sábado, 13 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7271: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (9): A Suíça de África, o narcotráfico, a justiça e a falta que faz o Luís Cabral

1. Texto do António Rosinha [, foto à direita, Angola, 1961 ]:

Data: 4 de Novembro de 2010 23:31

Assunto: Guiné Bissau, o narcotráfico, a Justíça e a falta de Luís Cabral

 Agora que embalagens de droga dão à costa nas praias de Portugal, segundo os jornais, e não temos submarinos nem helicópteros nem marinha para travar este contrabando, até parece ridículo um português falar de narcotráfico em Bissau.

Mas não vou falar desse problema, mas apenas de Luís Cabral e de um caso de consumo de droga que ele solucionou à maneira dos velhos Chefes de Posto coloniais.

Pretendo esclarecer que as coisas que afirmo neste blog, em geral só podem ser corroboradas ou desmentidas por dois ou três tertulianos, pois de uma maneira geral foi quase tudo passado antes ou depois da guerra. Quando narro factos passados durante a guerra ou testemunhei ou são públicos e uso apenas a memória pois faço os possíveis para não recorrer nem a livros nem a documentos nem à wikipédia.

A minha guerra (sem tiros, felizmente) não foi de 24 meses mas de 13 anos, antecedidos por alguns anos de paz (?) em Angola e seguidos por alguns anos de paz  (?) na Guiné. Dos poucos tiros de guerra que ouvi, uns dois ou três foram de carro de combate em Bissau, na noite em que Luís Cabral foi derrubado em 14 de Novembro de 1980.

Como sempre achei imprópria e em hora inadequada para a Guiné a guerra imposta pelo PAIGC, nada me impede de considerar que Luís Cabral ao ser "excluído" da governação, a Guiné ficou condenada a sofrer tanto ou mais do que tinha sofrido durante a guerra anti-colonial.

Luís Cabral ficou a fazer muita falta à Guiné, principalmente por se saber que não havia alternativa válida, mas talvez Luís fosse vítima dele próprio e do projecto do PAIGC, como talvez se possa dizer o mesmo de Amílcar, caso não apareçam testemunhas com outros motivos mais válidos.

E passo a relatar uma decisão inteligente, prática e simples e diplomática que demonstra a capacidade que Luís Cabral e o seu governo tomaram para resolver um caso de uso (e talvez de tráfico) de droga, uns meses antes de ser derrubado (1980). Envolvia estrangeiros e nacionais nesse escândalo de droga.

Embora na Guiné só houvesse um pequeno jornal,  o NÔ PINTCHA

, do partido, que publicou alguma coisa sobre o escândalo, tudo se sabia de boca em boca. Havia uma invasão tão grande de cooperantes internacionais que no meio de tanta gente alguma escandaleira surgia de vez em quando naquela sociedade tão heterogénea que até se pode dizer que era uma grande confusão.

Foi o caso de uma arquiteta portuguesa e um professor francês e uns tantos guineenses que, segundo o NÔ PINTCHA e o boca a boca, se entretinham numas festas em que metia droga e a polícia entra em acção. E aqui entra a experiência que só um africano ou alguém com cultura africana pode resolver sem incidentes.



Luís Cabral durante a 1ª Assembleia Nacional Popular, na Região do Boé,  23 a 24 de Setembro de 1973.


Foto:  Fotografias Amílcar Cabral / Fundação Amílcar Cabral (2003) (Com a devida vénia...)






Sabemos que a chamada África negra tradicionalmente não tinha prisões, nem advogados nem juízes, no entanto como em qualquer sociedade também lá havia crimes a punir e justiça a ser feita. Também sabemos que os Chefes de Posto tinham uma pequena casa junto à administração que servia de prisão apenas momentânea pois não era feita para uma prisão definitiva.

Quem fazia de juiz, de advogado de acusação e de defeza era o próprio Chefe de posto, só não fazia de testemunha, pois aí entravam as pessoas da tabanca a favor ou contra. Em caso de crime provado uma das punições era a régua de cinco olhos e o cipaio (polícia) a executar a sentença. E a denúncia do criminoso perante a tabanca toda.

