quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7026: Estórias do Jorge Fontinha (12): Os nossos Enfermeiros

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Fontinha* (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 19 de Setembro de 2010:

Carlos Vinhal
Já era mais que tempo.
Aqui vai mais uma Estória. Se a poderes publicar até ao dia 24, ficaria satisfeito.

Aquele abraço
Jorge Fontinha


Estórias do Jorge Fontinha (12)

Os nossos enfermeiros

A CCAÇ 2791- (FORÇA), foi uma Companhia, cujos Especialistas e não só os Operacionais, foram de verdadeira excelência.

Hoje vou falar da equipa de enfermagem cuja competência e dedicação não tiveram limites. Superiormente liderada pelo Furriel Miliciano Urbano Silva, os Cabos e maqueiros divididos pelos 4 Grupos de Combate, foram uma equipa de respeito.

O Urbano era incomparável, tanto na sua Especialidade como ser humano, voluntarioso, competente e rigoroso. Ninguém escapava às suas seringas nem aos seus comprimidos. Protagonizámos, os dois, muitos episódios, alguns deles já nem sequer os consigo lembrar. Há todavia um que jamais vou esquecer.

Quando a Companhia se reúne em Teixeira Pinto com o nosso 4.º Grupo, alguns dias passados, há uma operação programada para o Balangarez. Na véspera tive uma entorse no pé direito e como nunca me havia baldado em circunstância alguma, fui ter com o Urbano para que ele me desse a sua opinião. Depois de revisto, aconselhou-me a consultar o médico do Batalhão, que me aconselhou a descansar 3 a 4 dias, passando-me uma baixa para 3 dias. Como era da minha obrigação, dei conhecimento ao Alferes Gaspar e dirigi-me ao gabinete do Capitão Mamede, informando-o da situação. Aconteceu o impensável!

O Capitão Mamede acusou-me de caras de ser oportunista e de estar a forjar a situação. Nunca havia sido tratado, por um superior hierárquico, da forma que estava a ser e com a indignação, disse que não ia à operação, bati com a porta e fui para o bar meter uns gins com água tónica pelas goelas abaixo.

Furriel Miliciano Enfermeiro, Urbano Silva

Foi quando apareceu o Urbano. Não o enfermeiro, mas o ser humano que todos nós na Companhia lhe reconhecíamos. Agarrou-me por um braço e convidou-me a ir até à enfermaria pois queria falar comigo. Aí, mandou-me descalçar a bota, fez o seu próprio exame, mexeu, remexeu, massajou durante alguns minutos, com milagrosas pomadas, ligou-me o pé com todo o vigor e obrigou-me a engolir um comprimido, dando-me outro, para ser tomado ao levantar.

Perguntei-lhe para que era aquilo tudo, se já tinha decidido não ir à operação. Aí, sem que nada o fizesse esperar, faz uma pirueta no ar, dá dois ou três passos de dança e diz três ou quatro palhaçadas, provocando um ambiente hilariante e de boa disposição. Foi a táctica dele. Vais à operação ou não? Vou, mas levo a dispensa no bolso. Se tiver de ser evacuado, alguém a vai ver!

Hoje digo obrigado Urbano.

No decorrer da operação senti alguma dor que estoicamente fui ignorando. A dada altura e já no período de emboscada, para passar a noite, comecei a ter tremuras e febre, tendo passado um mau bocado. Valeu-me na altura a minha companheira de emboscada, a inseparável garrafa de Whisky, duas goladas e a colaboração do Cabo Enfermeiro Silva, que com o restante me massajou, pondo-me a transpirar abundantemente. Ao raiar do dia, preparamo-nos para regressar à estrada e sermos recolhidos para voltarmos para Teixeira Pinto.

A febre e as tremuras passaram, o pé ainda bastante dorido, mas felizmente com evidentes melhorias ajudaram o resto.

O Cabo Enf.º Silva assistindo-me durante a Operação

Assisti mais assiduamente às intervenções do Cabo Enf.º Silva. Foi ele que quase em simultâneo assistiu ao acidente que mutilou a perna do Nunes, nosso primeiro ferido de toda a Companhia. Foi também ele que assistiu em primeira mão ao acidente que provocou o primeiro morto do Grupo de Combate e da Companhia, tendo tido a sorte, ele e todos nós, de seguir na viatura que ia à nossa frente e era comandada pelo Furriel Chaves.

