domingo, 24 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7172: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (35): Teixeira Pinto - Enfiamento da morte

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 23 de Outubro de 2010:

Amigo Carlos
Um abraço e tudo de bom.

Entre Deus, Destino e Sorte, sempre optei por Deus e Mãe Maria, como apoio e ajuda nos caminhos da vida, por mais difíceis que sejam.

Por achar que não devia entrar em alguns pormenores (?), esta passagem de “Viagem …” é um retrato condensado de um dos dias mais pesados da 2791 – FORÇA e por que passei, quer no plano físico com todo o esforço e tensão dispendidos, quer no psicológico por vezes numa luta de sentimentos contraditórios entre o Dever, Consciência, Responsabilidade, Dor, Instinto e Risco.

A quem ler, em especial aos que possam ter vivido estes momentos, o meu pedido de desculpa por poder ferir quaisquer sensibilidades ou fazer reviver esse dia.

Um abraço a todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (35)

Teixeira Pinto – Enfiamento da morte

Madrugada de Setembro e a rapaziada forma na parada, como habitualmente em boa disciplina, aprumo e com garbo.

Verificado o equipamento e transmitido o cuidado redobrado a ter, pela previsível dureza da operação em que não podia haver facilitismos, montamos nos Unimog que em bom andamento nos levam ao longo da estrada Teixeira Pinto - Cacheu.


Teixeira Pinto > Heliporto

Os quilómetros vão ficando para trás até que a coluna pára e o pessoal dos 1.º e 2.º GCOMB rapidamente se apeia, reúne e assume as suas posições, dando quase de imediato início ao andamento para entrada na mata, com azimute a um ponto mapeado como nosso objectivo nesse dia, algures na península do Balanguerês.

Ao que julgo lembrar, o tempo meio cinzento mas com abertas estava mais ou menos estável mas, as variações da vegetação nas matas por vezes dificultavam a progressão serpenteante, espaçada, atenta e silenciosa que procurávamos fazer, na esperança de não sermos detectados até ao objectivo, onde era suposto e quase certo, virmos a ter confronto.

Sob o comando do Alf Mil Barros (2.º GCOMB) - julgo que o Alf. Mil F. Pereira (1.º GCOMB) não participou – coadjuvado pelos Furriéis, o bi-grupo (?!) com cerca de trinta elementos com o armamento reforçado pelas MG e Lança-róquetes que usávamos, foi escoando as horas na marcha a corta-mato, intervalando com pequenos descansos para descompressão, escuta e perscrutação de pormenor, evitando o mais possível os trilhos, clareiras e matas de copas muito abertas, o que era normal fazermos por segurança.

A avioneta de PCV cedo nos começou a sobrevoar intervaladamente, fazendo-nos temer a detecção ou pior ainda, denunciar eventualmente o rumo do nosso andamento. Como consequência, a nossa vertical começou a ser viciada e os banana AVP-1 começaram a sofrer de interferências e perdas de sinal !?!!

Julgo que por o Mesquita ( Furriel do 1.º GCOMB) estar de férias, o Fur Mil Marques do mesmo GCOMB - há já uns meses afastado destas lides por ter ficado adstrito à secretaria – conhecedor da dificuldade da operação, oferece-se para fazer parte da força desfalcada de graduados. Como já não estava habituado àquelas andanças, o Castro e eu não concordamos em que ele assumisse esse risco, mas o Marques insistiu e insistiu, acabando valentemente por nos acompanhar.

Continuando a progressão, já próximos do objectivo começamos a entrar numa mata arbustiva que a cada passo ficava mais fechada. Paramos para análise da situação e descansar um pouco, fora de possíveis olhares indiscretos. Os que já lá estavam embrenhados deviam sair rapidamente dali, já que o tipo de mata quase só nos permitiria ripostar por tiro em caso de ataque e ficávamos muito permeáveis aos RPG e morteiro.

A dada altura começamos a ouvir vozes vindas ao que parecia, de um palmar a umas poucas dezenas de metros à nossa esquerda. É resolvido fazer por alguns de nós uma aproximação para observação e eventualmente desencadear uma espécie de golpe de mão, enquanto os restantes ficavam de cobertura e apoio à retirada, com instruções de só dispararem à vista e se fossem atacados, pois o grupo de observação poderia ficar entre fogos.

De novo o Marques se voluntaria para comandar, mas acaba por aceitar os argumentos da minha oposição incisiva e ficar.

Peço uma dúzia de voluntários com MG, HK, lança-róquete, dilagrama e restantes com G3 e avançamos agachados mas em passo rápido. A mata começa a rarear e o palmal está logo ali na frente, para lá de umas moitas. Várias vozes se ouvem agora distintamente, orientando-nos.