Os chefes de tabanca constantemente recorriam aos chefes de posto para resolver muitas quezílias e até problemas de ordem matrimonial que familiarmente havia dificuldade em solucionar.

Estes processos conheci em Angola no tempo colonial, mas foi extamente assim que vi no Gabu o presidente do Comité a residir na antiga casa do Aministrador colonial, resolver um caso de furto de uma vaca por um cidadão jovem (1987).

Como não assisti ao julgamento, apenas sei que o juiz e os advogados de defesa ou acusação eram inexistentes como no tempo colonial, e vi o cumprimento da sentença, ou parte dela, que constou de uma volta pelas ruas retilíneas do Gabu (Nova Lamego) pelo criminoso, com a pele da vaca a cobrir-lhe o corpo, depois de devidamente extraída do animal, com cornos integrados, e com a corda ao pescoço, que antes servira para levar o animal. Um polícia acompanhava o ladrão e a criançada,  e mesmo gente maior, fazia um enorme cortejo, que depois deste castigo nada discreto, o culpado não ia ficar com vontade de repetir.

No caso da droga, que era um caso mais melindroso, as autoridades do governo de Luís Cabral diplomaticamente recambiou os cidadão estrangeiros, "discretamente" com o aeroporto repleto de gente a bisbilhotar de quem chega e parte no primeiro avião da TAP que apareceu. Com o cenário da bisbilhotice, penso que a portuguesa e o francês ficaram sem vontade de regressar a Bissau.

E os cidadãos guineenses implicados, depois de passarem dois ou três dias na prisão de Bissau, com tudo devidamente confessado "voluntariamente" sem advogados nem juízes, e certos pormenores publicados e explicados ao povo, acabaram por não precisar de ficar presos, pois se o arrependimento matasse...!

A solução foi de uma eficiência que se soube que alguns intervenientes emigraram logo que puderam, assim como alguns que milagrosamente escaparam à rusga da polícia. Conheci pessoalmente um desses intervenientes por ser escriturário na empresa onde eu trabalhava, a Tecnil.

Estou a contar estes factos, como já contei outros factos após a independência da Guiné, tentando demonstrar que a governação de Luís Cabral era eficiente, dinâmica, e em Bissau pelo menos havia alguma ordem, e tento também demonstrar que Luís seguia a política que Amilcar escreveu em discursos e em entrevistas.

Tudo o que era ligado à justiça, agricultura, indústria etc, rara era a matéria em que Amílcar não deixasse algo escrito, até à maneira de comer a vianda com a mão, ele faz uma observação.  Luís Cabral seguia tudo à risca, e quero aqui realçar aquilo que já se falou no blog,  «fazer da Guiné a Suíça de África». Luís não tinha limites para tentar atingir o máximo de modernidade e credibilidade. Diariamente surgiam novas intervenções estrangeiras na educação, como um grande Liceu, na indústria, a fábrica do automóvel «Nhaye»,  da Citroen, uma camisaria industrial, na agricultura com novas técnicas desde as japonesas às portuguesas, etc.

Pelo que se via da sua actução era de cortar qualquer mal pela raíz. Cheguei a ver rusgas em Bissau à procura de jovens sem documentos ou sem trabalho e enviar às carradas de camião para a esquadra e devolver esses rapazes para as suas tabancas de origem. Um dia a polícia levou-me da minha viatura,  num auto stop no Alto Crim, os meus três ajudantes porta-miras por não terem nenhuma carta no bolso a dizer onde trabalhavam. Foi preciso o «soco por baixo da mesa» para os livrar de regressarem à tabanca. Talvez este política de cortar os males pela raíz tenha levado ao exagero dos fuzilamentos e das valas comuns de que [Luís Cabral] foi acusado.

Com este post particularmente, pretendo afirmar que se Luís Cabral seguisse mais uns anos na governação, neste momento, 2010, a Guiné Bissau poderia não ser a Suíça Africana, mas não era de certeza a imagem de uma capital do narcotráfico e outros males.