Curiosamente, o Chaves esteve também ele ligado ao episódio seguinte, quando em Mato Dingal, o Cabo Silva, foi chamado de urgência á Tabanca para ajudar a um parto difícil. Coincidiu com a hora de almoço mas o Silva interrompeu, veio avisar-nos a nós e preparou-se para ir. O Chaves que era homem para grandes rasgos, também interrompeu o almoço e igualmente,”meteu as mãos nas luvas” e também foi.

Entretanto eu e o Alferes Gaspar, continuamos a almoçar, comer a sobremesa e continuamos á mesa, com os respectivos digestivos, aguardando a chegada de ambos. Assim, o Chaves mal se livra das luvas e se lava, vem para a mesa, acabar de almoçar. Quem estava de frente para a porta de entrada era o Gaspar, que de imediato começa vomitar, provocando-me a mim próprio, igual reacção. O Chaves ao lavar-se, esqueceu-se de mudar a camisa, que vinha ensanguentada e com vestígios da placenta. Resta dizer que o desempenho do Silva, foi exemplar.

O Silva era adorado pelo pessoal daquela Tabanca pois tinha sempre uma seringa mágica que curava toda a gente!…

Aos meus bons amigos ex-Furriel Urbano e ao ex-Cabo Silva, o meu abraço eterno.

Foi apenas mais uma Estória verdadeira, vivida na Guiné.

Aquele abraço para toda a Tertúlia.
Jorge Fontinha
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6999: Convívios (189): Encontro anual do pessoal da CCAÇ 2791 em Viseu, dia 25 de Setembro de 2010 (Jorge Fontinha)

Vd. último poste da série de 9 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6564: Estórias do Jorge Fontinha (11): Um soldado pediu-me que o matasse

4 comentários:

Abranco disse...

Caro Jorge Fontinha
São os relatos de estórias como esta que dignificam todos os jovens anónimos que apesar da idade experenciaram vivências extraordinárias que seria óptimo os nossos filhos, sobrinhos e outros tomassem conhecimento.
Cabe a nós Tabanca Grande, contribuir para a divulgação sem reticências de todos os gestos que ao contrário do que muitos pensam, só dignifica a nossa geração
Um Abraço

António Branco
ex 1º cabo Reabº Matª
C CAÇ 16
Bachile

Anónimo disse...

Meu caro Jorge,

"Valeu-me na altura a minha companheira de emboscada, a inseparável garrafa de Whisky"...escrevestes.

E eu pergunto:

Como tivestes coragem de atraiçoar, tão vilmente, a tua grande e melhor amiga a Sra. Canhota?

A coragem, a abnegação e o sangue frio dos nossos camaradas para-médicos foram largamente evidentes e em situações bem adversas.

Honra e justiça lhes seja feita!

Um abraço amigo,
José Câmara

Anónimo disse...

Caro Jorge Fontinha

Não restam dúvidas que, muitos dos que sofreram no corpo as consequências da "metralha", conseguiram sobreviver e até ficar sem sequelas, graças ao pessoal de enfermagem, muitos deles com parcos conhecimentos, mas como diz o JCâmara, com "a coragem, abnegação e o sangue frio" operaram muitos "milagres".

Abraço
Jorge Picado

Luis Faria disse...

Grande Fontinha

Até que enfim te resolveste a seguir o meu conselho e recomeçares a escrever as muitas estórias que tens para contar e assim...perderes uns kilitos!!

Quanto a este,é verdade que tivemos uns excelentes Enfermeiros,já ha uns tempos o tinha referenciado tambem em Post.

Todos eles,a começar pelo Urbano,eram Pessoal especial,felizmente para nós e provaram-no muitas e muitas vezes debaixo de fogo.

Quanto ao teu caso,Amigo,o Cap. Mamede conhecia a tua "ronha" à
légua.

Querias beber um copo com o Urbano...? Levaste a garrafa para ... beberes !!! e depois o desgraçado do Silva ,que não abichou nada,é que teve de te enfaixar as "canetas" e em paga ...só lhe trouxeste a sacola!!

Pois...pois...lembro-me muito bem disso...e amanhã tiramos tudo a limpo à volta de uns tintóis,certo?

Um abração amigo e...boa viagem
Luis Faria