domingo, 2 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6302: Estórias do Jorge Fontinha (10): Uma noite muito mal passada

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Fontinha* (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 30 de Abril de 2010:

Carlos Vinhal
O Luís Faria pede-me que te dê trabalho.
A pedido, fui ao Baú das recordações e encontrei mais esta "Estória".

Aquele abraço para ti e em geral para toda a Tabanca.
Jorge Fontinha


A NOITE MAIS MAL PASSADA, DA MINHA VIDA

Nestes conturbados dias de trovoada, relâmpagos e chuvas fortes, veio-me à memória, os temporais a que fomos obrigados a passar.

Há dias, aqui perto da Régua, nomeadamente numa das encostas, comuns com o concelho de Mesão Frio, houve estragos terríveis. Aqui, de minha casa, vivo junto à marginal, senti todo o temporal, com relâmpagos, trovões e chuva torrencial intensa. No outro dia algumas pessoas questionaram-me, se eu tinha tido medo de tamanho temporal. Só respondi:

- Estava dentro de casa e o único transtorno, foi a luz ter ido abaixo e de ter de descer e subir as escadas do 6.º andar ao R/C. Já passei bem pior.

Na verdade, já me não lembro ao certo se foi na zona do BURNÉ, se na do BALANGAREZ, foi certamente entre Teixeira Pinto e Caheu.

Numa das saídas em bi-grupo, calhou ficarmos, como em dezenas de outras vezes, emboscados, para passar a noite, algures no mato. Durante o dia, foi sempre debaixo de intenso calor, onde o quico que já cheirava mal, era o único protector e simultaneamente servia para limpar a transpiração da testa e do pescoço. A determinada altura, até nos molhamos até à cintura e enchemos as botas e as cuecas das frescas águas lamacentas da bolanha, que tivemos de atravessar. Claro que o “ónus” de o fazer, teve de recair sobre mim. Era sempre a secção do Furriel Fontinha que tinha o encargo de guiar o pessoal até ao local previamente escolhido. Cabia-me sempre tal tarefa. Havia sempre quem não gostasse das minhas opções mas se o caminho que o meu azimute indicava, era aquele, não valia a pena contestar. No final, toda gente acabava por concordar.

Quando a hora de nos instalarmos se aproximou, toda a gente escolheu o lugar mais aconchegado e adequado às suas características. De preferência, junto a uma árvore, onde me encostar e soerguido, a fim de pôr a leitura em dia, enquanto havia sol ou luz que o permitisse, era o da minha preferência. Nesses momentos, era normalmente o Furriel Chaves que se entretinha a fazer a escala de sentinelas, antes de se sentar também junto a uma árvore, mais na retaguarda do Grupo, sacar do seu bem afiado canivete e esculpir, uma qualquer escultura em madeira. Confesso que me não recordo de nenhuma das esculturas produzidas por ele. Depois de nos banquetearmos com um lauto jantar da ração de combate que gentilmente os Fuzileiros nos haviam presenteado, (um abraço para eles e em especial para o então 1.º Tenente Teixeira Rodrigues), procuramos sítio para passar a noite.

Aí começa o festival de relâmpagos, de trovões e uma espécie de tromba de água, sem fim à vista. Não dá, para estar sentado e muito menos deitado. Aos relâmpagos sucedem-se quedas de árvores muito próximo de nós, os trovões são ensurdecedores e a chuva entra pelo nosso corpo como se estivéssemos nus. A acrescentar a tudo isto, os mosquitos são aos milhões e implacáveis. Por vezes, ao afastá-los da cara, chegamos a agarrar algumas dezenas deles, duma só vez. Não me lembro do tempo que estivemos assim, foi todavia uma eternidade. Quando a chuva terminou, lembro-me de me ter sentado na base da árvore e ter ficado com o “Poncho” sobre a cabeça e descontrair, pensando já não sei em quê.

A coisa que me lembro depois disso, foi alguém abanar-me e dizer:

- Furriel, acorde, está cheio de água.

Aí acordo e vejo já o sol a raiar, todo coberto de água até a meio do peito, só com meio corpo fora de água.

Então como agora, felizmente, há duas coisas que nunca me faltou. Sono e vontade de comer. Não há nada que me tire o sono. Nem as máquinas da Central da Mãe D’Agua, em Bissau, quando em Agosto de 1971 fui convidado… e ir guardar.

O que mais nos faltou fazer, Luis Faria?

Aquele abraço para toda a Tertúlia.
Jorge Fontinha
__________

Nota de CV:

Vd. 27 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5892: Convívios (107): Visitei a Tabanca Pequena de Matosinhos e quero homenagear os seus mentores (Jorge Fontinha)

Vd. 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5354: Estórias do Jorge Fontinha (9): Homenagem a Fernando Barradas, ex-Fur Mil Fotocine e ex-jornalista de "O Comércio do Porto"

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Jorge Fontinha

Eis que vejo e leio finalmente relatada uma faceta daqueles tempos que sempre me impressionaram.

Felizmente para mim, nunca tive de passar por uma situação dessas, mas nunca esqueci e, julgo que só com a morte, se me apagarão essas recordações.

Em Mansoa, na época das chuvas, sempre que surgiam essas tempestades (trovoadas, tufões, tornados, tudo regado com montanhas de água a cair do céu), eu, no aconchego do quartel, me envolvia numa profunda angústia, pensando em todos que, nesses momentos, se encontrassem algures no mato.
Com toda a sinceridade o digo ainda hoje, era das situações que mais me angustiavam e faziam sofrer interiormente.

Abraço
Jorge Picado

Anónimo disse...

Caro Jorge Fontinha,

Na Mata dos Madeiros apanhei com uma dessas trovoadas. Foi a primeira de muitas que vivi nos diferentes lugares por onde passei na Guiné.

Tenho a certeza que a maior parte dos nossos camardadas teriam muito para contar a respeito de situações semelhantes.

Esse fenómeno da natureza impressionava pela violência. Pior era estarmos à sua mercê, sem nada podermos fazer.

Covenhamos que também era um espectáculo de beleza ímpar, digno de se ver, quando os céus eram rasgados por multi-descargas elécticas através dos diferentes quadrantes.

Como o nosso camarada Jorge Picado diz, só a morte apagará essas recordações. E muitas outras!

Um abraço amigo,
José Câmara

Anónimo disse...

Grande Amigo Fontinha

Por fim reapareces!

Reapareces com a estória de uma situação que se repetiu algumas vezes.

Eram situações tenebrosas mas ao mesmo tempo e por vezes espectaculares.Aqueles ribombares e os riscos relampejantes nos céus,multidireccionados tornavam-se pinturas de um Mestre aliadas àos fantasmagóricos dançares das ramadas da vegetação.

Recordas-te de uma outra vez,pelas mesmas zonas,ficarmos "acomodados"quase toda a noite, metidos na valeta profunda da estrada onde a agua era um rio que tambem nos submergia até meio corpo e os "negritos"(mosquitos pequeninos)como lhes chamou o Câmara,causticando-nos com as suas ferradaelas nos comiam vivos.Que raio de noite tambem essa !!??

Um abraço
Luis Faria