quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7265: Estórias do Juvenal Amado (32): Carne para o quartel

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 10 de Novembro de 2010:

Caros Luís, Carlos, Briote, Maglhães e restantes atabancados
Uma pequena estória sobre as qualidades alimentares de Galomaro.

Até ali nunca tinha visto o bife ainda com patas.
Juvenal Amado


Estórias do Juvenal Amado (32)

A CARNE PARA O QUARTEL

Ao serem içados, os touros urravam, em pânico, abrindo muito as unhas e pondo-se a nadar no ar, por cima das nossas cabeças.
Nunca a vida lhe mostrara uma tão perfeita imagem do terror, sobre o abismo: os bois esticavam as patas, ameaçavam alar-se e sacudiam o corpo. E os olhos já de si globulosos, luziam dum volume metálico, ainda mais frios que dantes.
Trecho do Livro GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS de João Melo

O camarada José da Câmara falou de um episódio motivado pela necessidade de comprar gado de abate para o quartel. Nesse seu poste fala da pena, que os donos do gado sentiam quando o viam partir, traçando um paralelo entre ali e o que se passava na sua ilha, onde muitas vezes viu o gado ser exportado para Lisboa. Eram visíveis os mesmos sentimentos de perda nos olhos da pobre gente, que via assim o produto do seu trabalho, partir para um destino inexorável e sem outro possível futuro.

Também me lembrei de um tio meu, grande amante de carne de vaca, que resolveu criar uma para abater, encher a arca e assim saciar-se desse pitéu, quando lhe apetecesse.

Criou o animal, que se habituou a que ele fosse ao pé dele coçá-lo quando vinha da fazenda. O animal chamava-o e ele ia ao pé dele coçava-o e falava com ele. O resultado desta relação foi ter que o vender, pois não podia pensar em matá-lo e comê-lo.
Quem o conhecia, dificilmente esperaria uma atitude como a que tomou.

Mas a respeito de vacas, fui uma vez encarregue de ir buscar carne para o quartel de Galomaro.
Cheguei cedo ao local e comigo ia o Esteves e o Risinho*, cozinheiros, especialistas em Estilhaços com Bianda ao Chef, que eram servidos no restaurante Morte Lenta, senão ao almoço decerto ao jantar. Um prato tão afamado, que me fez estar muito tempo sem comer arroz fosse com o que fosse.

Era enorme a azáfama onde se misturavam as vestes tradicionais fulas com panos de cores várias, onde pontificavam rostos como o do Sekoturé e outros nacionalistas africanos, denunciando assim a proveniência dos tecidos como sendo da Guiné Conakri.

Pensava eu que já estaria a carne à nossa espera.
Engano meu, pois a vaca ou boi, pormenor que não me recordo agora, estava em pé aparentemente não desconfiando do que a esperava ainda.

De repente, num grande alarido o animal é deitado ao chão, atam-lhe as quatro patas num feixe e os olhos quase lhe saem das órbitas com o terror.
Seguidamente a cabeça, é lhe torcida até ficar com os cornos espetados no chão, obrigando o pescoço do animal a arquear sobre a pressão que um ajudante em peso, exerce sobre o queixo.
Não quero olhar mas não consigo desviar os olhos.

O magarefe aproxima-se com uma catana e o pescoço do animal é serrado em movimentos horizontais, primeiro a pele, depois a carne, as artérias, as goelas, tudo isto acompanhado de um sofrimento atroz, onde o corpo se contrai e pula de forma violenta mas sem apelo.

Por fim o animal resfolga já completamente degolado, cumpre-se assim a lei Islâmica em que se obriga à degola e sangramento total.
Se ao menos fosse de um golpe só!

Escondo-me atrás da Berliet, estou quase a vomitar.
Nunca mais voltei a presenciar semelhante sacrifício, mas tão depressa não comi carne de vaca e ainda hoje a como com alguma relutância, faço por não me lembrar deste episódio.

(*) O cozinheiro de alcunha o Risinho devia-a ao seu permanente riso causado por uma paralisia facial. Não tenho bem a certeza mas a deficiência adquiriu-a num acidente.
Natural de Setúbal, falava com paixão das caldeiradas de enguias de certa qualidade a que chamava eroses, que se encontram na região.
Faleceu depois do nosso regresso e sendo assim, o seu sorriso permanece eterno na minha memória.
Que esteja em paz.

Juvenal Amado

Na enfermaria com paludismo: o Aljustrel em primeiro plano; Esteves, o afamado cozinheiro, à direita. Eu estou ao fundo.

Mantimentos frescos

Mantimentos frescos prestes a esborracharem-se no chão
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7242: Blogpoesia (84): Por vezes... Regresso lá (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 18 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7005: Estórias do Juvenal Amado (31): Desse amor ficou só a nostalgia daquela idade

3 comentários:

António Tavares disse...

Amigo Juvenal,

Fui das primeiras pessoas a estrear a inacabada enfermaria de Galomaro...no meu tempo, MAIO/70, chovia na minha cama e o pessoal dos Serv.Saúde empurravam a cama para os lugares secos...eu deitado na cama, com paludismo e cheio de febre, andava ao sabor da chuva!!!
Realística estória...continua a escrever!
Um abraço do
António Tavares

Unknown disse...

E para chatear, Juvenal, iam sempre caír para além do fim da Pista, com agravante de estarem acondicionados, os alimentos, em caixotes da treta que se desfaziam todos.

Sobre essa da matança, em Galomaro tambem houve disso, do lado da TRMs onde tive o célebre encontro com a cobra, que fui parar ao outro lado da parada...

Cumprimentos para todos.

Carlos Filipe
ex CCS BCAÇ3872 Galomaro

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal

Li com atenção a tua narrativa e principalmente a descrição do acto sacrificial do bovino.
Sabes o que me ocorreu?
É que está aí um bom argumento para a alegre rapaziada anti-touradas...

Um abraço
Hélder S.