domingo, 9 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6350: Controvérsias (74): Como eu vi o fim da guerra (Fernando C. G. Araújo, ex-Fur Mil OpEsp / RANGER da 2ª CCAÇ / BCAÇ 4512)


1. O nosso Camarada Fernando Costa Gomes de Araújo* (ex-Fur Mil OpEsp / RANGER da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74), enviou-nos a sua 5ª mensagem, com data de 4 de Maio de 2010:

Como eu vi o fim da guerra
Camaradas,

Tenho acompanhado no blogue a polémica gerada em volta dos contactos efusivos e das trocas de abraços com o inimigo de “ontem” - o PAIGC, que se seguiram à declaração do fim das hostilidades, ao longo do segundo semestre de 1974, até à saída total do dispositivo militar português, na Guiné.
A meu ver, algum exagero houve, em alguns desses contactos, pois mais parecia que o ex-IN, passou a ser considerado, por alguns dos nossos Camaradas, o novo amigo de “hoje”!

Excluindo um ou outro caso pontual, em que os comandantes não souberam impor o respeito e disciplina indispensáveis, e obrigar a manter as devidas “distâncias” entre as partes beligerantes, que eu saiba a grande maioria não passaram de contactos meramente formais, específicos e decisivos, para a correcta entrega dos aquartelamentos e a posterior retirada, ordenada e disciplinada, para Bissau, onde se procediam aos acelerados embarques de cerca de 27 mil homens em armas, no regresso à Metrópole, via aérea e marítima.

Pelas minhas contas a evacuação das tropas foi efectuada em meia dúzia de meses.

Com podem constatar em 2 das fotos que anexo, e pelo que me foi dado ver e apreciar, naquele período, que registei como era meu apanágio na minha agenda/diário, em relação ao pessoal da minha companhia, foi evidente a satisfação de todos pelo fim da guerra e o consequente fim do derramamento de sangue de jovens com 21/22 /23 anos de idade, ou seja putos na flor da sua juventude.

Mas, se por um lado nos congratulamos com o fim da angústia de um dia a dia incerto, cheio de perigos e de stress permanente, quer pelas saídas em patrulhas para o tarrafo, picadas e bolanhas, onde nos esperavam inúmeras armadilhas, minas e emboscadas, quer pelos bombardeamentos ao aquartelamento, etc., que poderiam representar a qualquer momento a nossa mutilação e, ou, morte, por outro lado, chorávamos aqueles que faleceram e ficaram para sempre estropiados, nomeada e mais sentidamente os da nossa Unidade.

Recordo a finalizar que o meu pelotão, a partir de certo momento, devido a doenças (outro inimigo arrasador e considerável) e ferimentos estava reduzido a cerca de metade, tendo chegado a sair várias vezes apenas com +/- 17 homens.
Segundo me contou o Magalhães Ribeiro, também em Mansoa, além dos indispensáveis contactos com o PAIGC, para a entrega do quartel que foi precedido das cerimónias do arriar da bandeira nacional e o hastear da bandeira da Guiné-Bissau, pela parte das NT não se viu qualquer sinal de congratulação, ou de qualquer gesto de simpatia.
Este facto foi ainda agravado pelo inesperado e estranho facto de que o bigrupo que se apresentou, para representar as forças guerrilheiras, só sabia falar francês, não compreendendo nada do dialecto crioulo e muito menos da língua portuguesa.
Juntos nos questionamos sobre a seguinte questão: Onde é que estavam os milhares de homens do PAIGC, para que nem um bigrupo se tivesse disposto a estar em representação do seu partido, num dia tão importante para eles, como aquele que representou, com carácter oficial, a efectiva e final transmissão de poderes soberanos, na sua Guiné?
Outra coisa estranha se verificou, que hoje nos continuamos a questionar é que estas cerimónias decorreram, como é sabido em 9 de Setembro de 1974, tinham já decorrido 4,5 meses sobre o 25 de Abril, é como que se procedeu à desmobilização dos tão propalados (por alguns sectores mais bem informados das NT) dos milhares de guerrilheiros do PAIGC?
Desapareceram, ou foram, pura e simplesmente, reintegrados de imediato nas respectivas populações locais, voltando às suas rotinas habituais no início do conflito?
Ou formaram algum super-exército que passou despercebido ao resto do mundo?
Ou chacinaram-se entre eles e exterminaram-se por completo?
Também nos lembramos das reacções das populações locais, pois se uma pequena parte, evidentemente afecta ao PAIGC, demonstrava regozijo no final das cerimónias, era notório que a maioria se mantinha expectante e apreensiva, face a um futuro incerto.
A finalizar ainda hoje nos ocorrem os últimos pedidos, de inúmeros nativos: “Acabem com a guerra mas não se vão embora!” e “Não nos abandonem!”
11JUN1974 > Jumbembem > Fim da Guerra para a 2ª CCAÇ do BCAÇ4512 > Dia inesquecível > O Comandante do PAIGC daquela zona - Anso Bojan -, visitou o quartel e foi convidado para tomar café.

