segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7240: José Corceiro na CCAÇ 5 (18): Insubordinação na CCAÇ 5, dia 8 de Novembro de 1969

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 2 de Novembro de 2010:

Caros amigos,
Luís Graça, Carlos Vinhal, E. Magalhães.
Comprometi-me no post P5978, que daria o meu testemunho sobre a rebelião dos Gatos Pretos africanos em Canjadude. Eis-me pois, a descrever o sucedido segundo o meu pulsar, apoiando-me na memória e nos registos que fiz na época.
Publicarão, caso entendam, que tem algum interesse para o blogue; se optarem pela publicação poderia ser o dia 8, data em que se completam 41 anos após o acontecimento.

Um abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (18)

INSUBORDINAÇÃO NA CCAÇ 5, NO DIA 8 DE NOVEMBRO DE 1969

Foto 1 > Um pelotão da CCAÇ 5 no aquartelamento de Cabuca a reforçar a segurança. É o pelotão do Alferes Varela, que quando foi destacado para Bolama, os seus homens que o estimavam choraram. O Varela hoje é advogado em Almada.

Quando fui mobilizado para ir para a Guiné em rendição individual, cheguei a Canjadude à Companhia de africanos CCAÇ 5, no dia 13 de Junho1969, era sexta-feira e dia de Santo António. O Comandante da Companhia era o Capitão Pacífico dos Reis, já com um ano de comissão e tinha-se empenhado em juntar os pelotões da CCAÇ 5 todos em Canjadude, porque andavam dispersos por vários locais. Durante a minha comissão na nesta Unidade, que se dilatou por 25 longos meses, conheci ao todo quatro Comandantes de Companhia.

O Capitão Pacífico dos Reis iniciou a sua formação castrense no Colégio Militar. Durante os quatro meses que foi meu comandante da Companhia, saí muitas vezes para o mato em operações com o Capitão, e devido à particularidade de eu ser de Transmissões, quer na progressão nos trilhos das bolanhas, quer emboscados nas matas, eu ficava sempre muito próximo dele.

Pelo que observei, intui e escutei, durante essa vizinhança, formalizei um juízo que me autoriza a tecer algumas considerações, sobre o militar Capitão Pacífico dos Reis, atendendo àquilo que me foi facultado presenciar. Registei na altura o seguinte: Militar destemido com capacidade de comando, rigoroso no exercício de impor disciplina, mas com a percepção dos limites até onde pode soltar a rédea, e a quem a solta, operacional arrojado, sempre disponível e combativo na linha da frente a comandar os seus homens, não se poupando a esforços para não dar oportunidade a que o inimigo se instale no território marcado… não deixa o crédito por mãos alheias.

Assisti algumas vezes, durante o dia, a actos do Capitão, cujas decisões eram arriscadas, subia no jipe e saía do aquartelamento juntamente com quatro ou cinco militares da Secção dos Dragões, (militares de Comandos africanos que eram guarda-costas do Capitão) embrenhavam-se afoitos na mata, em volta do aquartelamento e regressavam cerca de meia hora depois. No dia 12 de Setembro de 1969, houve coluna a Nova Lamego, e veio um Pelotão para Canjadude para manter segurança ao destacamento, porque havia uma operação a nível de Companhia no dia seguinte. Na coluna rebentou uma mina, na viatura que a encabeçava e na qual ia o Capitão, eu estava como operador de transmissões na viatura a seguir, houve 15 feridos, alguns dos quais com muitíssima gravidade, pedi evacuação por heli para 10 feridos. O Capitão sofreu alguns ferimentos, mas aparentemente nada de grave.

Foto 2 > À saída do aquartelamento, para o lado nascente a 150/200 metros, do arame farpado, tínhamos logo a bolanha alagada, isto não é rio. Corceiro, Pita, Ferra, Matias, Marques e Medeiros.

