sexta-feira, 30 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6808: Notas de leitura (138): Os Tempos de Guerra De Abrantes à Guiné, de Manuel Batista Traquina (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
O Manuel Traquina prima por ser despretensioso, presta no seu livro uma justa homenagem aos condutores e mecânicos.
Confesso que estava a ler e dei conta da tremenda injustiça que foi não ter dado o justo relevo aos condutores e mecânicos que tanto me ajudaram no Cuor e na região de Bambadinca.
O que seriamos nós sem aquelas máquinas a rugir pela picada fora?

Um abraço do
Mário


Memórias de um tempo de guerra, algures entre Bula e Buba

Beja Santos

Chama-se Manuel Batista Traquina, faz parte da nossa agremiação e vazou em livro as suas memórias e considerações colaterais sobre a guerra que experimentou entre 1968 e 1970. O produto final toca pela simplicidade e desafectação: “Os Tempo de Guerra, De Abrantes à Guiné”, por Manuel Batista Traquina, Edição Palha de Abrantes, 2009.

No essencial, temos aqui o registo da CCaç 2382. O seu comandante, Carlos Nery Sousa Gomes de Araújo sente orgulho em recordar no prefácio um comentário de Carlos Fabião quando este assumiu o comando o COP4, assim se referindo à CCaç 2382: “A melhor companhia do Sul da Guiné”. Foi uma companhia afortunada, só dois dos que tinham embarcado em Maio de 1968 é que morreram.

Manuel Traquina era o responsável pela manutenção do parque de viaturas. Mas o seu registo tem um espectro muito amplo: reúne as suas reminiscências desde que assentou praça nas Caldas da Rainha, a sua passagem pela Escola Prática de Serviço e Material, depois Elvas, mais adiante Beirolas, e depois Abrantes, já com a CCaç 2382; o prato substância, claro está, serão os acontecimentos que ele viveu no teatro de operações, sobretudo de Bula a Buba.

Escreveu em jornais a sua experiência, tece considerações sobre a legitimidade da guerra, não esqueceu as viagens do fim-de-semana (sempre com a gasolina partilhada pelos companheiros de viagem), vai observando a composição social e não foge aos comentários. Por exemplo, em Beirolas, no Depósito Geral de Material de Guerra: “Neste aquartelamento depressa me apercebi que ali se encontravam filhos de gente importante, bastante influentes para que os filhos ali passassem o serviço militar, sem o risco e o inconveniente da guerra colonial. Havia mesmo aqueles que entravam e saíam trajando civilmente e que à porta do quartel deixavam estacionados Ferraris e outros carros idênticos, que deixavam transparecer a vida abastada dos seus proprietários”.

Dentro das suas memórias, insere os documentos da história da unidade, não se coíbe do seu mister de cronista. Em 1 de Maio de 1968 embarcam no Niassa. As memórias ganham a partir daqui mais vivacidade: as referências ao infortunado Ramiro Duarte; a evocação da companhia como uma família de 160 pessoas; o colorido e a lufa-lufa de Bissau; um apanhado sobre a guerra da Guiné; a morte do Flora da Silva, um manjaco corajoso, cuja vida se perdeu perto de Bula; a descrição da Mampatá; o ataque a Contabane em 22 de Junho, que reduziu a tabanca a cinzas; as vicissitudes do furriel Pinho, o zelador das Transmissões; vicissitudes das colunas entre Buba e Aldeia Formosa; o sapateiro de Nhala, que não se sabe muito bem se era ou não agente duplo; história de “Os Maiorais”, como era conhecida a CCaç 2381; lembranças de crianças, como aquele pequeno Mamadu, que resolveu ir à caça das rolas com a Mauser e surpreendeu os guerrilheiros que se preparavam para um ataque a Mampatá; a vida operacional em Buba.

Buba está no coração das suas memórias, histórias de lavadeiras, quezílias entre militares, brincadeiras de mau gosto, a chegada do correio, os jogos de futebol, as letras de fado adaptadas às circunstâncias da guerra, as dores dos sinistrados, a nova estrada entre Buba e a Aldeia Formosa que se revelou não servir para nada, as pescarias no rio Grande de Buba, a homenagem aos condutores e aos mecânicos.

Manuel Traquina procura associar o leitor à compreensão do território: os rios, a existência de prisioneiros de guerra, como se chegou ao desenho do distintivo da CCaç 2382, a acção de Spínola, por exemplo. Mas também os condimentos do quotidiano: como tomar duche com a água escassa ou a cerveja pluriusos (bebida cujas garrafas eram utilizadas como aparelhos de alarme, as garrafas batiam no arame farpado e anunciavam aos sentinelas a presença do inimigo).

É um caderno de alguém que se comprazeu a ser útil, a fazer amizades e que ainda hoje se orgulha do dever cumprido. Escreve sem rancores, junta serenamente as suas notas de observação, confunde-se com a crónica dos acontecimentos da CCaç 2382. Não arma em herói nem em vítima. É um testemunho que os historiadores não poderão ignorar. Até pela sinceridade.
__________

Notas de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6802: Notas de leitura (137): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (3) (Mário Beja Santos)

Vd. poste de 30 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4441: Bibliografia de uma guerra (48) "Os Tempos de Guerra - De Abrantes à Guiné", de autoria de Manuel Batista Traquina

6 comentários:

Cancela disse...