11JUN1974 > Jumbembem > Fim da Guerra para a 2ª CCAÇ do BCAÇ4512 > Ao meu lado estão elementos do PAIGC que haviam tomado café connosco.

11JUN1974 > Jumbembem > Fim da Guerra para a 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512 > Ao meu lado está o Comandante do PAIGC daquela zona - Anso Bojan.
11JUN1974 > Jumbembem > O Comandante Anso Bojan visitou o nosso quartel. No fim da visita, fomos levar os guerrilheiros do PAIGC a Fambantã. Esta foto da viatura foi obtida por mim em plena bolanha, do jipe onde seguia o nosso CMDT de Companhia - Capitão Aires da Silva Gouveia -, e mais alguém que já não me recordo.
Em 24ABR1974 > 17h30 > Tínhamos sido atacados com 5 foguetões.
Em 18MAI1974 > 23 dias depois do 25 de Abril, numa coluna a Farim fomos emboscados em Lamel e sofremos 4 feridos (não me recordo quais os pelotões envolvidos).
Um abraço,
Fernando Araújo
Fur Mil OpEsp/RANGER da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512

Fotos: © Fernando Araújo (2009). Direitos reservados.
_____________
Nota de M.R.:

8 comentários:

Antonio Graça de Abreu disse...

Espantoso!...

Então os homens do PAIGC atacam Jumbembem com foguetões, já em Junho de 1974, e cinco dias depois as NT vão levá-los de Unimog a Jambantã, as matas onde eles abrigavam, creio.

Abraço,
António Graça de Abreu

MANUELMAIA disse...

CARO FERNANDO ARAÚJO,

NÃO POSSO DEIXAR DE EXPRESSAR TAMBÉM,À GUIZA DO AFIRMADO PELO GRAÇA DE ABREU,UM ESPANTO ENORME PELO QUE ACABEI DE LER...

A SUBSERVIÊNCIA BACOCA DE ALGUNS RESPONSÁVEIS DE BISSAU EMPURROU OS BASTIÕES DO MATO, QUE TANTAS VIDAS CUSTARAM PARA SER GARANTIDOS,ATÉ À DESONROSA SITUAÇÃO DE APOIO AO INIMIGO.

PERFEITAMENTE SURREAL...

ABRAÇO

MANUELMAIA

Luís Graça disse...

Deixem-me manifestar o meu apreço pela desinibição e frontalidade com que o Fernando Araújo aborda, num blogue de ex-combatentes, o tema (difícil, doloroso, potencialmente fracturante) do fim da guerra, da "reconciliação", da relação com o inimigo de ontem, da construção da paz...

Eu não estive lá, em 1974, no final da guerra, e portanto não posso opinar sobre como me comportaria nessas circunstâncias. Tanto para um lado como para o outro, não deverá ter sido fácil o gesto de estender a mão e de agarrar a oportunidade de pôr fim à guerra... De resto, o soldado "cumpre ordens" do general...