No dia 13 houve operação de três dias, comandada pelo Capitão Pacífico dos Reis, cujo objectivo era o Siai, eu também fui. Foi uma progressão no terreno muito difícil, devido a termos que caminhar muito tempo em terrenos alagados, algumas vezes com água pela cintura. Emboscámo-nos para passar a noite e devido à proximidade que mantinha com o Capitão, apercebi-me que esteve em padecimento e gemeu muito durante toda a noite, provavelmente devido aos ferimentos e efeitos provocados pela mina do dia anterior.

Ainda o alvorecer se escondia envergonhado e já todos de pé e enlameados, mastigávamos a bucha e bebíamos da lata o leite achocolatado. Era preciso avançar, estava o caminho à nossa frente à espera, senão ficava tarde. Continuámos a progredir por trilhos alagadiços, tendo parado 3 ou 4 vezes devido ao cansaço do pessoal, rumávamos em direcção a Ganguiró onde à chegada nos emboscámos, era já quase meio-dia. Neste local houve necessidade de pedir meia dúzia de evacuações, uma das quais para o Capitão, o pessoal estava todo estoirado.

O Capitão tinha sensibilidade especial para lidar militarmente com a tropa nativa, não ajuízo se era por formação ou por carácter, ou quiçá brio devido à admiração que os nativos nutriam pelo exemplo de operacionalidade e segurança que ele lhes inspirava, que os cativava, e tinha-os disciplinados e controlados, e eles por sua vez retribuíam com estima, respeito e obediência, para com o seu Capitão, no qual muito se apoiavam e o consideravam um valente. Cheguei a assistir a ligeiros desentendimentos entre militares metropolitanos e nativos, e estes ameaçavam logo que iam falar com o Capitão.

Devido ao entrosamento existente entre o Capitão Pacífico dos Reis e os militares nativos, tornava-se difícil a integração e rendição, que não se afigurava pacífica, para o novo Comandante que o viesse substituir no na companhia, a não ser que tivesse um perfil idêntico.

Era uma Companhia que não se podia aquilatar o comportamento dela como se fosse uma força de metropolitanos, havia muitas especificidades que era necessário respeitar minimamente, além dos factores de ordem sociocultural e económico. Grande parte dos cerca de 220 militares africanos da Companhia, estavam próximo dos 30 anos de idade, ou mais, tinham as mulheres e os filhos a viver com eles, eram desarranchados, já tinham 6 ou 7 anos de tropa com guerra e só meia dúzia deles sabiam ler. Era necessária habilidade para compreender e avaliar a complexidade cultural da CCAÇ 5, que era uma amálgama sociável. A diversidade de tradições e costumes dos nativos da Companhia era admirável, pois englobava todas as etnias da Guiné.

Dia 30 de Setembro, chegou a Canjadude o Capitão que substituiu o Pacifico dos Reis, neste mesmo dia chegou também o Furriel José Martins, creio que veio de férias da Metrópole.

Dia 6 de Outubro de 1969, o Capitão José Manuel Marques Pacífico dos Reis (hoje Coronel na reserva) deixou de ser o comandante da CCAÇ 5. Houve coluna a Nova Lamego e todos os pelotões queriam ir para levar o seu Capitão, foram dois pelotões, eu também fui. Na parte da tarde no regresso a Canjadude, durante o percurso, choveu torrencialmente e chegámos ao aquartelamento, todos encharcadinhos.

(Email que recebi da Guiné dia 01-11-2010)

Boa Tarde
Fiquei muito contente por ver a fotografia de meu Capitão Pacifico dos Reis.
Eu estive no 2.º Pelotão de Alferes Gomes