Convém lembrar,que antes da morte do Ramiro,tivemos outra bem mais penosa,que foi o Elidio num ataque a Buba,este Elidio era entre nós mais conhecido por Esgota Pipas,alcunha que ele muito prezava
Umabraço ao Traquina meu camarada na 2382

Cancela

Carlos Nery disse...

Era já noite, regressaramos ao aquartelamento após uma ausência quase de 48 horas. Como sempre fazia mandei formar o pessoal que saíra comigo. Uma breve análise a tudo o que se tinha passado. Depois o cuidado maior: "Tirar carregadores, culatra atrás duas vezes, patilhas en segurança, meter carregadores". Garantido que nenhuma arma entrava no aquartelamento com um cartucho na câmara, mandei destroçar. Só então senti a presença de Carlos Fabião que a tudo assistira, silencioso. Não o conhecia, vira-o ao longe, uma ou duas vezes, em Bissau. Apertou-me a mão. E logo ali se firmou uma amizade que duraria até o seu falecimento. Nessa primeira conversa ele disse-me, efectivamente essa frase. Tem a importância que tem. Mas sei ver que, naquele contexto, era uma forma simpática de iniciar uma relação que ia envolver sacrifícios vários, muita dureza, tensão prolongada. Claro que não conheço a bitola que permitiria comparar a qualidade das unidades do sul da Guiné... E que tenho a maior consideração pelo sacrifício a que foram sujeitos os camaradas de outras companhias, algumas das quais iriam trabalhar connosco nos duros dias que se iam seguir.

Carlos Nery disse...

"Entrou, disse, pôs o chapéu e foi-se", diz o povo quando quer referir alguém que disse uma "doutorice" e se retirou convencido da sua sapiência...
Foi o meu caso que cheguei aqui e nem cumprimentei o dono da casa... Pois, meu caro Beja Santos, tenho seguido com atenção o teu labor aqui no blogue. O teu exaustivo levantamento dos livros publicados sobre a guerra da Guiné é indubitavelmente do maior interesse. No futuro (e agora, também) não serão poucos os estudiosos, e não só, que to agradecerão. Muito valiosas são também as tuas apreciações às diversas obras. No caso do livro do nosso camarada Traquina, faze-lo de uma forma que considero exemplar. Acompanhei o discreto labor do meu ex-furriel. Cheguei a recear que ele não conseguisse chegar a bom porto nessa persistente navegação. Aqui e ali emprestei fotos, esclareci pontos em dúvida. Até que tive a grata surpresa de ver a obra acabada. O Traquina é um exemplo de trabalho, de organização, de persistência. Na Guiné deveu-se a essas qualidades muito daquilo que nos envaidece: um parque de viaturas sempre operacional e um conjunto de condutores moralizado, sempre pronto e que, supremo orgulho, devolvemos vivo e de saúde às suas famílias. São estas as medalhas que sabe bem sentir junto do coração.

JC Abreu dos Santos disse...

... que o veterano José Manuel Cancela, em preito de homenagem a todos os camaradas-de-armas, relativamente às duas baixas mortais sofridas pela sua CCac2382, recorda-se de que «antes da morte do Ramiro, tivemos outra bem mais penosa, que foi o Elidio num ataque a Buba».

Creio que onde se lê «antes» se deveria ler «depois», cf a seguinte "ajuda de memória":
– o furriel miliciano Ramiro Augusto de Sousa Duarte, em consequência do acidente de viação sucedido em 30Jan69 quando se deslocava de Safim para Bissau, faleceu no HM241 decorridas menos de 24 horas (31Jan69);
– e o soldado Ilídio Fidalgo de Jesus – dois meses depois –, em consequência de ter sido gravemente ferido em 29Mar69 aquando de flagelação IN ao aquartelamento de Buba, faleceu no HM241 decorridas cerca de 48 horas (31Mar69).

Cpts,
Abreu dos Santos

cancela disse...

Caro Abreu dos Santos
É possivel que tenhas razao,pois passados 42 anos,talvez me tenha snganado,mas estava convencido,que Ramiro tinha falecido quando estava-mos em Bissau já á espera de embarque, portanto emfevereiro ou março

abraço
Cancela

Carlos Nery disse...

Assim é que é, desculpem! Transcrevo do meu comentário ao P6183:

"A CCaç 2382 sofreu dois mortos, na Guiné:

O soldado Ilidio Fidalgo Rodrigues, o saudoso "Esgota-Pipas", atingido por um estilhaço no ataque de 14FEV69 veio a falecer no HM de Bissau em 31MAR69.

O Furriel Ramiro Augusto de Sousa Duarte faleceu em Bissau em 31JAN69
num acidente de viação".