Em início de manobra de abertura, o fogachal rebenta com intensidade feroz, vindo de cima e de frente. Ouvem-se gritos e choros. O matraquear e os rebentamentos sucedem-se. Diante de mim depara-se me uma mulher e atiro-me para cima dela, só depois me apercebendo que traz um bebé às costas (vd. Post 3634 de 16 DEZ 2008 ).
…um impacto num carregador do cinturão e outro no guarda mão fazem-me em pensamento chamar pela Mãe em ajuda (curioso (?) mas verdadeiro). Na realidade foi um aperto do caraças.

O tempo abranda e parece parar em contraposição aos disparos… até que aquela escaramuça termina. São recuperadas quatro mulheres com dois miúdos bebés. Nenhum de nós foi ferido, felizmente não tendo o adversário tido a mesma sorte, pelos indícios.

O pessoal reagrupa e recomeça a progressão com moral em alta mas consciente da grande probabilidade de virmos a sofrer uma forte emboscada. O 1.º GCOMB vai agora na frente. Um dos miúdos volta e meia chora denunciando o nosso andamento e repara-se que é a mãe que o belisca nas pernas. Ameaça-se a mãe, mas os choros continuam com interrupções, denunciando-nos. A situação é gravosa e há quem lhe queira pôr fim. Intervenho e ameaço. A marcha continua.

Na frente segue o Fur Mil Rebocho (OE) e o 1.º Cabo Antunes (MG 42), ambos do 1.º GCOMB. A uma dezena de metros na orla de uma pequena clareira é avistado um elemento IN camuflado a apontar um RPG, que dispara de imediato no enfiamento da fila.

Há reacção mas o Antunes infelizmente não tem tempo de se esquivar e… cai. Estamos a 23SET71.

A emboscada desenvolve-se pela frente e pela direita. O tiroteio agiganta-se, uma das prisioneiras foge… o PCV volteia por cima de nós (Post 7067 - 01OUT10).

Os Enfermeiros Braga e Taia desdobram-se e fazem o que podem e sabem no apoio aos feridos. Valentes Homens.

Passado tempo que pareceu infinito, tudo fica calmo.

Nada bom de se ver… o malogrado Antunes tem uma granada de RPG que não explodiu (?) mas lhe causou a morte, enfiada no baixo ventre com a empenagem de fora. Digo que não explodiu porque penso que, se assim não fosse, pelo menos toda aquela zona do corpo teria desaparecido, o que não aconteceu .

Vem-me à cabeça a cena do miúdo e interrogo-me. Acabo por aceitar que procedi como devia, a consciência não me pesa e fico em paz.

Por momentos parece que vai haver algum descontrolo emocional perigoso e que é sustido com firmeza e segurança, com serenidade, ordens claras e incisivas .


Teixeira Pinto > Luís Faria junto a um helicanhão

Para além do Antunes, há seis feridos, alguns com gravidade. O voluntário Fur Mil Marques é um dos feridos, julgo que numa perna ou pé, felizmente com pouca gravidade, pelo que vai ser evacuado. Peço-lhe um carregador para substituir o que tinha ficado inoperacional e para trocar de G3 comigo, já que a minha passou a funcionar só tiro a tiro, talvez em resultado do impacto que apanhou, mas acabo por desfazer a troca.

Era a minha G3 que sempre me fora fiel, nunca me tinha deixado ficar mal, e até compartilhava com ela, amarrando-o junto do tapa chamas, um pequeno lenço vermelho que me tinham oferecido no Puto e que usávamos em operações e minas, entre outras ocasiões. Não iria ser por ela estar um tanto engasgada que a abandonaria. Superstições.

Efectuadas as evacuações e inspeccionada a zona ficamos a perceber que seriam uma vintena os convivas nefastos e que nem todos regressariam às suas lides normais!

O pessoal arranca em direcção à zona de recolha onde vai passar a noite, acabando por lá chegar sem mais contratempos. Teixeira Pinto e a nossa doce vivenda estão à espera, desta vez para carpir mágoas e procurar analisar o que se tinha passado.

Iria ser difícil esquecer esse dia.
Luís Faria
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7067: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (34): Em Teixeira Pinto, círculo quase fatal

10 comentários:

MANUELMAIA disse...

CARO LUIS,

LI,SORVENDO AS LINHAS, O EXTRAORDINÁRIO RELATO CISCUNSTANCIADO DESSA OPERAÇÃO,E QUERO AGRADECER-TE A FORMA COMO O FAZES,NUMA RIQUEZA DE PORMENOR QUE EVIDENCIA QUE TENS GRAVAA PARA TODO O SEMPRE ESSA PERIPÉCIA DA TUA GUERRA (ENTRE MUITAS OUTRAS,CLARO ESTÁ...)
UM ENORME ABRAÇO
MANUELMAIA

Jorge Fontinha disse...