Atentamente
Paulo calos Media

Dia 7 de Outubro, escrevi na minha agenda, como era habitual escrever todos os dias: - “ Tive que me levantar cedo porque estou de serviço, 1.º turno no Posto de Rádio. O dia está fresco e aos poucos chove, mas nada parecido com a aguaçada que apanhamos ontem. Para não alterar o ritmo, o almoço foi salsicha com arroz e o jantar será arroz com salsicha… Estamos a ficar “fodidos” com a alimentação! Já quase um mês que o comer é pouco e de má qualidade. O que me tem safado é o pão, alguma lata de fruta enlatada e os conteúdos das encomendas que os meus pais me têm enviado, aproveitando o acordo existente entre os correios e Movimento Nacional Feminino. Aqui não há nada que eu possa comprar para comer, além das latas da fruta em calda. Espero que este novo Capitão faça alguma coisa de forma a melhorar a alimentação. Por aquilo que me disse o “Tripa” (soldado nativo), os tropas africanos não vão à bola com a cara do novo Capitão… (teceu mais considerações). Está em Canjadude o homem da foto-cine, passou o filme que eu já tinha visto, - In Ginocchio da Te - com o Gianni Morandi.

Foto 3 > Em Canjadude pessoal a partir e acarretar pedra. O Corceiro está sentado em cima duma pedra a descansar, o Silva está com a marra na mão.

Destaques resumidos de alguns acontecimentos, que escrevi nas agendas nos dias subsequentes:

Dia 8, o Capitão obrigou todo o pessoal das praças a trabalhar no destacamento a fazer uma limpeza geral, que a avaliar pelo que é pretendido executar, vamos ter trabalho para mais de dois meses, sem contar com as construções de abrigos que estão em curso, que tem dado muito trabalho ao pessoal. O Capitão começou logo por alterar o horário laboral, suprimindo uma hora na parte da manhã e outra na parte de tarde, ao período do descanso, horas que foram implementadas aos períodos do trabalho. Está um Pelotão em Nova Lamego, todas as noites sai um Pelotão para o mato, o pessoal anda cansado mal alimentado... que mais querem de nós!? Os militares nativos andam revoltados, deitam chispas pelos olhos…
Dia 9, foi o dia de receber o pré.
Dia 10, houve operação para o mato por dois dias, o Capitão não foi, eu estou de serviço no Posto de Rádio. O pessoal que ficou no destacamento, anda tudo a toque de caixa a trabalhar…
Dia 12, houve coluna a Nova Lamego. Regressou o Pelotão que estava ausente. Começa a fazer calor.
Dia 14, operação para o mato dois dias, o Capitão não foi…Tem havido algumas flagelações inimigas aos aquartelamentos aqui das redondezas.
Dia 17, operação com três pelotões durante dois dias, o capitão não foi e os que ficam são obrigados a trabalhar desalmadamente. Era regra quando se regressava das operações do mato, descansar no dia seguinte… essa regra acabou!
Dia 18, veio a DO trazer o correio e vieram dois militares Rádiomontadores, para afinar e reparar equipamento de transmissões.
Dia 23, operação de dois dias, com três pelotões, o capitão não foi. Eu fui nesta operação, que foi muito cansativa, devido ao estado pantanoso em que os terrenos que palmilhámos estão, caminhou-se muito tempo dentro de água, e no dia 24 de manhã, houve necessidade de fazer duas evacuações. Todo o pessoal se queixa que o trabalho está a ser exaustivo, os graduados estão a fazer muita pressão sobre quem trabalha…Dia 27, houve coluna a Nova Lamego, foi uma coluna azarada, no regresso tivemos nove furos nos pneus das viaturas, e o “Tripa” caiu duma viatura em andamento, ficou todo escavacado, o corpo parecia um “Cristo”, mas não perdeu a animosidade e o humor que o caracteriza, dizendo ele: - “Que isto lhe aconteceu num momento agoirado da sua vida, porque Alá fechou os olhos e passou pelas brasas, e não o pôde amparar, na queda.”
Dia 30, saída para o mato com 3 pelotões, por dois dias.
Dia 2 de Novembro, vimos uma grande cobra dentro do abrigo de Transmissões, que não conseguimos apanhar. Durante o dia há muito calor…
Dia 5, saíram dois pelotões para o mato, por três dias. Anda muito calor, os africanos dizem que já passou a época das chuvas.

