável, consonante com a relatividade das suas aspirações e aceitaram resignados os desígnios da vida imposta, com menos qualidade, fruto das mazelas provocadas por acontecimentos que não lhe são imputáveis, sem nunca se terem interessado por esboçar a mais leve tentativa de accionar processo para pedir ao Estado Português uma pensão monetária compensatória, que os ajudasse a dar mais qualidade e conforto à vida quotidiana, de forma a ajudar a suavizar as máculas físicas adquiridas no teatro operacional de guerra, para o qual foram chamados e obrigados a ir, ainda que em defesa da Nação como é corrente dizer-se. Conformados. Pacientes, contentaram-se com a sorte que a vida lhes reservou e estruturaram a felicidade e o seu “modus vivendi” à sua maneira.

Foto 16 > Cabo Dinis a caminhar no destacamento de Canjadude.

Foto 18 > Cabos Carlos Augusto Perreira, com cerveja na mão e João Monteiro, junto da entrada para o refeitório em Canjadude.

Havia que tratar os feridos e homenagear os mortos. Foi elaborada uma escala de forma a garantir continuamente a presença de militares junto dos defuntos. Todos em sinal de respeito, admiração, estima e dor, vestimos farda limpa e própria para estar na enfermaria a velar os nossos estimados camaradas que nos deixaram.

Eu estou de serviço das 18h00 às 22h00 no posto de rádio, e foi-me atribuído o horário de presença na enfermaria, junto dos defuntos, entre as 17h00 e 18h00 e as 22h00 e 23h00. Às 17h00, quando entro na enfermaria, vi logo, em cima duma pequena mesa junto a algumas embalagens de medicamentos, o embrulhinho com os dois rolos de negativos fotográficos que eu tinha confiado ao Dinis para entregar na casa Caeiro, rolos que eu julgava já perdidos. Ainda bem que o não foram, para a imagem do Dinis ficar connosco. Presumo que o Dinis ao preparar a sacola de enfermagem com os diversos utensílios e medicamentos para seguirem na coluna, por distracção se esqueceu e deixou ali os rolos, que assim voltaram à minha posse e mandei revelar. Às 22h00 saio de serviço do posto de Rádio e dirigi-me para a Enfermaria, para mais uma vez homenagear com a minha presença e fazer a minha despedida dos camaradas falecidos.

Cheguei à Enfermaria havia breves segundos, pois ainda não eram 22h05. Precipitadamente desencadeia-se pavorosa flagelação, que mais pareceu que nos apanhou a todos de surpresa, pois já tínhamos neste dia a nossa dose de suplício. Impulsionados pela necessidade de protecção, todos os que estavam na Enfermaria, cuja estrutura física era frágil, de paredes de adobe e cobertura de placa zincada e exposta ao fogo IN, saímos apressadamente cada qual em sua direcção para encontrar meio para defesa e local de abrigo. A flagelação manteve cerca de 20 a 25 minutos, sempre a ribombar com detonações de morteiro, RPG 2; 7 e Kalashnikov, abrandando progressivamente quando o nosso morteiro 81mm, localizado na Tabanca, lado Nascente, Sul, iniciou os disparos, pois a posição deste espaldão era privilegiada para se poder ver a localização donde partia o fogo do IN. Este estava entrincheirado no filão das rochas e nos troncos de árvores existentes, devido à acção de desflorestação circundante ao Destacamento, lado nascente. Veja-se por favor o Poste - P6822.

O inimigo, ao flagelar Canjadude, estava posicionado um pouco distante do arame farpado, e, ou por falta de habilidade, colocação, ou visão, os seus disparos não provocaram a menor mossa física, não houve ferimentos humanos nem danos materiais de espécie alguma.

Dia 4, logo de manhã saiu um GCOMB para patrulhamento e reconhecimento, à zona envolvente donde tinha partido o ataque, eu estive presente. Havia vestígios de sangue em diversos locais, sendo expressiva a quantidade em dois pontos distintos. Foram deixadas no terreno algumas munições e quatro carregadores de arma ligeira, mas material pouco significativo.

Dia 5 de Agosto de 1970, logo de manhã cedo, saímos para uma operação comandada pelo Alferes Anibal de Sousa, cujo objectivo era seguir os trilhos utilizados na debandada do IN após a flagelação. Estive integrado nessa operação. Os cursos de água têm um generoso caudal, todos eles, as Bolanhas estão todas alagadas, assim como as picadas, o que dificulta muito a actividade operacional no mato, somos obrigados a caminhar dentro de água muito tempo, com as consequências nefastas que isso acarreta. Grosso modo, o IN utilizou na chegada e na retirada o trilho que liga Canjadude a Ganguiró, local onde foram detectados um emaranhado serpenteado de trilhos, presumindo-se que criados propositadamente com a finalidade de nos confundir, para não podermos utilizar uma só pista identificadora, do rumo em que o IN prosseguiu.

