quarta-feira, 21 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6772: Notas de leitura (132): Alguns Princípios do Partido, de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
É uma mera referência histórica, permite tomar contacto com os dotes excepcionais desse comunicador que foi Amílcar Cabral.

Se há dado da sua personalidade que eu gostaria de aprofundar ou discutir com intelectuais portugueses e guineenses é o da divisa unidade em torno da Guiné e Cabo Verde que ele considerava um dado inquestionável.
Como se sabe, são hoje raríssimas as vozes que apoiam o sonho de Cabral. Mas o que se questiona, para além da legitimidade do sonho, é se o líder, bem como os demais líderes históricos, não tinham consciência da inviabilidade do percurso e do profundo nível de antagonismo existente entre os dois povos.

Um abraço do
Mário Beja Santos


Um exemplo da comunicação prodigiosa do dirigente Amílcar Cabral

por Beja Santos

Amílcar Cabral era extremamente meticuloso com as comunicações que proferia nos areópagos internacionais, caso das Nações Unidas ou Organização da Comunidade Africana. Igualmente cuidadoso com as suas intervenções como entrevistas ou documentos para distribuição pelos quadros do seu partido. Deixou centenas de páginas com documentos de tese e muitas outras com alocuções improvisadas. O PAIGC efectuou um seminário de quadros, em Conacri, de 19 a 24 de Novembro, durante o qual Amílcar Cabral pronunciou dois improvisos subordinados ao tema “Alguns princípios do partido”. Em Setembro de 1974, a editora Seara Nova publicou estas duas lições magistrais de um comunicador político impar, no 50.º aniversário do seu nascimento.

São alocuções que se lêem de um só fôlego, e quase se sente a vibração, a entoação, a sensibilidade do orador (não esquecer que tudo quanto se está a ler nem revisto foi pelo seu autor, foi pura e simplesmente transcrito de um gravador). É o prodígio de quem se quer fazer persuadir pela razão e pela força das convicções, pelo ardor dos combatentes que tem diante dele. Pelo uso da linguagem, clara e acessível; pelo recurso das imagens, pela consistência da língua, um português de primeira água. Sabendo que há causas que ele defende cuja argumentação era (e continua a ser) discutível, da base ao topo, é inquestionável que Amílcar Cabral sabia medir e captar as audiências. Logo na primeira alocução, o líder do PAIGC debruça-se sobre a “Unidade” e “Luta”, as divisas do partido. Explica como as pessoas são diferentes, fala numa equipa de futebol e na unidade que é necessário ter para obter resultados. E explica como a união faz a força, daqui saltando para uma divisa para ele obsessiva: a unidade da Guiné e Cabo Verde, condicionando a libertação de uma a outra. Passando para a luta, define o colonialismo, as contradições de quem apoia o colonialista, as vicissitudes de quem alinha com a libertação. Refere as bases de apoio de um lado e do outro, defende, justificando, a inexistência de um proletariado do tipo ocidental, apela a uma unidade de forças de diferentes classes, de diferentes elementos da sociedade. Empolgado e sempre a contrariar a história, considera que, por natureza, por história, por geografia, por tendência económica, até por sangue, a Guiné e Cabo Verde são um só. Resta perguntar, à distância destas décadas, o que levou um homem sagaz, de cultura superior, a dizer tais enormidades sobre uma união que nunca existiu. E que todos os líderes africanos, de qualquer proveniência, sabiam não existir. E acena a um espantalho: o imperialismo quer separar a Guiné de Cabo Verde exactamente para manter a submissão. E termina a alocução animando os quadros a perseguir a luta para a conquista da liberdade e a construção do seu progresso e felicidade na Guiné e Cabo Verde.