Na tabanca, os civis e os militares andam interiorizados com as orações do Ramadão, vivem estes momentos de devoção com tanta convicção, que dá para cogitar! Os Islamizados, que creio que são praticamente todos, durante o período do Ramadão, não podem comer nem beber nada durante o dia, desde o alvorecer até ao crepúsculo, não podem fumar, não podem ter relações sexuais nem alimentar maus pensamentos ou desejos, assim como não devem alimentar maus sentimentos (ira, revolta, vingança, traição), enquanto durar o Ramadão, intervalo de tempo entre duas fases lunares de lua nova…

Foto 4 > Militares e civis, na tabanca de Canjadude, a orar segundo as suas devoções, durante o Ramadão.

Foto 5 > Corceiro, vestido à civil na tabanca de Canjadude, durante o Ramadão, no meio de alguns civis.

Resumo condensado do que escrevi, no dia 6 de Novembro de 1969:
"Anda tudo cansado com o trabalho no destacamento e há muita pressão dos superiores, as idas para o mato a caminhar em bolhanhas alagadas são uma constante, saídas nocturnas consecutivas, falta tempo para dormir e descansar, a alimentação é péssima, os africanos estão no seu tempo de reflexão e oração, andam muito inactivos e apáticos, por um lado, mas por outro estão agressivos, contrariando o ciclo da tolerância e meditação que impõe o Ramadão, a somar há ainda a instabilidade devido à tensão sexual contida. O Capitão hoje deu duas bofetadas ao Luís Có, (nativo) humilhou-o perante os camaradas, já fora do horário de trabalho, e pelos vistos já não é a primeira vez que bate em africanos….”

Dia 7, (para dia 8) durante a noite, o Capitão foi fazer uma ronda surpresa, visitando todos os postos de vigia, segundo consta apanhou um militar num posto da tabanca a dormir. O Capitão chamou o furriel (Sargento de Dia) e disse-lhe que ia participar dele, porque não sabia controlar os homens que tinha sobre a sua responsabilidade. Passado uma hora ou duas, sem que ninguém previsse, o Capitão voltou a fazer nova ronda, apanhou novamente num posto da tabanca um sentinela a dormir, o Capitão pegou na G3 do sentinela e levou-a consigo.

Dia 8, Sábado, logo de manhã, o Mascarenhas (nativo) foi ter com o Capitão e pediu para lhe devolver a sua G3. O Capitão deu-lhe à vista dos presentes dois murros que o deitou ao chão.

Foto 6 > Corceiro, sentado na pedra à saída do posto de rádio, como era seu hábito.

Ao meio da tarde, eu estava de serviço no Posto de Rádio, sentado no exterior na pedra que nos serve de assento. Nisto, vejo vir todos os militares nativos fardados e equipados com todo o armamento, e em silêncio, formam alinhados na parada, cerca de 220 militares. Três deles, encabeçados pelo João dos Comandos (nativo), destacam-se e vão falar com o Capitão, que lhes deu pouca atenção, virou-lhes as costas e dirigiu-se para o abrigo, o grupo dos três vêm comunicar algo à formatura, no dialecto deles que eu não percebi, retiram-se novamente, dirigem-se agora, ao abrigo do Capitão, onde estiveram uns minutos, saíram e encaminham-se para a parada, comunicam algo ao pessoal da formatura, de imediato e apressados arrancam todos em direcção a Nova Lamego, armados até aos dentes, com bazucas, morteiros, todo o armamento da CCAÇ 5. A percepção que me atormentou, é que ninguém está a dar a devida importância ao caso, invadindo-me a sensação que não há consciencialização do confronto que está em curso, não vejo ninguém a preocupar-se, e voluteia a fantasia que isto é um problema de africanos, e eles que se desembaraçassem, tudo se refugia nos abrigos a enterrar a cabeça na areia, mais parece que tudo pensa - que a pimenta no cu dos outros é refresco quando o cu que está a arder é o nosso… Fico com a percepção que ninguém acreditou que ousassem tomar esta atitude…

Foto 7 > João, (dos Dragões) está sentado no meio das duas cadeiras. Foto tirada em cima do abrigo dos graduados.