Mas tem que se fazer sempre a pergunta, porque correu tudo tão mal com Luís Cabral, Amílcar Cabral, e todos os dirigentes do PAIGC? E outras perguntas por exemplo, como correu melhor com o PAICV, se em Caboverde nem guerra houve?

O que se passou no interior do PAIGC desde a sua fundação, para haver tanta sede de sangue e tanta falta de respeito pelo povo da Guiné?

Para terminar regresso àquela ideia da «Suíça de África», dizendo que ainda mesmo depois de Luís Cabral ainda se continuava a ouvir essa frase, pois o entusiasmo do partido pelo desenvolvimento ainda continuou por algum tempo, os jovens continuavam a devorar livros pelos jardins para se instruirem, apenas os mais velhos e as mais velhas baixavam os braços e já não colaboravam na "produção e produtividade" que era uma máxima de que o regime socialista usava até à exaustão na rádio e nos comícios e no NÔ PINTCHA.

Temos que ter esperança que tudo melhore para aquele povo, em Bissau, mas também na Arcena, na Moita e que nós,  velhos tugas,  não desanimemos pois por cá tambem há uns problemas à procura de solução.

Com os meus cumprimentos para toda a tertúlia,

Antº Rosinha
____________


Nota de L.G.:


Último poste da série > 24 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7170: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (7): Da Casa Gouveia aos Armazéns do Povo

4 comentários:

Anónimo disse...

Caro Mais Velho Rosinha

O episodio que descreve neste seu poste confirma-se na sua plenitude !

A formula ingenua ...convenhamos eivada de um certo populismo...usada para se lidar com as questoes de justica,durante a era Luis Cabral, sao praticas que remontam obviamente a chamadas zonas libertadas do PAIGC, ainda durante a guerra.

No pos independencia a radio nacional chegou a emitir um programa, " Corda Xintido"- que vou traduzir assim a letra por despertar da consciencia, em que o autor de um delito, furto de gado,roubo a domicilios, corrupcao ou peculato...era exposto em "hasta publica"..e confrontado com o crime.

Ai... se o arrependimento e a danosa imagem publica matassem !

Na altura realizaram-se inclusive sessoes de "julgamento" ou acarreacoes do genero no estadio Lino Correia, a antiga Sarmento Rodrigues.. O proposito era pois desencorajar tais praticas e moralizar a sociedade...So que, populismos a parte, a pratica acabou por criar estigmas que acabariam por ser fatais a popularidade do regime de Luis Cabral...e aproveitada pelos seus proprios camaradas e detractores!

Refere-se e bem as operacoes STOP montadas pela policia durante esse periodo, numa va tentativa de se travar o exodo rural vivido na epoca.

Por algumas horas vivi essa experiencia...na esquadra da policia junto ao quartel da Amura...Para a minha soltura so me valeria o meu cartao de estudante do Liceu Kwame N"Krumah, entregue a portaria da esquadra pelos meus familiares !

Mas ate la..fui servindo de repasto para a "mosquitada" do sitio !

Diga-se um exodo que mais nao era,do que consequencia do abandono a que o campo e as populacoes rurais tinham sido devotados com a independencia. No fundo um dos mais aberrantes desvios aos mandamentos e ao pensamento do lider historico daquele partido da independencia.

Alias um abandono e indiferenca de impacto inquestionavel ainda hoje a nivel das proprias casernas militares, estas por sinal "povoadas" na sua esmagadora maioria por membros dessa populacao rural..

A historia da governacao do PAIGC foi pois fertil em desvios dos proprios principios tracados e pelos quais se bateu...decadas contra a presenca colonial !

Convem nao se perder de vista que parte dos problemas vivenciados nas ultimas decadas nos quarteis com impacto a nivel da propria estabilidade do pais,teem uma ramificacao/origem bem mais profunda...ou seja ...resultam pois desse abandono que o "mato", o interior...ou como soi dizer entre os guineenses, o "fora terra"... fora confinado...