Na outra alocução, Amílcar Cabral apela ao conhecimento da realidade para que a luta da libertação triunfe rapidamente, na base da unidade. Essa realidade era a Guiné e Cabo Verde e argumenta: “Uma coisa muito importante numa luta de libertação nacional é que aqueles que dirigem a luta, nunca devem confundir aquilo que têm na cabeça com a realidade… Eu posso ter a minha opinião sobre vários assuntos, posso ter a minha opinião sobre a forma de organizar a luta, de organizar um partido. Mas eu não posso pretender organizar um partido, organizar uma luta de acordo com aquilo que tenho na cabeça. Tem de ser de acordo com a realidade concreta da terra. Não podemos pretender, por exemplo organizar o nosso partido de acordo com os partidos de qualquer país da Europa. No começo da nossa luta, nós estávamos convencidos de que se mobilizássemos os trabalhadores de Bissau, de Bolama, de Bafatá, para fazerem greves, para protestarem nas ruas, para reclamarem na administração, os tugas mudariam, nos dariam a independência. Mas isso não é verdade. Em primeiro lugar, na nossa terra, os trabalhadores não têm tanta força como noutras terras. No campo era quase impossível fazer guerras, dadas as condições da situação política do nosso povo e até de interesses imediatos do nosso povo. Assim, tínhamos que adaptar a nossa luta a condições diferentes à nossa terra, e não fazer como se fez noutras terras. Mesmo na questão da mobilização tivemos que considerar o problema na Guiné de uma maneira e em Cabo Verde de outra maneira”. Impetuoso, imaginativo, o líder regressa a 1962, quando o PAIGC ainda não tinha armas e cerca de 200 quadros estavam a ser preparados no exterior. Lembra a complexidade do mosaico étnico, a necessidade dos quadros se movimentarem de uma região para a outra para conhecer a realidade e recorda que não há sucessos militares sem um trabalho político adequado. Recorda ao auditório que o homem chegou à Lua e regozija-se porque a realidade dos outros têm grande importância para o evoluir da luta do partido. E passa para a descrição da realidade geográfica, económica, social, cultural da Guiné e Cabo Verde. É impossível não se ficar surpreendido, à distância destas décadas, pela sua capacidade em distinguir o que é dissemelhante e o que é controversamente complementar.

Lendo as intervenções de um homem que será assassinado quatro anos depois, sabe-se lá se por alguns dos quadros que os estão a ouvir em 1969, em Conacri, é impossível contornar o magneto de um líder que estava absolutamente convicto que criara a coesão entre guineenses e cabo-verdianos. Termina lembrando aos seus camaradas as condições em que formara o PAIGC e o cepticismo na maior parte dos seus amigos que lhe disseram que tudo aquilo era uma doidice. Doidice ou não, Amílcar Cabral recorda aos presentes que a formação do PAIGC em tais condições adversas fora o ponto de partida para uma realidade nova.

Trata-se de um testemunho histórico de belas peças de oratória num português irrepreensível, o que não surpreende para quem conheça a sua obra política e científica, a partir dos anos 50.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6747: Notas de leitura (131): Cambança Guiné Morte e vida em maré baixa, de Alberto Braquinho (Mário Beja Santos)

8 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Diz o Mário Beja Santos, sobre Amilcar Cabral:
"É impossível contornar o magneto de um líder que estava absolutamente convicto que criara a coesão entre guineenses e cabo-verdianos".

O "maganeto"? A "coesão entre guineenses e cabo-verdeanos?"
Tenho algum respeito pela figura de Amílcar Cabral, mas as ingenuidades, as utopias pagam-se frequentemente com a própria vida.
Estamos em 2010, não em 1960.
Um abraço,

António Graça de Abreu

antonio graça de abreu disse...

Desculpem, eu devia ter escrito magneto e não maganeto. Efeitos do íman nas palavras.

Anónimo disse...

As "utopias" pagam-se,por vezes, com a propria vida.Concordo plenamente ! ! E foi o caso desse sonho de Cabral que nao deixa entretanto, de, no seu reverso ter uma dimensao historica,sui generis,indiscutivel! Dois territorios e povos irmanados por um ideal comum...a independencia e a emancipacao. Caso unico na historia moderna !