Foto 8 > Alferes Sousa e Furriel José Martins, no campo de futebol de Canjadude. Atrás, do lado direito, o Furriel Gonçalves que era o Sargento de Dia a 7 de Novembro.

Foto 9 > Sargento Enfer. Cipriano

O Furriel José Martins, não sei se saiu da secretaria ou não, tropeçou com o grupo dos sublevados, quando começaram a abandonar a parada, e ao dar-se conta do acontecimento, talvez para os demover dos intentos, ou talvez até nem acreditasse que os revoltosos levassem a acção em frente, e naturalmente bem intencionado porque efectivamente até poderia acontecer uma tragédia, disse-lhes: - Saiam para fora do arame farpado e metam-se na picada, que vem algum bombardeiro e vos manda alguma bojarda. Mas os insurrectos não ligaram, nem olharam para trás, e rumaram acelerados para a picada em direcção a Nova Lamego, onde desapareceram…

O Furriel Carvalho viu os militares desaparecerem, na saída de Canjadude para Nova Lamego e foi para o abrigo dar conhecimento ao Alferes do seu pelotão, Alferes Sousa, que por acaso era o 2.º Comandante da Companhia, porque o Alferes Gomes estava de férias. O Alferes Sousa foi ao abrigo do Capitão. Posteriormente mandaram chamar o Sargento Enfer. Cipriano (nativo), cujas relações já não eram muito sadias com o Capitão, o Sargento Enfermeiro até deixou de dormir no quartel e foi dormir para a tabanca. O Capitão, o Alferes Sousa, o Sargento Cipriano e mais dois ou três Furriéis, saíram do aquartelamento no encalço dos revoltosos, numa viatura…

A nossa atitude, éramos meia dúzia de gatos-pingados no aquartelamento, foi tentar vigiar os civis da tabanca, para não deixar sair ninguém a levar informação ao IN sobre o acontecimento, caso não tivesse saído já, o fim da tarde aproximava-se veloz e começamos a organizarmo-nos para ir para os postos de vigia.

A viatura com o Capitão e os militares que o acompanhavam interceptaram o grupo dos militares revoltosos, já a mais de 1,5km de distância de Canjadude. No sucesso do diálogo entabulado, foram de capital importância, para os convencer a retroceder, as boas influências do Sargento Enfermeiro Cipriano (nativo), que algumas vozes diziam, que terão sido as suas manobras instigadoras que levaram os militares a originar a rebelião. Não foi de menos importância, a acção persuasiva do Alferes Sousa, junto do seu Grupo de Combate, mas que se viu forçado a arriar as calças, e a comprometer-se solenemente perante todos os rebeldes, garantindo-lhes que ia desencadear um processo, para que o General Spínola viesse a Canjadude falar com eles, caso desistissem da intentona de ir para Nova Lamego. A presença do Capitão foi pouco ou nada interventiva, limitou-se a ouvir.

Por mero acaso, quando o pessoal já estava de regresso ao aquartelamento, foram sobrevoados a baixa altitude por dois bombardeiros T6, exercício que acontecia frequentemente, devido às visitas regulares que os T6 faziam à zona de Madina do Boé, passando sempre a baixa altitude por Canjadude.

Os militares regressaram a Canjadude com semblante triunfalista…

Foto 10 > Em Canjadude, sentados no assento da viatura. Na linha da frente, com toalha ao pescoço: 1.ºs cabos Saldanha (Cabo Verde), Camilo; atrás do lado direito: 1.ºs cabos Martins, Jorge (nativo), Leitão, os dois nativos do lado esquerdo não me ocorre o nome.

Foto 11 > À direita o Barbosa, o outro militar não me ocorre o nome.

Ao chegarem ao Aquartelamento foram pedir justificações ao Furriel José Martins, para esclarecer qual a razão porque tinha chamado os T6, pedido que nem o Furriel Martins nem ninguém fez.