É importantíssimo que este tema fique suficientemente bem documentado no nosso blogue. Com objectividade, com distância, com liberdade, sem censuras de grupo, mas também com a emoção de quem esteve no centro dos acontecimentos. Não esqueçam: este blogue é antes de mais um blogue de testemunhos, de depoimentos, de relatos em primeira mão...

Fomos preparados para a guerra, não para a paz... Também nos disseram, em Mafra, nas Caldas da Rainha, em Tavira, em Lamego, em Vendas Novas, que "o tanque é de ferro, o homem é de aço" (famosa frase pintado no tanque de guerra do filme Lebanon / Líbano, do israelita Samuel Maoz, de 2009, que acabo ver ontem no cinema)...

Só quem fez a guerra, pode odiar a guerra... E para se fazer bem uma guerra, é preciso odiar o inimigo e ter uma vontade de ferro em destruí-lo...

No espaço interior, nauseabundo, claustrofóbico, vulnerável, infernal, de um tanque de guerra, quatro homens (a que se junta um morto e depois um prisioneiro), a tripulação de um M15 (se não em engano), jovens, saídos a adolescência, apanhados pela 1ª primeira do Líbano, numa operação de limpeza com pára-quedistas, são confrontados com a guerra urbana, com a vida e a morte, a coragem e o medo, a camaradagem e o instinto de sobrevivência, a humanidade e a bestialidade, o sentido da paz e da guerra...

O realizador baseia-se na sua própria história pessoal, de membro de uma tripulação de uma tanque, em 1982, no início da guerra do Líbano, em que foi ferido.... Só 25 anos depois foi capaz de voltar ao "inferno"...

Amigos e camaradas: é um dos mais espantosos filmes de guerra, a guerra vista do interior de um tanque... Não percam. Vencedor do do Leão de Ouro, do Festival de Cinema de Veneza, em 2009. Polémico, duro... Um murro no estômago: é a sensação com que podem sair da sala... Vejam e depois comentem. Vejam e depois voltem à Guiné, de 1961 a 1974...

Luís Graça disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luís Graça disse...

Fernando:

O meu apreço vai também para o facto de teres tido a disciplina suficiente para tomar, telegraficamente, todos os dias as tuas notas na tua agenda pessoal... LG

Anónimo disse...

Caro Fernando,

Não estive lá nessa altura. Ainda bem!
Possívelmente me sentiria como tu? Não sei!

Uma certeza tenho. Hoje sofro porque amei e amo aquele "Chão". Porque ficaram lá muitos amigos em que a côr não interferia e a maioria, não sei o que lhe aconteceu. Alguns ainda conseguiram fugir e agora irmãos como sempre foram, vivem em (guetos)num "Chão" onde lutam pela sobrevivência.

Perdi amigos!

Que teria acontecido a Alfa nan Cabo, que fugiu do PAIGC (não por traição) para não ser executado em 1965, e em 1974 ainda continuava a salvar vidas a homens do "chão" metropolitano?

Aconteceu ao Gibi Baldé, que se suícidou após lhe terem amputado as duas mãos?
Se alguem souber ou tiver conhecimento do filho do Gibi que por cá anda, tendo jogado futebol, segundo informações no Alverca, gostaria de contactar com ele.

Houve erros muito grandes.em 1965/66 a guerra na Guiné esteve prestes a acabar! Mas a Guerra Fria tinha outras ambições.

Vale a pena rememoriar as palavras da antevisão desse grande amante da Guiné que foi O Comandante Teixeira da Mota vinte anos antes da passagem de testemunho em lingua francesa, como dizes Fernando.

« Faz pena pensar que esta gente afável, exercendo e difundindo sem entraves a sua religião e cultura à sombra da nossa bandeira (colhendo até benefícios para o proselitismo nesse facto), pode um dia vir a ser alvo de explorações ignóbeis, de propagandas empenhadas em semear o ódio a fim de preparar imperialismos.»

É isso! Que hoje faz doer muitos corações.

