quarta-feira, 19 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6427: Notas de leitura (108): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
Afinal eu não sou a voz que clama no deserto e fica sem resposta.
Já aqui tenho o livro do Rui de Azevedo Teixeira “A Guerra Colonial e o Romance Português”.
O José Brás prometeu-me enviar um livro do madeirense António Loja. Esteve cá o António Estácio e deixou-me a “Nha Carlota”.
E já li 100 páginas do “Rumo a Fulacunda” do Rui Alexandrino Ferreira.

Aproveito para voltar a pedir ajuda de todos sobre os livros que foram publicados nos anos 90.
Li cheio de comoção este livro do Manel Mesquita. Não venham agora dizer que os soldados não escrevem livros.

Um abraço do
Mário


O soldado que guardou toda a vida Nhala no coração

por Beja Santos

O que surpreende no belíssimo relato do Manel Mesquita é o acordo que ele, mesmo antes de chegar ao teatro de guerra, estabeleceu com a vida, a sua pauta de heroísmo é o convívio sadio, a solicitude permanente, a não resignação, o profundo respeito pela condição humana. 

Deixará uma galeria de depoimentos no seu livrinho “Os Resistentes de Nhala”, são pessoas que podíamos ter conhecido, com quem seguramente convivemos ou, de quem ouvimos falar: aquele que se afundou no álcool, incapaz de cerrar os dentes e dar a volta à corrediça da vida; o capitão miliciano que organizou um torneio de futebol lá em Nhala e que levantou o moral da malta; os ocasos da vida que impediram o Manel de desertar quando veio de férias à metrópole, em meados de 1970, mas há também o Rosa, o Carinhas, o Victor, o Maiato...

Vamos por partes, o Manel volta de férias, uma LDM larga-o no areal de Buba. Trouxe comida para todos. Foi procurar o Carinhas para se juntar ao banquete, encontrou-o a cantar o fado. Segue-se uma rajada de tiros, são rajadas de costureirinhas e roquetadas. É uma grande flagelação, há gritos, a noite transformou-se momentaneamente em dia. Depois, o silêncio. Descobre-se que há um morto, era o faxina conhecido pelo Foda-se, tem vários buracos na frente do corpo. O grupo atacante chegara a abrir o portão para entrar em Nhala. Logo que descoberto, atacou à morteirada, morreram civis e também o chefe da milícia, o sargento Marcelino. Alguém recorda que durante as emboscadas e as flagelações na estrada nova de Uane os guerrilheiros gritavam que um dia iriam entrar e arrasar Nhala. O Manel aproveita para falar com Deus, pede-Lhe que não o abandone, não os abandone. Segue-se o enterramento dos civis:

“Estava a tomar o pequeno-almoço quando recebo ordens do furriel para tratarmos dos cadáveres. Três colegas vão abrir as covas ali fora dos arames, por coincidência onde horas antes estiveram os inimigos a atacar-nos. A mim calha-me fazer guarda de honra ao militar da milícia. Vou vestir-me com farda completa e limpa. Os defuntos civis são embrulhados em lençóis brancos e lavados, e assim baixam à terra. Dois colegas cobrem com pés e arrasam o terreno. Reparei que todos guardámos respeito e dignidade ao acto.

Por fim trazem o corpo do sargento numa maca embrulhado num lençol, mas coberto com a bandeira nacional. Morreu em combate. Tudo fez para defender Nhala... É uma cerimónia digna, mas arrepiante. Qualquer combatente ou caído ao serviço da Pátria merece-a”.

Segue-se uma operação ao Saltinho. Descobrem duas canoas. A força fica de atalaia, há um soldado africano que conta ao Manel que naquele local, poucos anos antes, se tinha voltado uma jangada com cerca de vinte soldados que foram abocanhados pelos crocodilos. O inimigo não apareceu, melhor o inimigo foi em enxame de abelhas que provocou inúmero sofrimento. 

O Manel passa em revista pessoas, situações e locais que permanecem indeléveis na sua memória. Primeiro o Bento. Numa operação levou um tiro no pulso esquerdo. O guerrilheiro estava numa frondosa árvore, foi abatido. A força inimiga foge em debandada. O Bento está sereno, prescinde da evacuação, o enfermeiro faz-lhe um penso, mas entretanto chegou o helicóptero. O Bento estava mais preocupado em que se transportasse o material de guerra capturado. Há ainda pessoas capazes de prescindir da dor. 

Chega o segundo Natal passado na Guiné. O Manel recorda uma conversa com o Deus menino: “E eu, nesta terra, nesta missão, que tenho para dar? Já sei, tenho uma prenda muito valiosa e importante para dar. Vou fazer um negócio invisível com as tropas do PAIGC, eu não irei disparar contra eles. Eu estou aqui a lutar para impedir que eles tenham direito à guerra que é deles, mas não é minha, não a quero. Nós negamos-lhes o direito que eles têm de possuir a sua terra”. O espírito de improvisação musical também vem ao de cima. Em Aldeia Formosa o pessoal, para esquecer a saudade, pegou numa melodia da marcha do Bairro Alto e passou a cantar a toda a hora:

Aldeia e as colunas a seguir
Para Buba com a malta
Sujeitos a ir para não vir
Com aquilo que nos faz falta.

São emboscadas e minas,
Bolanhas e covazinhas
Viaturas rebocadas.
Deitaram-nos isto à sorte
De procurarmos a morte
Nestas tão reles estradas


Refrão:

Viaturas velhas mesmo a cair
E, mesmo assim, a malta tem que seguir
São tristes chaços, em procissão
Andam mecânicos com as chaves de mão em mão.

Há muito mais a dizer sobre estes personagens que marcaram o Manel. Fiquemos com o Mário de Fontelas, seu conterrâneo, que apareceu em Aldeia Formosa. Já tinha cumprido 21 meses em rendição individual na CCaç 2478. A companhia embarcou, o Mário ficou no cais a ver os companheiros. O Mário foi colocado no segundo pelotão da CCaç 2614. 

O Manel convenceu o Mário que deveria apresentar o seu caso ao Spínola quando este viesse despedir-se do batalhão. Spínola discursou e preparava-se para se retirar quando o Mário pediu para falar, explicou-lhe que já levava 24 meses em teatro de operações. O general diz ao seu ajudante de campo para tomar nota do pedido, informando que não irá com a CCaç 2614, mas seguirá para Lisboa no próximo barco. Fizera-se justiça. O Manel nunca mais esqueceu aquele homem que soubera reclamar os seus direitos.

O leitor irá apreciar o João Vasques, o Fugitivo, o Bráulio. Não deixará de se comover com o sonho do Manel na sua última semana de comissão, já em Aldeia Formosa. A povoação já não era quartel, tudo se transformara: as casernas em escolas, infantários e cresces; a cozinha e o refeitório eram locais onde se preparavam refeições as refeições para as criança e jovens; o posto de socorros era agora um centro de saúde; os morteiros eram agora charruas e arados; e os campos de batalha estavam todos transformados em arrozais.

Manel nunca mais esqueceu Nhala, os abrigos que construiu, as aulas que deu, as lições de camaradagem. É impensável que alguém possa ficar indiferente a este depoimento tão singelo. Convido-vos a telefonar ao Manel (22 762 07 36 / 96 35 25 912) mais não seja para ter acesso a este livrinho maravilhoso, verdadeiro, corajoso. O Manel é um homem de fé e transmite-a. A pretexto de uma guerra de onde ele regressou há cerca de 40 anos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6419: Notas de leitura (107): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (1) (Mário Beja Santos)

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