Não é de mais salientar, a tua nobreza de caracter, de que sou testemunha em inúmeras situações em que ambos interviemos.Não fui interveniente nessa, porque dessa vez folgou o meu Grupo de Combate.Lembro-me todavia, do relato pormenorizado, que me fizeste no final.Lembro-me agora mas devo confessar que já se me tinha varrido, certamente porque não havia sido actor da cena.
Continua a contar porque ninguem como tu, tem a CCAÇ 2791 (Força), na memória.
Aquele abraço de sempre.

Jorge Fontinha

Anónimo disse...

Caro Luís

Passados todos estes anos, só me resta agradecer-te e a todos os teus camaradas, que então não me recordo de conhecer, apesar de estarmos tão próximos, pelos sacrifícios que fizeram para manterem Teixeira Pinto tão afastada do IN.

Grande Abraço

Jorge Picado

Anónimo disse...

Caro Luís Faria.

Neste teu relato retratas com a nitidez necessária o que era a vida de um operacional e com ele relembro situações parecidas de tensão e angústia porque também passei.

Sem falsos romantismos, nem exagerados heroísmos, era esse o lado mais parecido com as habituais saídas para o mato (neste caso era uma operação), onde havia contacto com o IN, e a perda de vida de camaradas era sempre muito difícil de aguentar.

Penso que agiste como seria de esperar, as consequências resultantes são os imprevistos da guerra.

Além do mais, a tua memória narrativa transmite uma passagem da guerra onde não omites os sofrimentos dos teus camaradas de pelotão.

Gostei de ler o teu texto.

Um abraço

Manuel Marinho

Hélder Valério disse...

Caro camarada Luís Faria

Uma narrativa de fôlego.
Cheia de elementos capazes de se fazerem várias considerações sobre eles.
Acho que é um excelente contributo para que aqueles que não conheceram as andanças em que os jovens de então se encontravam envolvidos, poderem fazer uma boa idéia como era.
Dizes, a terminar, que foi um dia difícil de esquecer... pela tua narrativa está-se mesmo a ver que esqueceste!
De certeza que tens tido isso bem arrumado lá num cantinho da memória e agora entendeste dever revelá-la. Fizeste bem.

Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Meu caro Luís,
Andei por lá!
A mata do Balenguerez, entrecortada por palmares, arbustos densos e capim em clareiras pequenas, propícias a emboscadas, era, por isso mesmo, vil e traiçoeira.
A sua fisionomias era propícia à preparação de pequenos campos de morte e que causava grandes dificuldades à reação, sobretudo na utilização de morteiros e lança-granadas.
É a este ambiente selvagem que o teu relato extraordinário nos leva, nesse fatídico dia 21 de Setembro de 1971.
O teu relato, semalhante a tantas situações vividas por muitos de nós em outros ambientes e situações, demonstra que nós não eramos nenhuns assassinos e que a vida humana, mesmo a dos nossos inimigos e a dos seus familiares, era digna de ser preservada.
Por mor da nobreza de sentimentos que enchia o teu ser, perdestes (perdemos todos) um camarada e tivestes que viver uma vida com essa e outras recordações menos felizes.
Tenho a certeza que a vivestes com a consciência tranquila de quem cumpriu o seu dever e tomou, neste caso, a única decisão possível.
Importa realçar a nobreza da tua decisão. Certamente que dignificou o militar que eras, e o cidadão que nunca deixastes de ser.
Bem hajas!
Um abraço amigo,
José Câmara

armando pires disse...

Luis.
Camarada.
Do que escreves, a malta já opinou e eu concordo.
Por isso, cambalhota à rectaguarda porque ando há tempos para te fazer esta pergunta. Estiveste em Bula, mas tudo o que escreves (ou eu ando distraído?) passa-se em Teixeira Pinto. Zangaste-te com Bula?
Razão da pergunta: eu estive em Bula até Agosto de 69 e fui fazer o resto para Bissorã.
abraços do
armando pires

Luis Faria disse...

Caro Armando Pires
Pelo que me dizes...andaste pelos vistos distraído!!!
Os tempos que passei em Bula ( 1 NOV 70 - 24Maio 71 )estão à minha maneira retratados a começar no Poste
P 3508 de 24 Nov 2008 e à razão aproximada de um por mes.São uma catrewfa deles
Um abraço
Luis Faria

Luis Faria disse...

Amigos

Fiquei na verdade surpreso muito agradàvelmente pelo que expressaram nos comentários.

A minha Alma fica mais aconchegada com estes alimentos.

Obrigado e um Abraço

Luis Faria

Anónimo disse...

Luís,
Os comentários anteriores são suficientes e não tenho nada a acrescentar.
Apenas um abraço
JD