sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7228: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (3): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (1) 30 de Outubro

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
Sem compromisso de continuidade, inicio aqui algumas notas avulsas acerca dos preparativos da viagem.
É a única maneira que me ocorre de vos agradecer essa ideia de terem criado a secção “Operação Saudade”.

Com um abraço do
Mário


Operação saudade 2010 (3)

Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (1)

Beja Santos

30 de Outubro

Chove torrencialmente, são bátegas a chicotear os vidros. Está na hora de começar a preparação do que vou fazer à Guiné. Primeiro, e ciente do insucesso, vou catar os álbuns de fotografias, manda a razão que se diga que já deve estar tudo bem embalado em poder do Luís Graça. Afinal há surpresas. Ou a fotografia é um duplicado ou falhou o seu envio em momento oportuno para o Luís. Estamos em Dezembro de 1969, houve um jogo de futebol entre oficiais e sargentos. Aceitei ir para a baliza. Os sargentos marcaram logo quatro golos na primeira parte. Apareço de luvas e quico, de pé, seguem-se depois o então major Cunha Ribeiro, depois o David Payne, médico inesquecível, depois o capitão Brito, comandante da CCaç 12, no extremo o Abel Rodrigues, um dos meus companheiros de quarto e que já fui visitar a Miranda do Douro. De cócoras, não consigo identificar o camarada à minha frente, segue-se o Rodrigues (já falecido), o Carlão (que organizou o primeiro encontro do BCaç 2852 e a CCaç 12, em Fão, nos anos 90) e o Ismael Augusto, o guru das viaturas.

No afã de que apareça um milagre ou uma grande surpresa, continuo a escavar entre a papelada. Encontro uma imagem que a minha mãe me enviou, ela escreve: “O Senhor te ilumine, meu filho”. Data: Natal de 1968. Há outras imagens, fixo-me nesta, creio que ela saiu vitoriosa, recebi todas as bênçãos necessárias para resistir e até para me fortalecer.

Saiu depois uma fotografia tirada em Lucala, creio que no Quanza Norte, Angola. Chegou a Primeira Guerra Mundial, a minha mãe, a segunda a contar da direita, está protegida pela tia Lucília, a minha avó aparece com um amplo chapéu de palha. O que me impressiona são as indumentárias, todos os homens usam colete, estão de chapéu e sapato lustroso. Esta a minha mãe que dizia sempre: “Primeiro sou angolana, depois sou portuguesa”.

Encontro finalmente referências no livro de Luís Cabral à região de Xime e Xitole. No fundo, ele confirma o que escreve Hélio Felgas acerca do início da luta armada: primeiro, o Sul; onde se criou o caos e o isolamento dos aquartelamentos e povoações; a seguir, a floresta do Morés e a turbulência criada à volta, em Mansoa, Olossato, Bissorã, Bula, Farim, etc; e a penetração, com sucessos e revezes, entre o Xime e o Xitole. Telefono ao Queta, ele é o meu dicionário vivo, a central da minha memória. Sim, conheceu muito bem o padre António Galli, de que fala o Luís Cabral, na missão católica de Samba Silate. Domingos Ramos era o nome do dirigente político que agitou a região, ainda em 1962. A partir do segundo semestre de 1963, tudo se começou a desarticular, a guerrilha instalou-se para lá da Ponta Luís Dias, à frente da Ponta do Inglês, a base estava localizada em Mangai, no Fiofioli. Os dados batem certo. A partir daí, só as tropas especiais é que foram coroadas de algum êxito em avançar até ao interior destas bases. Na operação “Lança Afiada”, em 1969, todo o território foi percorrido a pente fino, os guerrilheiros e as populações transferiram-se para a outra margem do Corubal, finda a operação, retiradas as tropas especiais a partir da Ponta do Inglês, os guerrilheiros e a população voltaram calmamente para os seus locais habituais.

O Queta lembrou depois o fim da grande tabanca de Samba Silate, ele chegou a viver em Taliurá, perto da Ponta Coli, um dos lugares mais temidos para emboscadas, na estrada Xime-Bambadinca. Perguntei ao Queta se ele não se lembrava de que tínhamos estado ali quase todo o mês de Julho de 1970. “Lembra, lembra muito bem. Era tempo de chuvas, íamos noite escura buscar os materiais da Tecnil ao Xime, sempre a picar a estrada cheia de lama. Tu falas disso no livro grosso que escreveste, em que eu estou na capa”.

