sábado, 8 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6347: Notas de leitura (103): Vindimas no Capim, do nosso camarada e tertuliano José Brás (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
É com imensa alegria que li “Vindimas no Capim”.
Sem margem para exagero, um dos grandes livros dos anos 80, referentes à nossa guerra.
É um clamor de sofrimento, se bem que eu por vezes não posso entender a sua carga de acusações, a sua zanga. É um grande exercício de camaradagem. Fico-me por aqui.

Um abraço do
Mário


Filipe Bento, um camponês estremenho no Sul da Guiné

Beja Santos

Álvaro Salema, ao fazer a recensão de “Vindimas no Capim”, de José Brás (Publicações Europa América, 1987), na revista Colóquio/Letras, n.º de Julho de 1988, alude a uma narrativa quase oralizável em que episódios e figuras se sucedem em fluxo corredio de recordações da infância, da vida aldeã, do ambiente de quartel, das deambulações pelos mais perigosos territórios da guerra. E refere ainda, enaltecendo, a expressão popular, directa e sem cedências de intenção literária, geralmente áspera e crua em que mesmo o vocabulário obsceno surge com naturalidade no fluir do discurso. “Vindimas no Capim” é uma obra onde não falta originalidade, pela mistura bem doseada de vinhedos com mata, rendeiros com sargentos vagomestres, camponeses que se redimem nas truculências da guerra. É escusado regressar à estafada questão de querer apurar se Filipe Bento é um alter-ego de José Brás. Em qualquer medida, é o José Brás quem nos faz chegar a dor lancinante, nos entremezes pitorescos e coloquiais; estamos lá identificados e revistos: no sargento bandalho, no oficial prepotente, na memória do professor abrutalhado, na atmosfera rural, no orgulho de nos fazer chegar o entendimento das alfaias agrícolas. Basta um exemplo:

“E o que é isso do pescaz e da cunha?

Um pescaz é um pedaço de ferro alongado, com sete ou oito centímetros de comprimento por um e meio de largura, mais ou menos, com uma cabeça ligeiramente desbordada, onde assentará a porrada do martelo quando se for aplicar na enxada, pontiagudo para entrar melhor no olho, entre o cabo e o ferro, atrás. A sua função é graduar o ângulo formado pela pá da enxada e pelo cabo. E esse ângulo deve ser mais aberto ou mais fechado, consoante o trabalho que se for realizar: cava, descava, sachola, abrir rego para feijão, covacho de batata semear ou enterrar ceseirão, enterrar esterco, semear fava, tremoço ou tremocilha, ou grão preto ou branco, ou milho, ou trigo...

A cunha é isso mesmo, uma cunha. Um pedaço de ferro com as faces em triângulo agudo, com tantos centímetros de comprimento por tantos de largura na base, e que se espeta no cabo da enxada, de baixo para cima, na parte que fica dentro do olho, a fim de dar o aperto necessário para não se desencabar no trabalho.

Se vocês pensavam que uma enxada era assim uma coisa tão simples, só uma enxada, sem mais nada, desenganem-se! A profissão de ferreiro tinha muita ciência, meninos.

E tipos de enxada havia muitos!

Enxada de dois ferros, enxada de um ferro, enxada de dois bicos ou de terra seca, sachadeira, sachola... E até se faziam sachos para as crianças. Diziam que era para brincar, punham-lhe um cabo à medida, habituava logo o mamão à albarda”.

O que distingue a coloquialidade de José Brás é a forma elástica, enérgica e pujante com que salta os tempos e os espaços, as reminiscências antigas fundidas com as da guerra, tudo intercalado por uma linguagem increpada, dura e sentenciadora da instituição militar, muitas vezes posta no banco dos réus. Temos visto que outros autores desceram aos infernos na vida das casernas: basta pensar em “O Pé na Paisagem” de Filipe Leandro Martins. Só que da caserna se regressa à infância ou à juventude e de lá se parte para um batalhão de caçadores e daí para a Guiné. Depois há a espontaneidade de se descrever “os cus de Judas” e de hesitar em manter a expressão que já veio no romance do Lobo Antunes. Só que depois tudo parece natural ou sincero no contexto da recordação: as tripas à mostra na explosão das carnes, no fragor das minas; as raivas contidas no calor das tardes vazias, na lembrança da humidade linfática daquele ar irrespirável; os cus de Judas eram as idas a Buba ou a Gadamael, trinta quilómetros para cada lado, a caçar minas, a chupar emboscadas, atascados nas lamas das bolanhas todo o caminho a inventar pontes, camiões cavalgando troncos de árvores num prodígio de circo para repor o stock do vaguemestre e do bar com comes e bebes; e também cus de Judas daquela gente imigrante que tinha vindo, sabe-se lá por que razões, até estes oceanos de capim.