Os 1.ºs cabos Barbosa e Saldanha (nativos, o último era cabo-verdiano), que foram elementos preponderantes e dinâmicos na organização da insurreição, vieram perguntar-me se eu tinha mandado alguma mensagem via rádio, a pedir a intervenção dos T6. Eu respondi que não, o que efectivamente era a verdade. Sensibilidade pessoal: para mim, o 1.º Cabo Saldanha, era entre os militares nativos de Canjadude, o mais educado, correcto, respeitador e instruído, do qual eu era amigo e continuei a ser.

O Alferes Sousa não pode cumprir a promessa, já tinha havido com ele há tempos, quando desempenhava as funções de Comandante da Companhia, um episódio “irrelevante” mas divertido, que ficou conhecido como “o very-light”. Embora fosse, e é, o Sousa uma excelente pessoa, teve algumas dificuldades a partir daqui com os militares africanos, aos quais teve dificuldades em segurar o pulso até ao fim da sua comissão.

Foto 12 > Dois milícias, com os livros da instrução primária, 2.ª classe, na mão.

Foto 13 > Picada para Nova Lamego, à saída do arame farpado de Canjadude.

Os militares africanos ganharam muita força, houve dias agitados…

O Capitão tinha comandado a polícia em Coimbra, quando da crise universitária de 1969.

Para lavrar o auto da insubordinação, veio de Bissau num DO, um Major e um Furriel, no dia 17 de Novembro. Muitos de nós fomos inquiridos. O Major e o Furriel deixaram Canjadude o dia 24.

O Capitão deixou Canjadude, o dia 28 de Março de 1970, foi colocado em Bissau, foi promovido a Major e ficou a desempenhar na Guiné, as funções de responsável pela educação (ensino). Para substituir o Capitão, veio comandar temporariamente a Companhia, o Capitão que comandava a CCS do Batalhão de Nova Lamego, porque ainda não tinha vindo substituto da metrópole.

Boa saúde e um abraço para todos.
José Corceiro
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7181: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (11): Lisboa a viver num apartamento com mais três estudantes (José Corceiro)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7063: José Corceiro na CCAÇ 5 (17): Coincidências no dia 3 de Agosto de 1970

5 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Mais um regresso ao passado.

Este episódio não foi nada agradável.

Perante os factos o Capitão Oliveira, que já não está entre nós, não reagiu, ou melhor, fez o que sempre fez: Nada!

Luís Graça disse...

Veja-se o comentário que eu escrevi no poste 12 de Março de 2010
Guiné 63/74 - P5978: Mais casos de insubordinação no teatro de guerra: CCAÇ 5, Canjadude, 25 de Novembro de 1969 (José Corceiro)

"O José Martins, ex-Fur Mil Trms, dos Gatos Pretos, CCAÇ 5 (Canjadude, 1968/70), confirmou-me esta noite, ao telefone, esta história. Ele também esteve implicado nos acontecimentos (ou foi apanhado por eles, por tabela). Confirma que houve uma insubordinação, e que o pessoal africano só terá regressado ao quartel sob a ameaça dos T 6... Não sei se estamos a falar do mesmo caso... Vamos ter cautela com o uso (e o abuso) dos detalhes... Espero que ele, por escrito, nos diga mais pormenores...

"Já aqui falámos também do caso de Paúnca, contado pelo J. Casimiro Carvalho, com a grave insubordinação dos soldados africanos da CCAÇ 11 (Os Lacraus de Paúnca) que expulsaram, do aquartelamento, os graduados e especialistas, de origem metropolitana... Estamos a falar no pós-25 de Abril. Mas terá havido seguramente mais casos, no Teatro de Operações da Guiné, com tropas quer metropolitanas quer do recrutamento local...

"O nosso blogue fica aberta a outros comentários, depoimentos, histórias, etc., sobre este tema até aqui pouco explorado (e delicado)" (...)

Luís Graça disse...

Fico impressionado com o detalhe e o rigor das observações e anotações feitas pelo José Corceiro, usando para o efeito a sua agenda...

Hoje temos a descrição, dia a dia, das condições antecedentes que levaram ao conflito aberto entre os militares africanos da CCAÇ 5 e o seu comandante... Seguramente nos nossos arquivos oficiais ou oficiosos será de todo improvável encontrar um relato desta natureza, onde se detecta um crescendo de tensão, dando origem a um conflito que poderia ter acabado em tragédia...