Peço o número de telefone do filho, de nome Mamadu, que vive em Amedalai. Ligo e sou atendido prontamente. Mamadu sabe que eu vou chegar em breve. Esclarece: “Nasci em 1968, em Missirá. O meu pai fala muito do senhor. Sei que vai haver uma festa dos homens grandes que estiveram consigo em Missirá. Eu vou aparecer”. Pergunto por Mamadu Djau, o meu bazuqueiro. Mamadu tem uma resposta pronta: “Mamadu é comerciante, já recebeu informações de Fodé, de Bambadinca, o pessoal vai concentrar-se quando ele mandar”.

Despeço-me deste Mamadu, parece que nos conhecemos desde o princípio do mundo. Sinto que tenho a voz embargada. Tive com o Mamadu Djau um dos episódios mais lindos mas pungentes da minha vida. Em 1990, não o consegui visitar, foi uma estadia de uma semana só para preparar a missão de 1991. O mais longe que fui foi a Missirá, um acontecimento lancinante, ainda encontrei a mãe do Quebá Soncó, com mais de 80 anos, viu partir todos os seus filhos, como vira desmembrar-se todo o regulado do Cuor, em Missirá passou todo o tempo da guerra. Foi uma recepção inesquecível. Esta descrição irá aparecer na Viagem do Tangomau. O que importa agora é referir que mal cheguei à Guiné, em 1991, através de Mamadu Soncó, sobrinho de Abudu Soncó, mandei notícias para Bambadinca, com indicação de quando passaria por Amedalai e que iria visitar Mamadu Djau. Recebeu-me como se recebe um filho pródigo ou um pai muito amado de que se perdeu o rasto, há muito. Passeámos por Amedalai, tirei fotografias com as suas duas mulheres e sete filhos. Como eu gostava de ter essa fotografia aqui! Nunca mais lhe pus os olhos em cima. Caminhava para o fim da tarde quando eu pedi licença ao Mamadu para voltar a Bissau. Ele vestia à europeia, um fato cinzento e uma camisa branca, imaculada. Disse-me: “Não demoro nada, já tenho as malas prontas para seguir contigo”. Foi nesse preciso instante que eu me senti à beira de um precipício, tratara da organização desta visita sem pensar nas consequências. O Mamadu, com a sua lógica, esperava que eu o viesse buscar. Apercebeu-se rapidamente que eu estava atordoado, titubeante. Eu olhava à volta pensando naquelas tabancas de fulas e biafadas que tinham estado sempre com os portugueses, sem vacilar, eu olhava para o fundo como se procurasse Taibatá, Demba Taco e Moricanhe, durante anos e anos flageladas e até destruídas, mas sempre com a bandeira portuguesa a tremular no alto de um poste. Com a tristeza estampada no rosto, Mamadu disse-me: “Estava mesmo à espera que me viesses buscar, esperei estes anos todos, tu sabes muito bem como eu lutava, tu sempre confiaste em mim”. Seja como for, separámo-nos depois de um abraço muito apertado, muito próprio de uma estima profundíssima. Nem o Mamadu Djau sabe o erro crasso que cometi não tendo posto em destaque o seu comportamento heróico naquela noite fatídica de 16 de Outubro de 1969, em Canturé, quando ele ficou a comandar o que restava da força que defendia um Unimog 404 desfeito, com o Manuel Guerreiro Jorge moribundo. Na fotografia do livro “O Tigre Vadio” ele é o primeiro a contar da esquerda, que está de pé, com uma chibata parece afugentar mosquitos. O meu inesquecível Mamadu Djau. Perguntei duas vezes ao telefone ao filho do Queta sobre o estado de saúde de Mamadu Djau e ele disse-me: “Está bem, graças a Deus. Melhor ficará quando daqui a um bocado lhe falar neste telefonema”.



Jogo de futebol em Dezembro de 1969, Bambadinca. Deixei entrar 4 frangos, mas não consegui encontrar um guarda-redes suplente…

Imagem que a minha mãe me enviou no Natal de 1968

Dia de festa, lá para o Norte de Angola. A minha mãe teve uma infância cheia de felicidade e amor.

Mamadu Djau é o primeiro à esquerda; de pé, a seguir, está Jobo Baldé e depois o Queta
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7223: Notas de leitura (165): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7206: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (2): Os meus anfitriões em Santa Helena - Bambadinca

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro Mário

Só me vem à lembrança 'uma frase batida' que é "aguenta, coração!".

Já sabes que a emoção vai estar à solta, por isso não terás surpresas por aí. Vai, vê, fala, convive, volta e relata....

Na foto dos 'futebolistas' reconheço de facto o David Payne que conhecia em Vila Franca.

Um abraço
Hélder S.