sexta-feira, 28 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6484: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (19): Baptismo de fogo adiado

1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 15 de Abril de 2010:

Caro Carlos Vinhal,
Em anexo encontrarás mais uma pequena história do meu roteiro pela Mata dos Madeiros.

Votos de boa saúde para ti e para todos os camaradas.

Um abraço amigo do tamanho do oceano que nos une.
José Câmara



Memórias e histórias minhas (19)
Baptismo de fogo adiado


A estrada desventrava, com prazer sádico, a virgindade da Mata dos Madeiros. Esta não mais seria a mesma. Cem metros de desmatação, abertura, leito e alcatroamento eram conseguidos, diariamente, em nome do progresso social e de uma estratégia militar que facilitava a comunicação terrestre Bissau/Cacheu, via Teixeira Pinto, e separava as míticas matas do Balenguerez e da Caboiana.

Ali mandávamos nós, embora soubéssemos que o perigo rondava por perto. O tempo se encarregaria de o comprovar.

O acampamento já era então visível a mais de um quilómetro na longitunital da estrada em relação ao corte da desmatação. Isso trazia-nos apreensivos na medida em que as nossas defesas contra flagelações eram bastante exíguas, e os nossos movimentos podiam ser seguidos à distância.

As nossas saídas diárias para o mato também tiveram que se adaptar à nova realidade. Muitas delas eram feitas pela estrada, e virando à esquerda no extremo frontal da descapinação. Este tipo de saída era o que mais temíamos. O avanço, a decoberto, era feito até atingirmos o corte da desmatação e não podíamos penetrar na mata, já que essa zona pertencia a outra força de intervenção. Assim, não nos restava outra alternativa que não fosse prosseguir ao longo do corte, zona ideal para uma emboscada. Pior, a possibilidade de uma infiltração IN no meio das duas forças de intervenção também não era de desprezar.

Na noite do dia 22 de Abril de 1971, um dos sentinelas no acampamento apercebeu-se de uma fogueira na orla frontal da desmatação a cerca de um quilómetro de distância. Dado o alarme, de imediato foi accionado todo o dispositivo de defesa do acampamento, ao mesmo tempo que os dois grupos de combate que se encontravam fora e a outra força de intervenção, neste caso a 26.ª CCmds, eram avisados. E foi desta última força que recebemos a mensagem para que não nos preocupássemos, pois que a fogueira tinha sido ateada por descapinadores que, possívelmente, teriam falhado a hora de recolher ao acampamento.

Relaxámos, é certo, mas ninguém saíu da vala. Até porque a fogueira ardeu toda a noite...

Elementos da CCaç 3327 em progressão nas matas da Guiné. Na frente o Soldado At. António S. Júnior da minha Secção. A seguir o Soldado Trms António Almeida.

Com o amanhacer os dois grupos da CCaç 3327 que estavam de saída ultimavam os preparativos. O intinerário desse dia seria feito pela estrada, passando junto do sítio onde ardera a fogueira.

Eu, a mando do capitão, segui na escolta para o Bachile. Neste quartel estava a secretaria da Companhia onde, sempre que possível, ajudava nos trabalhos da mesma. Era um trabalho que me agradava fazer. Nessa altura eu mantinha boas relações com o 1.° Sargento João Augusto da Fonseca, que mais tarde viria a ser transferido para a Companhia Terminal.

Foi à entrada do ramal para o Bachile que o Soldado das Transmissões, ao comunicar a nossa posição e aproximação àquele quartel, se apercebeu que algo de anormal se estava a passar.

Para horror nosso, sem precisar os dados, saíu-lhe mais ou menos estas palavras:

- A malta está a embrulhar e há feridos!

Foi já dentro do quartel do Bachile que tomámos conhecimento mais aprofundado do que se passara junto do acampamento.

A força da 26.ª CCmds ao levantar a sua emboscada nocturna resolveu fazer a sua aproximação ao local onde iria ser rendida, ao mesmo tempo que os capinadores davam início à sua tarefa diária. Para o efeito seguiu a zona da orla da desmatação fazendo o percurso inverso que estava programado para os grupos da CCaç 3327 e passando junto ao local onde a fogueira ardera toda a noite.

Foi nesse trajecto, através da orla da mata, que se deu a emboscada. Os Comandos, homens experientes por muitos meses de comissão, detectaram a emboscada e foram os primeiros a disparar sobre os elementos IN que haviam infiltrado a zona vestidos de simples capinadores. Foram eles que, despreocupadamente, tinham feito a fogueira para se aquecerem durante a noite. Não contaram, isso sim, que os grupos da CCaç 3327 iriam atrasar a sua saída e, muito menos, contaram com os Comandos a surgiriem naquela zona.

Foi assim que descrevi este episódio à minha madrinha de guerra.

Aerograma de 24 de Abril de 1971:

"...Voltando à realidade da vida aqui, ontem houve barulho a sério a cerca de 1 km do meu acampamento. Dois comandos e três civis ficaram feridos e tiveram que ser evacuados. A minha Companhia não estava presente, e eu nem estava no acampamento. Tinha ido ao Bachile. Nem cheguei a ouvir o barulho.