Optou-se por um trilho que pareceu ser o mais consistente, que nos conduziu para a zona do Siai, local onde o trilho começou a ser labiríntico, um autêntico enrolado de quebra-cabeças. A morfologia do terreno, no Siai, apresentava relevo muito irregular e de difícil acesso, pelo que a progressão nestas condições e seguindo o sentido do trilho, oferecia muita perigosidade, permitindo ao IN emboscar-nos. Optou-se por abandonar o trilho e patrulhar a área adjacente. Não foram detectados vestígios de presença humana. Será provável que o IN utilize o local do Siai para fazer a cambança do Corubal e desenvolver a sua actividade de guerrilha no sector Sul da região de Nova Lamego. Regressamos a Canjadude dia 6, com agravantes dificuldades na progressão, devido aos terrenos estarem todos encharcados, nos quais a progressão exige muito esforço físico, provocando muito cansaço corporal, e complica a detecção dos trilhos de penetração do IN.

Nos factos do dia 3 de Agosto, houve muitas coincidências que para mim é natural que sucedessem.

Os acontecimentos do fatídico dia 3 de Agosto, (era previsível que algo adviesse, aniversário da revolta no cais de Bissau, Pidjiquiti, era uma data comemorativa para o IN e como tal queriam marcar território, eu pelo menos estava um pouco receoso, e outros mais experientes mais previdentes estariam,) deram azo a muita especulação, como de resto é hábito com tudo o que não queremos que aconteça, há sempre profetas da desgraça a apontar o dedo e a culpa não quer morrer nunca solteira! Houve vozes veladas que tiveram o atrevimento de afirmar que no Aquartelamento alguém tinha conhecimento que a mina existia e que a flagelação ia acontecer. Conhecimento é uma coisa, intuição é outra. Ora, estes boatos geraram uma certa instabilidade e desconfiança entre os militares. Também houve vozes, na altura, de mentes férteis e imaginativas, que afirmavam que em Uelingará pairava a maldição dum espírito vingador, cujo feitiço punidor, só amainava e se purificava quando dizimasse todos os metropolitanos de Canjadude. Outras vozes ainda mais fecundas, afirmavam convictamente que bastava analisar os nomes e sobrenomes dos envolvidos nas tragédias de Uelingará para se concluir qual seria a próxima vítima a tombar, porque o supliciado escolhido, obedecia a uma sequência ordenada por nomes e sobrenomes emparelhados, que se iria repetir. “Mais parecia que havia candidato para destronar as profecias de Nostradamus”.

Em tempos materializou-se uma operação militar, ao alvorecer, à Tabanca de Uelingará, onde todas as habitações foram viradas do avesso, mas nada foi encontrado. No dia 17 e 18 de Agosto, realizou-se a operação “Grão Torcato” que cercou a Tabanca de Tumbum Sincho, onde foram detidos dois elementos da população, que geraram suspeitas, nada mais foi detectado, eu não integrei esta acção.

Não sei a história que terá chegado à metrópole, sobre o que ocorreu em Canjadude neste profético e maldito dia 3 de Agosto de 1970, porém, um amigo de infância, dum dos desditosos falecidos neste dia (o Dinis), que é membro do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, logo que se apercebeu que eu fui da CCAÇ. 5, e por acaso contemporâneo com os factos, apressou-se a pedir-me informações sobre o caso, porque lhe tinham contado uma história macabra e absurda sobre os acontecimentos desse dia, que eu imediatamente os contradisse, porque estavam desfasados de toda e qualquer realidade do que efectivamente tinha sucedido.

Coincidências da Vida, dirão alguns! O destino, o acaso, o inevitável, o que tem que ocorrer tem muita força, o que é passível de acontecer, acontece mais cedo ou mais tarde, todos têm a sua hora certa, Deus tarda mas não falha, afirmarão outros…!

A Vida é muito breve e é tão delicada e complexa que por vezes poderá até dar-se a coincidência, que ao estarmos a prevenirmo-nos da morte, podermos estar a caminhar para deixar a Vida…! A Vida é um prodígio assaz efémero na existência de cada um de nós, que temporalmente nada mais representa, que o milésimo dos milésimos do período de tempo, (a caminhar para o infinito) que é o tão pouco tempo que nos sobra da morte! Mesmo antes de sermos Vida, (gâmeta) já participámos em renhida e desenfreada competição para alcançar uma meta, que foi disputada por milhões e milhões de concorrentes, para um só ser o premiado, que recebeu o troféu que lhe outorgou a conquista do direito à Vida. Com todo o mérito, cada um de nós pode bem alto Gritar: - EU FUI O VENCEDOR ELEITO, SELECCIONADO ENTRE MUITOS MILHÕES E GANHEI O DIREITO A SER VIDA…! Mas por vezes, valerá a pena o GRITO, se a Vida é tão Efémera …?!

SÓ SÃO COINCIDÊNCIAS QUANDO NÃO HÁ MANIPULAÇÃO HUMANA

Um abraço e boa saúde para todos.
José Corceiro
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7037: Recortes de imprensa (30): A guerra do José Corceiro, CCAÇ 5, Canjadude, 1969/71 (Correio da Manhã)

Vd. último poste da série de 27 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6901: José Corceiro na CCAÇ 5 (16): O depoimento do Armando Oliveira Alves, ex-Alf Mil, Brá, Cheche, Canjadude, 1967/69 (José Corceiro)