E nao e que essa "estoria" de Estados Unidos de Africa tao apregoada por Kadaffi e outros tantos lideres africanos, para nos guineenses e caboverdianos..sabe por vezes ...a sobras de ontem ...requentada ?

Mantenhas

Nelson Herbert
USA

Antº Rosinha disse...

Mario, mais uma boa nota de leitura.

Mas como Amilcar tem muito mais, esperamos que continues para compreendermos um pouco melhor do que se passou connosco.

Mario, a convicção de Amilcar sobre a União Guiné-C. Verde, passou integralmente para o seu irmão Luis e todos os governantes Caboverdeanos que estavam na Guiné.

E, já se falou mais que uma vez, com o 14 Novº 1980 foi ao ar um "pesadelo" de 20 anos.

Mas como devemos falar desta guerra (guerra do Ultramar) e não de outra, quem passou por ela, sabe que em Caboverde nunca houve um tiro, uma escaramuça nem manifestações em qualquer ilha, a favor do PAIGC e contra a política portuguesa.

No entanto tudo o que Amilcar escreve sobre este facto, não dá razões cabais para tal facto, e até aborda o assunto muito levemente.

Esperamos que o Mário ainda nos traga o que Amilcar escreveu sobre o assunto.

Ma então o que levou Amilcar a desenvolver uma guerra tão violenta e tão incisiva sobre o tuga quando sabia que ia ser o povo das tabancas junto ao quartel, que ia sofrer mais?

Quem lidava com caboverdeanos, sabia que todos eles tinham os olhos postos no Amilcar, com admiração, orgulho, mas mais devido ao sucesso internacional do que no sucesso militar.

Os caboverdeanos de certas ilhas não o apoiavam nem acreditavam nessa união com a Guiné.

Os caboverdeanos em crioulo usam muito o termo "parvo".

Ouvi essa palavra entre colegas profissionais.

Mas não haveria interesses "extras" atrás de um projecto tão estranho que nem dum lado nem do outro havia confiança?

Continua Mário

Anónimo disse...

A maioria dos presos politicos africanos do campo de concentracao do Tarrafal, devolvidos a liberdade com o 25 de Abril, eram nacionalistas caboverdianos. O que pressupoe que tambem por essas ilhas reinava uma certa irreverencia para com a entao politica colonial.

Alias a historia do arquipelago e fertil em revoltas do genero !

Em Cabo Verde, contrariamente as demais colonias portuguesas, onde por sinal foram dados tiros...incluindo a minha Guine... a "nacao" antecedeu a formacao do "estado" independente... Quica nessa genese identitaria criola se encontre a justificacao em parte para essa invejavel estabilidade de que os caboverdianos gozam desde a independencia do arquipelago.

Ja na Guine, a luz do pensamento de Amilcar Cabral, a luta de libertacao, de um complicado mosaico etnico, lancou as bases a formacao da ainda "nacao guineense" em construcao.

Por conseguinte,se num, a via unica foi a dos "tiros" noutra, acabou por prevalecer a luta politica-no fundo tambem ela, a negacao de uma submissao colonial...

Nelson Herbert
USA

Antº Rosinha disse...

Nelson,

O povo caboverdeano, é de uma capacidade de trabalho e sacrificio e inteligência, que consegue superar as maiores dificuldades e resolver os maiores problemas.

A prova está à vista com o sucesso da independência, que todos testemunhamos.

No tempo colonial, fala-se muito que os caboverdeanos administravam a Guiné.

Mas isso é apenas a constatação de "meia verdade".

Porque não era só na administração da Guiné que os caboverdeanos sobressaiam.

Em Angola, em todos os serviços públicos, predominava o caboverdiano.

Registo Civil, Fazenda (Finanças), Caminhos de Ferro, Chefes de Posto e Administradores, Policia Judiciária, Correios, Obras Públicas, etc.