Como sempre o abraço do tamanho desse maravilhoso Cumbijã,

Mário Fitas

Torcato Mendonca disse...

Este facto foi ainda agravado pelo inesperado e estranho facto de que o bigrupo que se apresentou, para representar as forças guerrilheiras, só sabia falar francês, não compreendendo nada do dialecto crioulo e muito menos da língua portuguesa.
----Retirado do poste-----sintomático da força guerrilheira, da sua constituição e dos mercenários que os ajudavam - podem chamar internacionalistas, elementos ou militares de países amigos.Pois!
O Poste descreve bem o que o F. Araújo assistiu. Tudo bem e gostei de ler. Isso não me leva a aplaudir em concordância de comportamentos. Concordante, isso sim com algo que ele diz referente aos nossos soldados - idade, a guerra e o sofrimento,o desejo de paz.
Volto a dizer: este blogue não é feito de muitos blogues.Não . Neste blogue plural existe, como é lógico e salutar,diversidade de pensamento. Estão aqui do soldado ao general como militares e, na vida civil,hoje, igualmente essas diferenças estão presentes. Porque isto de os homens serem iguais é retórica de sigla da revolução Francesa ou dos nossos 18 anos e, porque não, do PREC que existiu e transformou a bafienta sociedade de então.
Acabou a guerra, voltou felizmente a paz. Vencidos e vencedores? Não houve.
Leiam a preocupação que as populações tinham. Os mais avisados.Hoje...pois.
É longo e merece outro tratamento.
Quanto á entrega:- era feita entre militares e com o respeito devido. Respeito pele farda que envergavam.
Sabem o que aconteceu em certos lugares? Um abraço ao Araújo pelo poste. Abraço igual para os outros comentadores. Não estava lá e não sei o que faria.Sei. Era e continuava militar.Só e a mais não era obrigado.
Gosto de ler o Luís Graça, pela amizade, pelo bem que escreve e me ensina, pelo modo de tentar conciliar os opostos ou, pelo menos as divergências. Gosto. Ele criou este espaço espaço da especialidade dele. Só que cresceu cresceu.Felizmente.
Spínola, mesmo de monóculo, não é Sharon. Os militares do nosso País não são israelitas. Nós somos filhos de um Nobre Povo. Pobre em elevada percentagem...e mais não digo...entrava na História, na Sociologia, na...agora não.
A minha Paz como alguém diz e um abraço a todos do Torcato
e. t. - não gosto muito de filmes de guerra com nazis ou outros que não respeitam os inimigos(?).

Anónimo disse...

Caro Fernando Araújo.

Não deixa de ser irónico e triste, o facto de este post com fotos de elementos do PAIGC. ser colocado no dia 9, faz hoje precisamente 37 anos que o meu GrComb. da 1ª Ccaç./ 4512 sofreu violenta emboscada, onde tombaram 2 camaradas do nosso Batl. e mais 2 da Ccaç. da 14ª, coincidências…..

Sobre o texto continuo a dizer o que sempre disse em relação ao PAIGC.,não entrei em euforias desnecessárias, a idade que tínhamos na altura não explica tudo, era de muito mau gosto que de um dia para o outro se esquecia tudo o que deveria não ser esquecido, os nossos camaradas mortos, há quem ache isto poético, eu não!

Mas não quero de forma nenhuma acusar ninguém, cada um teve vivências diferentes.

Já agora, ainda não enviei um texto sobre os “incidentes” em Guidaje, porque me faltam elementos que estou a ultimar, aconteceram depois da “festa”, com o PAIGC. veio tudo embora e teve que ser a minha 1ª Ccaç a ir para Guidaje, em finais deJulho / 74, a resolver o que poderia ter consequências desastrosas, talvez depois de leres o que se passou entendas melhor, esta minha posição.

E ainda hoje não sei o porquê de sermos a última Ccaç. da 4512 a vir embora.

Também não houve visitas a Binta (que eu saiba) de delegações do PAIGC., eles lá sabiam porquê.

Um abraço

Manuel Marinho