quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6847: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (2): Tempo Africano, de Manuel Barão da Cunha (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Tinha outros propósitos para as férias, limpezas a fundo, calcorrear no interior das florestas, banhar-me nas praias fluviais.
A canícula pregou-me uma partida das maiores, reduzi as limpezas, tomei banho pelas 8 da noite com 30º e li que me fartei.
Quem paga é a malta do blogue.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (2)

por Beja Santos

A canícula acentua-se, invade a biblioteca, traz um bafo com odores de seiva de pinheiro. Em definitivo, desisto de fazer limpezas, vou esperar por uma aragem, irei resistir de livro na mão a toda esta fornalha. Uma sensação de modorra invade-me, sacudo o torpor pondo a ópera “Fidélio”, de Beethoven no gira-discos. E pego no número de Janeiro a Julho de 2006 da revista Mamasume, da Associação de Comandos. É aqui que vem publicado o artigo do coronel Raúl Folques acerca da Operação Neve Gelada, que se realizou a 20 de Março a 3 de Abril de 1974. Terá sido a última grande operação na Guiné. Sei que o Amadu Djaló esteve lá, ele relata este episódio, aliás em tons muito pessimistas.

Segundo Folques, na segunda quinzena de Março de 1974, a situação no canto Nordeste do teatro de operações da Guiné era crítica e deteriorava-se rapidamente. Canquelifá estava a ser diariamente bombardeada com morteiros 120 mm, foguetões e canhões sem recuo. Havia indícios de que se preparava um assalto com tropas de infantaria à localidade, cuja guarnição estava nos limites da resistência física e psíquica (CCaç 3545 com milícias e artilharia). O comandante-chefe, Bethencourt Rodrigues, determinou que o Batalhão de Comandos fosse resolver a situação. Pela análise fotográfica, concluiu-se que o In organizava as suas bases de fogos em duas posições, pelo que as Companhias de Comandos foram lançadas em direcção a estas duas posições, para desarticular e desbaratar o agressor. Duas Companhias de Comandos dirigiram-se para as bases de fogos e assaltaram as respectivas posições. O inimigo retirou com pesadas baixas, infligindo às nossas tropas 3 mortos e 20 feridos. Folques comenta que os heli-canhões estacionados em Nova Lamego demoraram muito tempo a chegar à zona de combate, tendo tido uma acção reduzida na exploração do sucesso obtido. Fez-se uma recolha significativa do material capturado e nos dias seguintes a região foi batida, tendo havido contactos esporádicos com bigrupos In. Folques refere ainda que esta operação consolidou a posição de Canquelifá, tendo o In perdido uma bateria de morteiros pesados, dado que foram capturados três morteiros de 120 mm completos, mais uma culatra, dois tripés e um prato base. O In terá sofrido 26 mortos confirmados.

No número de Janeiro a Junho de 2008, a revista Mamasume apresenta dois extensos trabalhos, um de autoria do co-editor Virgínio Briote sobre os comandos da Guiné da história de Brá e outro sobre a Operação Tridente, da autoria de António Vassalo Miranda. O Virgínio publica extractos do seu diário, estamos em meados da década de 60, transcreve relatórios das operações e até aparece publicado um bilhete apreendido a uma enfermeira, talvez familiar de Domingos Ramos, dirigente do PAIGC. Não acredito que o Virgínio Briote, com os dotes que lhe conhecemos, não irá mais tarde engrossar e condimentar esta belíssima prosa. O relato da Operação Tridente é uma versão pessoal, alguém que participou do princípio ao fim e que se apresenta como testemunha ocular que sentiu no corpo e alma todos os 73 dias que esta operação durou. Vassalo Miranda foi furriel dos Comandos, chefe da primeira equipa de assalto. Apresenta a composição das forças dos cinco agrupamentos, os Comandos do alferes Saraiva, mais os meios da Marinha e da Força Aérea. O autor não regateia elogios às forças inimigas, que deram sempre a cara à nossa ofensiva e resistiram até ao limite. No final, as nossas tropas puderam percorrer as três ilhas (Caiar, Como e Catunco) em todas as direcções, como é sabido ficou depois um aquartelamento em Cachil, que mais tarde veio a ser abandonado. Gosto muito do final deste depoimento, assim: “Muitos anos depois do 25 de Abril de 1974, por motivos de saúde, estive internado no hospital Egas Moniz. Partilhava o mesmo quarto com um cidadão guineense que ali estava para ser operado a uma catarata. Tornámo-nos amigos e durante o período de maior sofrimento sempre me apoiou. Falámos dos tempos idos e... chegámos à conclusão de que tínhamos estado na ilha na mesma altura, só que em barricadas diferentes. 42 anos depois, não tenho qualquer rancor. Perdi camaradas e amigos. Eles também. Irei morrer sem que o meu sonho se concretize. O sarar das feridas, juntando os sobreviventes de ambos os lados na praia de Caiar, numa confraternização de homens que lutaram com dignidade, para honrar as bandeiras que defendiam e que acabaram por se entrelaçar”. Este punhado de revistas “Mamasume” irá para o espólio da nossa biblioteca.