Amanhã devo ir para o mato, só regressando na segunda-feira. Tudo irá correr bem se Deus quiser
."

Recentemente, em troca de emails com o nosso ex-Fur Mil Enfermeiro Rui Esteves, a quem coube a responsabilidade de prestar os primeiros socorros aos feridos, pedi-lhe que me ajudasse a reconstituir o que então se passou no seu mister. Foi assim que ele descreveu o episódio:

"O ataque do PAIGC à 26.ª Companhia de Comandos

Este ataque devia estar-nos destinado, os nossos IN é que não reparam bem no armamento dos nossos camaradas Comandos (se bem me lembro, ninguém usava G3) e atacaram.

O ataque dos PAIGC's à 26.ª Companhia de Comandos no local do nosso primeiro acampamento - houve vários feridos, entre os quais alguns do IN que, por estarem mais feridos, tiveram prioridade na evacuação de helicóptero (prioridade estabelecida por mim). Tive até que meter na ordem um dos meus cabos enfermeiros que não queria tratar os feridos do IN.

De entre os nossos feridos estava um Furriel Comando que era muito porreiraço e já era a segunda ou terceira vez que apanhava uns estilhaços. Desta vez, tinha as costas com uns poucos de buracos superficiais, que tratei com pouco mais que betadine, gaze e adesivo. Quando esta Companhia acabou a comissão, este furriel fez-me herdeiro de alguns bens - ofereceu-me uma ventoínha eléctrica e um caixote para guardar as minhas coisas
."

Essa emboscada acarretou outro tipo de problema. Os capinadores tentaram aproveitar este episódio para abandonar os trabalhos da estrada. Para os aguentar foram necessários alguns tiros para o ar e o aprisionamento de dois indivíduos que pareciam ser os chefes desta nova postura. Até aí nunca houvera qualquer problema com os civis. Sanado o incidente, a vida no acampamento voltou à normalidade, mas com uma preocupação acrescentada. Agora tínhamos a certeza que o IN estava na zona e que iria dificultar a nossa missão.

Por enquanto, a guerra passara ao nosso lado. O nosso baptismo de fogo ficara adiado.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6237: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (18): Estados de alma, aerograma de 20 de Abril de 1971

4 comentários:

Anónimo disse...

Amigo José da Câmara

Será que aquela Missa na mata e Procissão não deu uma ajudinha e vos "safou" desta ?

Por vezes "elas " começavam a cair quando menos se esperava ! E por aquelas bandas não era dificil!

Aquando da nossa estadia em Capó,uma das coisas que preocupava era o regresso dos capinadores. Uma infiltração não seria muito dificil,já que eram talvez uns quinhentos.A maior segurança era de eles próprios detectarem a eventual presença de estranhos!

A aguardar mais "uma estória tua" fora da "grande cidade do condicionado"

Um abraço
Luis Faria

rui esteves disse...

Olá José,
Mais um bom post.
Falta acrescentar que tudo se passou ali ao nosso lado, pertíssimo, mas sem consequências para nós.

Lembro-me do alferes João Luís Ferraz a correr ao longo das valas que circundavam o nosso acampamento, a incitar o pessoal.

Recordo a sensação de ouvir pela primeira vez o "assobio" dos obuses atirados do quartel do Bachile, a cair, certeiros, em cima do IN.

Os feridos que tratei e, nalguns casos evacuei para Bissau, tinham estilhaços desses obuses.

Quanto aos capinadores - de facto eram umas largas centenas e todas as noites dormiam ali ao nosso lado.

Armados de catanas, teria sido fácil acabarem connosco, quanto mais não seja porque eram muitos mais que nós.

Felizmente tal não aconteceu mas não foi coisa de que não nos lembrássemos -- lembro-me de falar disto, desta hipótese, com o Carlos Pereira da Costa.

Grande abraço para ti.
Rui Esteves
Furriel enfermeiro da CCaç 3327

Jorge Fontinha disse...

É curioso, como os nossos destinos se cruzam.Temos trocado comentários e recordando que sem nos conhecermos e quase nas mesmas datas passamos por situações semelhantes. Hoje não me ocorria nada para pôr no comentário e eis que me lembrei de pesquisar os teus Postes até hoje, diga-se em abono da verdade que em "diagonal".Aí verifiquei que a tua 1ª História, P4353 de 16 de Maio de 2009 foi comentada em 1º lugar por mim.Verifiquei também que uma das tuas primeiras intervenções no Blogue, foi a 17 de Janeiro de 2009 a um Poste meu, mais precisamente no P3743.
Presumindo que não tenhas lido tudo o que escrevi desde Agosto de 2008, sugeria-te que procurasses o meu poste P3142 de 20 de Agosto de 2008 e o comentasses.Até mesmo por Email.

Aquele abraço.

JORGE FONTINHA

Jorge Fontinha disse...

José:

Novamente o Fontinha:
É apenas para corrigir o teu Poste que eu comentei em 1º lugar.Foi o P4350, embora também tivesse comentado o citado.
Um abraço.

Jorge Fontinha