Para além desta vitalidade da escrita, há o aquém em que todos nos irmanamos, aquele exacto momento em que o nosso camarada foi atingido pelo raio da morte. Basta pensar no Barcelos, que tanto penou até morrer, deu pela morte, levou uma hora a esgotar-se, houve que lhe proibir os berros da dor, para tal enfiou-se-lhe na boca um rolo de ligaduras. O Barcelos seguia no palanque, toda a gente a pedir-lhe que aguentasse, aos poucos chegou a dormência, mas lá se ia mexendo dizendo que não queria morrer, queria ver o filho, depois o Barcelos cansou-se, não houve forma de o convencer a ficar naquela coluna fantasmática que procurava a sua salvação.

“Vindimas no Capim” é por estas razões e outras que ainda queremos mais adiante abonar uma obra de peso da literatura da guerra colonial guineense. Um Filipe Bento que vem à fala orgulhoso do pai barbeiro e da mãe costureira, orgulhoso das origens, da fossanga das vinhas, íntegro numa raiva desmedida à instituição militar com quem, tudo leva a crer, ficou definitivamente incompatibilizado. Enternece este regresso à juventude e depois saltar para Cutima-Fula, Camba-Jate ou caminhar até Guileje, nos entretantos deixar claro o que o pessoal da 4022 viveu em estafadeira. Há imagens que, de tão bem resumidas, nunca mais se esquecem: “Buba! Ao longe pareceu-nos um bairro de lata. O Prior Velho. O rio era a auto-estrada do norte e o barco a carreira dos Claras a caminho de Lisboa. As barracas iam crescendo e já se viam braços no ar à beira do espelho da estrada; um amontoado de troncos a entrar na largura da rota, em forma de cais, e uma mancha a alargar-se, a mexer-se, a gritar”.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6337: Notas de leitura (102): Guinéus, de Alexandre Barbosa (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Antonio Graça de Abreu disse...

Há dois meses atrás, li de uma penada o livro do Zé Brás, que me foi oferecido por ele no primeiro encontro da Tabanca do Centro, em Janeiro, em Monte Real.

Desta vez a recensão-- ainda incompleta do Mário Beja Santos --, parece-me ajustada e muito bem conseguida. O livro, sobretudo na exaltante linguagem utilizada, no encadeamento e cruzamento das histórias, no retrato implacável do Portugal rural anos 40,50, 60 do século passado centrado nas aldeias vinhateiras do concelho de Alenquer, o livro, as "Vindimas do Capim são uma obra notável.
Infelizmente com conotações de natureza política demasiado marcadas e datadas. Claro que o Zé Brás teve todo o direito de dar o nome certo aos bois, e os bois,ou vampiros de então não mudaram de nome.
Mas os anos passam, a distância, a lente do tempo fazem-nos compreender melhor os desvairos, o estertor colonialista do passado, de que todos fomos testemunhas e intérpretes.
O Beja Santos também notou o excesso de azedume que polvilha, de quando em quando a prosa brilhante do Zé Brás, e anotou "por vezes, não posso entender a sua carga de acusações, a sua zanga."

Foi a fruta da época que o Zé Brás deixou no seu "Vindimas no Capim".
Alguma dessa fruta terá apodrecido, esfarelou-se no tempo.
Nada disto, no entanto, degrada um texto excelente e luminoso como é o das "Vndimas no Capim" do nosso
José Brás.

Abraço,
António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Caro camarada
Graça Abreu

Como já disse ao Mário, também eu olho para trás e descubro marcas duras no modo de dizer as coisas.
Devo dizer-te que com 15 anos comecei a distribuir propaganda política e ria dos medos do meu pai.
Á raiva que tinha contra senhores donos dos corpos de gente; contra os eus criados lambe-cús; contra funcionários do sistema que intermediavam entre rurais e os seus algozes grandes intermediários, que ajudavam a roubar-lhe o trigo (pão), as batatas, o vinho, afinal sonhos de um ano de trabalho escoados para as tulhas e tonéis de seus maiores, está toda nesse livro.
Hoje, as palavras seriam outras, e são, mas o jogo é o mesmo, agora na invenção da palavra crise para esconder que a crise é apenas uma revolução que desfaz conceitos sobre trabalho e emprego, e portanto, sobre desemprego e a morte da cidadania de milhões de seres humanos definitivamente trocados por tecnologia sem segurança social nem sindicato.
Como dizer isto, então, sabendo que oa senhores do mundo globalizado acham que ~há uma imensa massa de população supérflua e que só a imagem de uma certa democracia ainda necessária tolhe decisões sobre o destino dessa superficialidade que tem de ser alimentada?
Obrigado pela tua opinião.
Um abraço
José Brás

Anónimo disse...

José Brás o teu comentário ao Graça de Abreu é de Maio de 2010.E quanto ele é mais real e negro neste ano em que vivemos ou sobrevivemos de 2014.Não perdeu actualidade, infelizmente.Carlos Gaspar