Já corre uma brisa, o melhor será pegar nos panos de pó e começar a limpeza das estantes. Mas olho para a capa de “Tempo Africano”, de Manuel Barão da Cunha, com lindas ilustrações de Neves e Sousa (Didáctica Editora, 1971), vou ainda mergulhar nesta prosa antes de passar para as operações triviais de higiene, conservação e limpeza de uma biblioteca que tanto amo. Manuel Barão da Cunha é autor de “Aquelas Longas Horas”, “A Flor e a Guerra” e de um “Tempo Africano” noutra edição, todas essas obras já aqui foram alvo de recensão. Não escondo que é este o livro da minha preferência. É uma escrita sincopada, tudo músculo sem gordura, uma reportagem pintalgada de testemunho e de alguma memória ficcionada. Estamos em Luanda em 1970 e recordam-se os acontecimentos de 1961, que Barão da Cunha viveu em directo, nos tiroteios de Luanda, nos blindados que foram ajudar os fazendeiros. O autor procurou as personagens, são civis que refizeram a vida, a camaradagem permanece, disseminou-se pelas muitas localidades de Angola. Esta prosa obedece a um eixo central das preocupações de Barão da Cunha: exaltar o militar anónimo, elogiar o acto fraterno, chamar a atenção para o sublime desses gestos heróicos a uma metrópole desatenta (não esquecer que estamos num período anterior ao 25 de Abril). Depois emergimos em Tabassai, na região de Pirada, estamos ainda em 1970. Tabassai fica sensivelmente a meia distância entre Pirada e Bajocunda, pertence ao regulado da Pachana. Voltando atrás, em 1965, é provável que Barão da Cunha rememore acontecimentos que viveu, descreve usos e costumes, temos novos reencontros, há mesmo uma ida ao Morés, temos de novo os comportamentos de heróis anónimos na permanente elegia de Barão da Cunha.

Suavizou o calor, agora vou às lides domésticas. Estão já seleccionadas as leituras em que vou mergulhar, seja qual for a intensidade para a onda de calor para amanhã: “Amílcar Cabral” contado pelo embaixador cubano Oscar Oramas; “As Memórias das Guerras Coloniais”, por João Paulo Guerra (sem dúvida o primeiro grande condensado do contexto da guerra colonial no seu possível deve e haver) e esse sublime “Ébano” do prodigioso Ryszard Kapuscinski, muito provavelmente o livro que melhor descreve, em crueza e humanidade, a diversidade das pessoas africanas. É este o proveito que vou tirando da canícula, que me incita a viajar por África à volta da minha biblioteca.

(Continua)
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Notas de CV:

Clicar nas imagens para as ampliar.

Vd. poste de 11 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6845: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (1) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Juvenal Amado disse...

Estava em Nova Lamego a quando destes acontecimentos.
Não lembro se tinha ido a Buruntuma levar minas e sapadores da CCS, ou simplesmente tinha ido levar para quedistas, que tinham reforçado Cancolim.
Nessa mesma altura o «eli» que transportava o comandante de zona, foi metralhado quando sobrevoava a picada a baixa altitude.

Um abraço

Juvenal Amado

Sotnaspa disse...

E eu também estava lá, aliás estive de 22-07-72 a 15 ou 16-07-74, um dia fui numa de voluntário até à placa, e de um momento para o outro, já estava a dar uma maozinha a acarretar macas para dentro de um Dakota, que depois de cheio segui a toda amecha para Bissau.
Um alfa bravo

ASantos
SPM 2558