Portanto todo e qualquer debate versando o "republicanismo" ou nao das Forcas Armadas Guineenses, sob pena de redundar num fiasco, nao pode perder de vista o facto desse meio rural condenado a letargia...ter um peso inquestionavel na estrutura militar por sinal herdada da luta pela independencia !

Mantenhas

Nelson Herbert

Anónimo disse...

Mas no que tange ao funcionamento da justica guineense...do tempo de Luis Cabral, destacaria a coragem e o equilibrio demonstrado (na qualidade de presidente da republica e contra toda a onda pressao contraria, por parte dos seus camaradas de armas)ao decidir pela comutacao da sentenca de pena de morte aplicada a Rafael Barbosa...

Como bem me confidenciou um dia...fuzilar na altura Rafael Barbosa,seria o mesmo que forjar desnecessariamente um "martir"...empolar a dita popularidade daquele nacionalista guineense,acusado de traicao pelos seus camaradas..popularidade essa que o resultado das primeiras eleicoes legislativas guineenses viriam a provar estar muito aquem do badalado !

Rafael Barbosa estava de facto longe de ser entre os guineenses, um lider a se ter em conta ... Dai ao fim da sua carreira politica foi um compasso de espera..

Erros e aberracoes a parte, nao tenho duvidas que na ERA Luis Cabral houve pois um esforco abismal de construcao de um estado moderno...

Mais Velho continue pois a partilhar o relato dessas suas experiencias,ja que mesmo sem se aperceber..ca vai espicacando memorias adormecidas !

Mantenhas

Nelson Herbert

Unknown disse...

Caro Rosinha, aceito, admito e tambem comigo às vezes acontece, não escrevemos exactamente aquilo que desejariamos por diverssos motivos. Não ferir susceptibilidades, ser o mais correcto possivel, apreciação errada, etç.
Mas o amigo porém escreveu:

"...Pretendo esclarecer que as coisas que afirmo neste blog, em geral só podem ser corroboradas ou desmentidas por dois ou três tertulianos, pois de uma maneira geral foi quase tudo passado antes ou depois da guerra. Quando narro factos passados durante a guerra ou testemunhei ou são públicos e uso apenas a memória pois faço os possíveis para não recorrer nem a livros nem a documentos nem à wikipédia."

Por favor amigo Rosinha, releia novamente o que acabou de escrever.
É um parágrafo demasiado longo no conteuodo, para ter em consideração as nuances que escrevi acima.

Permita-me que pergunte:
Porque está convencido (estando no seu pleno direito) de que os 'acontecimentos' por si vividos ou testemunhados, fundamentam ou explicam a história de luta e dos seus dirigentes da Guiné Bissau ???
Ou colocando a questão de outra forma.
Porque se convence que toda a história da Guiné (e os povos de áfrica no geral) é essencialmente suportada por factos por si mencionados (ou narrados por si livremente)neste Blogue ???

Embora como já lhe escrevi aqui, respeite as suas vivências e lhes reconheça valores de vida, não posso pessoalmente aceitar as suas apreciações por vezes erróneas e indutoras de erros de compreensão, para os mais distraidos.

Com os meus cumprimentos e abraços para todos

Carlos Filipe
ex-CCS BCAÇ3872 Galomaro

Antº Rosinha disse...

Filipe, diz assim no cabeçalho do blog:...não deixes que sejam os outros a contar a tua história por ti...

Ou seja, o meu olhar para o que se passou à minha volta, o teu olhar para o que se passou à tua volta, e o que se passou com cada um de nós, é o que em geral todos aqui relatamos.

Se emitimos alguma opinião, penso que é mesmo a opinião de cada um.

Éstou convencido daquilo que escrevo se não, não escrevia tal coisa.

Mas não pretendo convencer ninguem.

Até aprecio que me contraponham outras opiniões como tu fazes neste momento (livremente).

E até agradeço que anotes o que de erroneo diga.

Obrigado e um abraço