Isto que falo foi porque tive como colegas nalguns serviços por onde eu passei e que desde colegas, superiores e inferiores hierárquicos, com muitas "cachupas" e farras à mistura durante 18 anos, um convívio inesquecível e constatei ao vivo, nem preciso estatísticas.

Nelson, quando Portugal era "do Minho a Timor", sabemos que o analfabetismo predominava.

Para minimizar esse analfabetismo houve nos anos 50 e 60, um programa nacional para combater esse anlafabetismo.

Tambem não tenho estatísticas, mas já de Caboverde se falava em 1959 do sucesso enorme desse combate a nível da 4ª classe, ainda era insignificante em todo o território nacional. São noticias de jornal da época e de memória.

Nelson, como em imensos caboverdeanos que conheci em Angola, nunca vi analfabetos, ao contrário conhecia muitos patricios meus que o eram, e vi a capacidade dos caboverdeanos, compreendo o sucesso de Amilcar Cabral e dos actuais governantes caboverdeanos.

Quem me dera que os governantes portugueses tivessem a inteligência e a humildade e o patriotismo dos caboverdeanos.

Mas Nelson, o que custava a compreender na luta de Amilcar, e de Luis Cabral, (PAIGC em geral), era aquela união.

Custava a compreender a mim e aos caboverdeanos daquele tempo.

Não haveria outros horizontes e outros motivos?

Porque é que não é discutida publicamente esta questão em Caboverde? Pelo próprio PAICV?

Cumprimentos

Cherno Baldé disse...

Se as ideias forem tao fortes como era o Homem - Amilcar, um dia, talvez antes do fim deste seculo, Guineenses e Caboverdianos hao-de voltar a falar da unidade que nao conseguiram fazer com as atribuladas independencias sob os auspicios do PAIGC, um partido/movimento minado por intrigas internas.
A unidade nao se impoe, negoceia-se, nao é automatica, trabalha-se.

E isto só acontecerá quando os dois povos, cada um por si, tiverem atingido os niveis de educacao que permitem entender o verdadeiro conteudo da mensagem de Cabral.

Até lá continuaremos como irmaos que, de facto, somos. Nao se esquecam que, até 1897, salvo erro, os dois formavam uma unica unidade territorial e administrativa e nao é por acaso que falam, quase, o mesmo crioulo.

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

Anónimo disse...

Caro Rosinha

Mantenhas !

Hoje acredito que o que tera movido Cabral a apostar nesse ideal da unidade entre guineenses e caboverdianos,tem uma relacao directa com a historia comum entre os dois antigos territorios de Portugal em Africa. A historia de facto colocou-os no passado num mesmo trilho. De ascendencia caboverdiana, o pensamento de Cabral nesse particular, movia-se quica por uma motivacao em parte partilhada por qualquer outro guineense, com ascendencia nessas ilhas atlanticas e nao so...ou seja a facilidade com que se identificam com o que de comum existe e aproxima os dois povos.

Mas o pensamento em causa nao deixa igualmente de resultar de uma visao estrategica...de Amilcar Cabral na luta travada pelo fim da dominacao colonial...nos dois territorios ultramarinos.

Uma lideranca politica basicamente mestica, dotada na altura daquilo que de forma sabia, Cabral descrevia de "consciencia revolucionaria" acoplada a uma ala militar, na sua esmagadora maioria de mobilizacao guineense.

Ate aqui nada de "utopico" !

O descarilamento de todo esse processo viria entretanto a resultar da distorcida assimilacao e interpretacao que os nacionalistas do PAIGC entenderam dar ao pensamento do seu lider historico...comecando pela imposicao da ideia de instituicao de um estado unitario,Guine e Cabo Verde sob uma mesma bandeira e lideranca...

Cabral a tanto nao exigiu !

Um abraco e bom fim de semana

Nelson Herbert