O comandante Oliveira já não está entre nós, pelo que não levará a pena sequer chamá-lo à colação... É grande a tentação de pô-lo no "banco dos réus", acusando-o de ser um péssimo exemplo de liderança (ou de falta dela).

Por outro lado, pode-se perguntar o que faziam os T-6, sobrevoando o grupo de amotinados... Mera acção intimidatória ? Bluff? Simples coincidência ?...

E quem realmente os chamou ? O reduzido grupo de tugas, "abandonado" pelos seus camaradas africanos ?

E a solidariedade com as "reivindicações" dos soldados africanos ? Houve alguma ?

O que poderia ter acontecido se os T 6 metralhassem o pessoal ? Se os pilotos não tivessem sangue frio e discernimento ? Que repercussões poderia ter tido este caso em zona leste ? São mil e uma perguntas... Felizmente houve algum bom senso...

Unknown disse...

Caro Amigo, já deves ter reparado que nunca faço um coments a qualquer Post sobre qualquer estória. Isto porque as mesmas no Blog, a maioria das vezes (para mim) confundem-se um pouco com estados de alma, sentimentos, formas individualistas na apreciação, etç, que naturalmente tenho que aceitar e noutros condescender, porque repito; não sei onde está a realidade e a “paixão” sobre (ou nas) respectivas estórias.
Salvo se houver apreciações de valor ou facto, erróneas ou falsas e infundamentadas é que assumo a liberdade de comentar.

Porém o que me leva a escrever neste teu Post, é precisamente, por teres tido a “salutar ousadia” de contares esta estória de uma História de forma simples e clara.
Sem considerações subjectivas, sem sublimes insinuações, ou apartes que pretendam forçar o leitor a uma determinada interpretação, conseguiste descrever acontecimentos de uma forma linear e simples, dando total liberdade ao leitor de a interpretar e apreciar por si só.
Só faltou um pouquinho de informação do enquadramento estratégico militar na zona.

Por isso peço-te que aceites a minha admiração pelo teu Post.

Carlos Filipe
ex CCS BCAÇ3872 Galomaro

Anónimo disse...

Amigo José Martins

Passámos sim episódios desagradáveis… mas o que se pode esperar das guerras!
Para mim não é suficiente adquirir conhecimento, mas sim disponibilizá-lo com sabedoria e senso, nas funções em que estamos investidos, distribuindo esse mesmo conhecimento beneficiando a sociedade. Infelizmente, a natureza do ser humano não sabe avaliar o limite do brio profissional, ou das responsabilidades que nos são confiadas, e muitas das vezes ultrapassamos os limites do razoável e entramos no domínio do ridículo… mas é a vida…

Amigo Luís Graça

Obrigado!
Só um pequeno esclarecimento…
Os Bombardeiros T6, que sobrevoaram o grupo de amotinados, foi pura coincidência, aliás, todas as semanas uma ou duas vezes faziam esse percurso, em direcção a Madina do Boé. Confesso até que nos deixavam uma sensação de segurança e tranquilidade, o vê-los passar por cima de nós a baixa altitude…

Amigo Carlos Filipe

Aprecio a tua faculdade de interpretação nas análises frontais e julgo leais, desprovidas de qualquer protagonismo, que fazes nos teus comentários sobre os artigos postados. Assim como aprecio o teu estilo franco e sentido como escreves os teus artigos.
São, também, elementos com a tua garra e determinação que dão animosidade e interesse ao nosso Blogue.
Quando tu dizes no comentário: - “Só faltou um pouquinho de informação do enquadramento estratégico militar na zona”.
Sabes, tenho uma certa tendência para dilatar muito os artigos que escrevo.. e tenho consciência que se tornam fatigantes e menos apelativos para quem se dá ao trabalho de lê-los, pelo que depois de escrever faço sempre” cortes.”

Muita saúde para todos

Um abraço

José Corceiro